Entender as condições deploráveis dos trabalhadores durante a consolidação do capitalismo industrial tem um efeito pedagógico, pois torna inteligível o histórico de lutas que existe por trás da conquista dos direitos trabalhistas, até então extremamente restritos – quando não inexistentes.
Gabriella Bento de Oliveira e Leandro Gavião
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 27/11/2019
Imaginar como seria a situação dos trabalhadores em uma realidade onde não existisse qualquer tipo de proteção derivada de leis trabalhistas é um exercício difícil, mas não impossível. Basta, para tanto, observar a própria história do início da formação da classe operária com a industrialização na Europa, ao longo de todo o século XIX. Relatos desse cenário dramático foram narrados com minúcia em obras de ícones da literatura da época, a exemplo de Victor Hugo 1, de Émile Zola 2 e de Charles Dickens 3. No que concerne à crítica social de caráter não ficcional, destaca-se o livro “Situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, de Friedrich Engels 4. A sensibilidade humana, independentemente da orientação política, não consegue ficar indiferente em face dos relatos tenebrosos descritos pelos autores.
A luta de classes pode não ser necessariamente o motor da história, uma vez que as ações humanas são demasiado complexas para se restringirem a uma única variável. Contudo, não é preciso ser marxista para constatar um descompasso de interesses entre patrões e empregados. Ao buscarem uma existência material mais favorável, os trabalhadores naturalmente demandam melhores condições de trabalho, jornadas mais curtas e maior remuneração. Os empregadores, por sua vez, almejam elevar seus lucros, comprimindo os custos de produção, incluindo os salários.
Se não houvesse algum grau de contradição entre as classes, o movimento operário e o farto repertório de doutrinas sociais simplesmente não teriam a importância que tiveram e continuam a ter.
Entender as condições deploráveis dos trabalhadores durante a consolidação do capitalismo industrial tem um efeito pedagógico, pois torna inteligível o histórico de lutas que existe por trás da conquista dos direitos trabalhistas, até então extremamente restritos – quando não inexistentes. No livro “Viagens à Inglaterra e à Irlanda”, o liberal francês Alexis de Tocqueville5 sintetiza o quadro de barbárie das grandes metrópoles de sua época: “Deste esgoto imundo jorra ouro puro. Aqui a humanidade atinge o seu mais completo desenvolvimento e sua maior brutalidade, aqui a civilização faz milagres e o homem civilizado torna-se quase um selvagem”.
Joseph Schumpeter6 argumenta que o capitalismo é um sistema econômico com capacidade de gerar riqueza como nenhum outro concorrente. De modo ambivalente, cada processo de inovação do mercado traz os elementos capazes destruir antigos modelos de negócios. Schumpeter afirmou que esse processo de destruição criativa revela o caráter dinâmico do capitalismo, criando novos vencedores, mas gerando também novos perdedores. Tanto empresários quanto trabalhadores que se convertem em mão de obra dispensável.
Seja pela iminência de um conflito social entre as partes, seja pela tensão estrutural da destruição criativa, as relações entre o capital e o trabalho só poderiam ser amenizadas mediante uma ação conciliatória estabelecida por um terceiro ator: o Estado. Desse modo, a solução para conter os efeitos deletérios de um capitalismo sem rédeas seria, justamente, a criação de um arcabouço jurídico capaz de proteger o elo mais fraco. É importante lembrar que, nesse contexto de formação da classe operária, o papa Leão XIII esboçava preocupação com a possibilidade de dissolução do tecido social e da família, motivo pelo qual revitaliza a doutrina social da Igreja na encíclica Rerum Novarum (1891). Seguindo o espírito da época, a escrita emprega com esmero os léxicos religioso e sociológico em defesa da conciliação de classes, na direção de um capitalismo com feição social, rejeitando as mudanças estruturais do socialismo.
