Os efeitos da crise global gerada pela pandemia do coronavírus são sentidos de maneira desigual por trabalhadoras e trabalhadores de diferentes setores. Com as crescentes medidas de restrição de contato social, como isolamento e quarentena, as trabalhadoras domésticas sofrem especialmente com o risco da contaminação nos meios de transporte coletivos e em seus locais de trabalho. Além disso, também sofrem o risco da perda de suas fontes de renda.
Pedro Augusto Gravatá Nicoli e Regina Stela Corrêa Vieira
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 24/03/2020
O primeiro caso de óbito pelo Covid-19 registrado no Estado do Rio de Janeiro foi de uma trabalhadora doméstica de 63 anos, que aparentemente teve contato com a patroa que havia retornado da Itália e estava com a doença. Casos como esse revelam que as proteções trabalhistas básicas que deveriam ser garantidas às trabalhadoras domésticas empregadas, com vínculo formal registrado, infelizmente não têm tido aplicação imediata.
Se para as trabalhadoras formalizadas garantir seu direito à quarentena já é complexo, para trabalhadoras diaristas é ainda mais. A necessidade de dispensá-las de suas atividades é acompanhada pela questão da manutenção dos pagamentos pelos patrões. Há um dever de tomadores desse tipo de serviço manterem os pagamentos?
Do ponto de vista jurídico, pode parecer haver dúvida sobre tal obrigação à primeira vista. Mas trata-se de uma dúvida infundada, frente à qual afirmamos: trabalhadoras domésticas, incluindo as chamadas diaristas, têm direito à remuneração durante os períodos vistos, na crise, como de quarentena.
É certo que a posição tradicional no Direito do Trabalho brasileiro, desde a Lei n. 5.859/72 até o atual marco regulatório, pós-Emenda Constitucional n. 72/2013 e Lei Complementar n. 150/2015, encaminha-se no sentido do não reconhecimento de direitos trabalhistas típicos à chamada diarista doméstica. No art. 1º da LC 150/2015, está textualmente estabelecido que as proteções legais só se aplicariam a quem “presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”. A relação de emprego doméstico, diriam as interpretações hegemônicas, só se configuraria se o trabalho se realizasse em continuidade, por mais de dois dias por semana a uma mesma família ou pessoa. As trabalhadoras que prestem serviços por até dois dias são, assim, consideradas diaristas, trabalhadoras descontínuas, sem direitos trabalhistas típicos.
Tal dispositivo, contudo, ao segregar trabalhadoras domésticas por meio de exceção à configuração da habitualidade na relação de emprego, não deve ser considerado mais vigente em nossa ordem jurídica. Além de sua questionável constitucionalidade, desde a origem, um fato novo ocorreu depois da promulgação da Lei Complementar n. 150/2015: o Brasil ratificou a Convenção n. 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência especializada da ONU que disciplina internacionalmente as relações de trabalho. A Convenção n. 189, que trata de tema típico de direitos humanos, com proteção a direitos mínimos de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, foi ratificada por meio do Decreto Legislativo 172/2017. O instrumento formal da ratificação foi depositado junto à OIT no início de 2018 e, atualmente, o conteúdo da Convenção tem força normativa plena no Brasil.
A Convenção n. 189 da OIT expressamente dispõe que “se aplica a todos os trabalhadores domésticos” (art. 2º) e que os países que ratificam a Convenção devem “assegurar que trabalhadores domésticos, como os trabalhadores em geral, usufruam de condições equitativas de emprego e condições de trabalho decente” (art. 6º). Ou seja, devem ser aplicadas normas de maneira igualitária em face do trabalho em geral e sem qualquer distinção entre tipos de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, como ocorre na distinção temporal da diarista no Brasil. Para a Convenção, nos termos do art. 1(b), “o termo ‘trabalhadores domésticos’ designa toda pessoa, do sexo feminino ou masculino, que realiza um trabalho doméstico no marco de uma relação de trabalho”. Sem qualquer demarcação temporal, relativa à frequência do trabalho, específica para tanto.
O art. 1(c) da mesma Convenção 189 estabelece uma exclusão que, à primeira vista, poderia gerar alguma dúvida. Dispõe que “uma pessoa que executa o trabalho doméstico apenas ocasionalmente ou esporadicamente, sem que este trabalho seja uma ocupação profissional, não é considerada trabalhador doméstico”. Esse, contudo, não é o caso das diaristas domésticas no Brasil, que trabalham nos serviços domésticos como ocupação profissional. A própria OIT já se manifestou sobre a questão, especificando que diarista não é trabalhadora ocasional. A Convenção, para a própria OIT, assegura “que trabalhadores diaristas e trabalhadores precários semelhantes permaneçam incluídos na definição de trabalhador doméstico”[1].
Em face disso, a distinção empregada vs. diarista derivada do art. 1º da LC 150/2015 foi revogada pela disposição convencional de direitos humanos, temporalmente posterior e hierarquicamente superior. Do ponto de vista temporal não parece haver dúvida alguma da revogação. E, ainda que houvesse, a natureza hierárquica da Convenção n. 189 da OIT (no mínimo supralegal no entendimento do Supremo Tribunal Federal) não deixaria espaço para quaisquer questionamentos.
Portanto, dentro de uma interpretação sistemática das normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, as proteções previstas na Convenção n. 189, na Constituição e na Lei Complementar n. 150/2015 são plenamente aplicáveis às trabalhadoras diaristas domésticas que se sustentam por meio desta ocupação. Isso significa que qualquer proteção pensada para trabalhadoras e trabalhadores em geral deve ser aplicada às trabalhadoras domésticas de forma igual. A todas elas.
Nas mídias eletrônicas e redes sociais, um importante movimento de sensibilização apela aos sentimentos humanitários, clamando a indivíduos e famílias que dispensem as trabalhadoras diaristas sem deixar de pagar as diárias. O “Manifesto das filhas e dos filhos de empregadas (os) domésticas (os) e diaristas” é um exemplo cortante desse apelo. Ainda que, na prática, a postura de patrões no ambiente doméstico seja decisiva para o que poderá acontecer, é preciso que se reforce que o dever de proteger empregadas e diaristas não é só moral ou humano. É também uma obrigação jurídica.
Notas:
[1] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Decent work for domestic workers. Report IV(1) for the International Labour Conference, 100th Session. Genebra: ILO, 2011, p. 5.Pedro Augusto Gravatá Nicoli é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Professor Visitante na Duke University (2019-2020) e Doutor em Direito pela UFMG.
Regina Stela Corrêa Vieira é Professora Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina e Doutora em Direito pela USP.
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