Do Capitalismo Industrial de Classes Sociais ao Capitalismo Digital de Castas Tecnofinanceiras

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Foto: Gage Skidmore/Wikimedia Commons

O risco é o de uma nova forma de apartheid econômico, no qual a moeda privada e algorítmica se torna um marcador de pertencimento de casta: quem domina o código e participa da rede pertence à elite; quem não domina é relegado à periferia digital.

Fernando Nogueira da Costa

Fonte: RED
Data original da publicação: 18/11/2025

A possível transição histórica do padrão dólar — como moeda estatal hegemônica — para um regime de moedas digitais privadas representaria uma inflexão profunda na estrutura social global. Tal mudança não se limitaria à esfera monetária, mas repercutiria também sobre a própria morfologia das castas ocupacionais, reconfigurando as fronteiras entre poder econômico, técnico e simbólico.

No regime do dólar, a estratificação social baseia-se em um tripé de hierarquias:

(1) o poder político das castas dos oligarcas governantes, controladores do Estado emissor, assegura a confiança monetária;

(2) o poder financeiro das castas dos negociantes bancários e corporativos, integradas ao sistema de crédito global; e

(3) o poder cognitivo das castas técnico-administrativas (intelectuais tecnocratas), capazes de operarem as instituições reguladoras e financeiras.

Nesse contexto, as castas produtivas e subalternas dos trabalhadores organizados permanecem dependentes do circuito fiduciário estatal e bancário, isto é, do acesso ao crédito e à moeda “oficial”.

Com a emergência das moedas digitais privadas e descentralizadas — sobretudo as apoiadas em blockchains, contratos inteligentes e algoritmos autônomos de governança —, esse tripé tende a se fragmentar. O poder de emissão monetária, outrora concentrado nos Estados e bancos centrais, passa a dispersar-se em redes privadas e plataformas tecnológicas, controladas por corporações digitais e grandes detentores de criptoativos.

Cria-se, assim, uma nova casta rentista-tecnológica: a dos programadores, mineradores, traders algorítmicos e investidores iniciais (early adopters) das moedas digitais.

A ascensão dessa casta tecnofinanceira redefine a hierarquia social: o domínio sobre a linguagem do código substitui, em parte, o domínio sobre os meios de produção material. A expertise técnica em blockchain, IA e finanças descentralizadas (DeFi) converte-se em novo capital simbólico, equivalente à antiga posse de terra ou capital industrial. Finanças descentralizadas (DeFi) são componentes dos sistema financeiro capazes de utilizar blockchain e criptomoedas para permitir transações diretas

entre indivíduos, eliminando a necessidade de intermediários como bancos e corretoras. Os serviços DeFi incluem empréstimos, negociações, seguros e pagamentos automatizados por meio de contratos inteligentes, visando maior eficiência e acesso.

Assim, o regime de valor-especulativo digital passou a operar como parte do sistema de castas, baseado na capacidade de decifrar e manipular algoritmos. Vai além das heranças produtivas ou linhagens familiares.

No entanto, essa reconfiguração não implica necessariamente maior mobilidade social. Ao contrário, tende a reforçar a exclusão dos “párias digitais” — grupos desprovidos de capital cognitivo e tecnológico, incapazes de compreender ou acessar o novo sistema monetário.

O risco é o de uma nova forma de apartheid econômico, no qual a moeda privada e algorítmica se torna um marcador de pertencimento de casta: quem domina o código e participa da rede pertence à elite; quem não domina é relegado à periferia digital.

Contudo, há fissuras potenciais nesse processo. A descentralização algorítmica e a transparência das redes blockchain podem, em tese, abrir margens de mobilidade para indivíduos e coletivos marginalizados caso consigam apropriar-se dos instrumentos tecnológicos.

Comunidades periféricas, países fora do eixo dólar e novos empreendedores digitais podem, sob certas condições, utilizar as moedas privadas para escapar de sistemas financeiros excludentes.

Assim, a transição do padrão dólar para o regime digital privado não elimina as castas ocupacionais, mas as redefine, destacando as cognitivas. O poder monetário migra do Estado para o código; o valor econômico desloca-se da produção para a informação; e a desigualdade passa a medir-se pela distância entre os programadores do sistema e os utilizadores.

Trata-se, portanto, de uma mutação histórica da estrutura social. Vivenciamos a passagem do capitalismo industrial de classes sociais ao capitalismo digital de castas tecnofinanceiras.

Fernando Nogueira da Costa é professor iitular da UNICAMP


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