De acordo com o jurista espanhol Manuel Carlos Palomeque Lopez7, o Direito do Trabalho foi criado para dar sustentação jurídica ao conflito de classes. Lopez acredita que o Direito seria o instrumento do Estado para amenizar a exploração, sem, contudo, romper com o sistema capitalista. O conflito de interesses seria uma realidade social pré-normativa, pendente de integração do Direito para a solução ordenada do conflito. Portanto, ele configura uma categoria cultural fruto do sistema capitalista industrial, muito embora o Direito do Trabalho seja ele próprio oriundo da dinâmica de lutas, fosse pela via parlamentar, fosse pela ação direta.
A regulação estatal, por meio da legislação trabalhista, possuía dois objetivos principais. O primeiro é mais evidente: a proteção do trabalhador, a partir da incorporação de direitos e restrições à ação nociva do capital. O segundo, por sua vez, envolve a integração e a institucionalização do conflito entre o trabalho assalariado e o capital, em termos compatíveis com a estabilidade do sistema.
Em contextos de crise econômica, o Direito do Trabalho torna-se um alvo fácil. A crise, ao invés de revelar o colapso de um modelo ultrapassado, elege um culpado para um fenômeno que não se quer reconhecer como estrutural. A culpa normalmente recai sobre o lado mais frágil: os trabalhadores, particularmente as normas trabalhistas que os protegem da superexploração. O sistema de proteção social costuma ser apresentado como elemento impeditivo para novas contratações e um óbice para a recuperação da economia.
Novos tempos, novas relações de trabalho
Tecnicamente, a classe trabalhadora é aquela que, desprovida da propriedade dos meios de produção, vende a sua força de trabalho em troca de remuneração, compondo um conjunto ampliado, heterogêneo e fragmentado de trabalhadores: o operariado industrial, o trabalhador rural, o assalariado, o prestador de serviços, os autônomos, imigrantes, terceirizados, os funcionários públicos, além dos desempregados. Na concepção do sociólogo Ricardo Antunes8, os trabalhadores são a classe-que-vive-do-trabalho, dependendo da venda da sua força vital e de sua energia criativa para sobreviver.
As constantes e rápidas transformações ocorridas no capitalismo impactaram profundamente o mundo do trabalho. Se, por um lado, o conceito de classe trabalhadora – como aquela que vende sua força de trabalho para se sustentar – permanece semelhante àquela do período correspondente ao seu nascimento; por outro lado, o mesmo não se pode dizer do seu perfil e do seu papel como agente político.
Um dos fatores de desunião dos trabalhadores hoje se dá pelos condicionamentos culturais da sociedade contemporânea e suas frágeis “relações líquidas”, tal como descrito por Zygmunt Bauman9. Ela penetra muito mais fundo, alcançando a própria complexidade da nova organização do capital. Enquanto o capitalismo é extremamente dinâmico, célere e internacionalizado; a política – e seus desdobramentos na formação de um sistema de welfare – continua sendo limitada, lenta e completamente territorializada. A heterogeneidade da composição do proletariado contemporâneo contrasta com a imagem dos operários uniformizados e organizados segundo o padrão de acumulação taylorista e fordista. Eis o enorme desafio a ser enfrentado pelas esquerdas democráticas e os sindicatos, de acordo com Manuel Castells10.
Como as relações de trabalho se manifestam hoje? Nota-se uma ampliação acentuada de trabalhadores submetidos a contratos temporários, sem estabilidade, sem registro e à margem da legislação trabalhista. Existe, ainda, a instituição de novas modalidades precárias de contrato, como o Intermitente – a partir das inovações trazidas pela Reforma Trabalhista no Brasil (2017) – e o Zero Hour na Inglaterra, no qual a remuneração do empregado não está submetida a uma carga horária pré-estabelecida, sendo variável de acordo com as horas trabalhadas – podendo até ser zero, inclusive. Há, ainda, o surgimento de categorias informais e precarizadas, dentro do fenômeno da “pejotização” e da “uberização”. Embora alguns autores especulem sobre um mundo pós-trabalho, as perspectivas apresentadas pela nova morfologia do trabalho são, ao contrário, desoladoras.
A nova classe trabalhadora heterogênea e informal faz nascer novos desafios para os sindicatos verticalizados de classe. Estes possuem cada vez mais dificuldade para categorizar, incluir e defender os interesses da categoria. A afirmação da necessidade de revitalização dos organismos sindicais se sustenta quando se observa o quanto estes foram fundamentais no passado. Os sindicatos de classe devem compreender a nova morfologia do trabalho e organizar o conjunto dos trabalhadores, incluindo o novo proletariado de serviços. Caso contrário, estarão cada vez mais restritos a um contingente minoritário e parcial.
Conforme explica Thomas Piketty 11, os sindicatos, em conjunto com partidos de orientação social-democrata, trabalhista ou socialista, foram fundamentais para construir os sistemas de bem-estar social que hoje se encontram em processo de desmonte. O problema é que essa sinergia ocorreu em contextos anteriores à aceleração da globalização econômica, sendo impossível a mera reprodução de estratégias e de programas pretéritos. Reformar sindicatos e partidos não será tarefa fácil, vez que o receituário a ser aplicado precisará ser completamente reinventado para se adaptar à nova e complexa dinâmica capital-trabalho.
A falsa dicotomia entre “desemprego com direitos” ou “emprego sem direitos”
No atual cenário de crise, a desintegração das leis trabalhistas e o desmonte do Estado social começam a ser evocados – de forma implícita ou explícita – pelas elites com horizonte de perda de privilégios nesse processo de mudanças estruturais da forma de vida, como solução para a recuperação econômica e a geração de empregos. A ideia de ter que optar entre “desemprego com direitos” ou “emprego sem direitos” acaba por esgarçar os já combalidos laços de solidariedade. Em face da imposição de um modelo econômico único, cujos prognósticos são formulados por uma tecnocracia que se legitima na “verdade indiscutível” dos analistas do mercado, busca-se anular as possibilidades de debates sobre as vias alternativas de condução da economia capitalista.
Tal denúncia, que já havia sido feita por Jacques Rancière12, Tzvetan Todorov13 e Manuel Castells14, tem retornado em novos autores, destacando-se o jovem cientista político alemão Yascha Mounk.
O resultado desse processo é a uniformização dos programas econômicos dos grandes partidos. A despeito das diferenças no campo da retórica, a práxis política das legendas do mainstream apresentam espantosas semelhanças, causando justificado mal-estar com a política tradicional. A insatisfação social sempre cresce quando as desigualdades se afloram e quando o futuro se apresenta de forma pouco auspiciosa. Por fim, a atmosfera de instabilidade começa a fazer tremer os pilares do Estado democrático de direito, abrindo os bueiros do fanatismo e da intolerância. Por essa razão, a escolha não será entre “empregos” ou “direitos”, mas entre “direitos” ou “barbárie”.
Notas:
1 HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Penguin, 2017.
2 ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
3 DICKENS, Charles. Oliver Twist. São Paulo: Hedra, 2011.
4 ENGELS, Friedrich. Situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
5 TOCQUEVILLE, Alexis. Viagens à Inglaterra e à Irlanda. São Paulo: Imaginário, 2000.
6 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. São Paulo: Unesp, 2017.
7 LOPEZ, Manuel Carlos Palomeque. Direito do Trabalho e Ideologia. Coimbra: Almedina, 2001.
8 ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo. 2018.
9 BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
10 CASTELLS, Manuel. Ruptura: crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
11 PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
12 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
13 TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
14 MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
Leandro Gavião é doutor em História Política (UERJ) e professor da Universidade Católica de Petrópolis e da pós-graduação do Curso Clio/Damásio.
Gabriella Bento de Oliveira é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis, com atuação na área de Direito do Trabalho e Previdenciário.