Dialética do jogo orçamentário

Torna-se imperativo deslocar a alienação e a resignação impostas, substituindo-as por uma orientação capaz de levar a processos de desfinanceirização e desprivatização das finanças públicas.

José Celso Cardoso Jr.

Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 27/06/2022

Reina no Brasil, para desespero de milhares de pessoas e famílias em estado de necessidade e vulnerabilidade social, uma lógica econômica perversa, que é de difícil apreensão pelo senso comum e de explícita aceitação por segmentos da grande mídia e do pensamento conservador de modo geral. Trata-se da infeliz combinação entre fiscalismo e financismo (ou rentismo) no trato das finanças públicas brasileiras.

A partir de uma análise de conjunto dos capítulos contidos no livro Dominância financeira e privatização das finanças públicas no Brasil (Fonacate, 2022), é possível constatar a montagem paulatina de um arranjo normativo e institucional de índole fiscalista e financista no Estado brasileiro, arranjo este responsável pelo fenômeno de privatização das finanças públicas nacionais que buscamos definir e caracterizar no livro.

Por índole fiscalista entenda-se o conjunto de medidas que, desde a Lei de Finanças de 1964 (Lei 4.320/1964), passando pela Lei Complementar n. 101/2000 (conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), pela Emenda Constitucional n. 95/2016 (que instituiu o teto de gastos, a vigorar por vinte exercícios financeiros, estabelecendo limites individualizados para as despesas primárias), até chegar ao pacote de Propostas de Emenda Constitucional (PEC) n. 186/2019 (convertida na EC 109/2021), PEC n. 187/2019 (que propõe, fundamentalmente, a extinção de fundos públicos com vistas ao redirecionamento de recursos para um suposto abatimento da dívida pública), PEC n. 188/2019 (que visa à extinção do PPA, cortes de gastos com pessoal e reorganização do arranjo fiscal interfederativo) e PEC 32/2020 (equivocadamente chamada de reforma administrativa), vai-se consolidando um arranjo normativo e institucional que engendra, fundamentalmente, um processo de enrijecimento do gasto público real e criminalização da sua gestão/execução orçamentária.

De sua parte, por índole financista/rentista entenda-se o conjunto de medidas que, em par àquelas citadas acima e tantas outras presentes no Anexo 1 do Capítulo 9 do referido livro, tais como a Lei nº 9.249/95, a Lei nº 11.803/2008 e a Lei 13.506/2017, protegem judicial e politicamente o sistema financeiro brasileiro, tanto do controle social público, como da punição criminal contra ilícitos financeiros cometidos, tais como evasão de divisas, fraudes e remessas a paraísos fiscais. Todos esses regramentos sinalizam para ampla liberdade, a exemplo da recém aprovada autonomia do Banco Central (PLP 19/2019, sancionado em fev/2021), e grande raio de manobra para o gasto público financeiro, isto é, para a sua flexibilização sem limite superior e blindagem legal, justamente o oposto do tratamento que vem sendo conferido ao gasto primário real do setor público brasileiro.

Tudo somado, ambos os processos fazem com que o Estado brasileiro, por meio do dito arranjo normativo e institucional de finanças públicas, venha sendo historicamente conduzido e constrangido a atuar mais perfilado a atender aos interesses empresariais imediatos e do processo de acumulação financeira, que os interesses diretos e prementes de sua população, a grande maioria, aliás, ainda distante da cidadania efetiva e do desenvolvimento integral da nação. Assim, por meio dos atos normativos listados na linha do tempo do fenômeno da privatização das finanças públicas no Brasil (Cap. 9, Anexo 1), é possível demonstrar que vem se desenvolvendo no país um processo contínuo e cumulativo de institucionalização, de cunho ao mesmo tempo fiscalista e financista, e um enrijecimento jurídico-normativo das funções de orçamentação e controle interno dos gastos públicos, tudo isso a partir de uma contradição associada à retórica da transparência das contas e da responsabilização dos agentes públicos.

Abaixo dessas determinações mais gerais, (des)organiza-se um processo dinâmico e complexo de “disputas, cooperação, comandos hierarquizados e espaços de autonomia fragmentados” em torno do que se chama hoje de governança orçamentária, que “compreende essas relações, por meio de regras formais e informais, que se dão ao longo do processo orçamentário, de elaboração, aprovação, execução, avaliação e controle dos recursos e gastos públicos”.[i] Embora nem a exegese dos atos normativos, nem a identificação plena dos principais atores envolvidos nos conflitos em torno da governança orçamentária sejam passíveis de serem realizadas nos limites deste texto, é preciso ter claro que esta dinâmica está na base concreta da formatação do tal arranjo institucional de índole fiscalista e financista de finanças públicas aqui em tela.

O período recente demonstra que o ritmo das alterações normativas foi acelerado e novas modificações continuam em pauta, com lacunas relevantes. A relação do planejamento com o orçamento, com foco nos resultados das políticas públicas à sociedade, fragiliza-se em sintonia com a ênfase eminentemente fiscal/financeira do gasto público. Os controladores do gasto público, dotados de instrumentos e amparo legal, inibem, ao lado dos guardiões do orçamento, a ação dos executores de políticas públicas, ao mesmo tempo em que preservam sua posição de definidores de gastos prioritários. No entanto, a própria capacidade do Executivo de promover suas prioridades é limitada, revelando a fragilidade do equilíbrio atual (Couto e Cardoso Jr., 2018).

A situação atual de desequilíbrios e disfuncionalidades é também derivada de eventos cumulativos prévios que, desde as décadas de 1980 e 1990, ajudaram a condicionar a primazia das dimensões fiscais e financeiras das finanças públicas sobre as dimensões do planejamento e da implementação das políticas públicas. Tudo isso de modo a transmitir ao mercado financeiro e aos demais agentes privados (nacionais e estrangeiros) a sensação de confiança na capacidade do governo de honrar seus compromissos com a sustentabilidade e a solvabilidade da dívida pública federal, desde então gerida pela lógica dominante da financeirização.

Esta se processa, na prática, por meio de um diferencial sempre positivo entre as taxas de juros pagas pelo governo sobre os seus títulos, com garantia certa de recompra junto aos seus credores, e as taxas de juros ou a eficiência marginal do capital privado potencialmente obtidas em alternativas não governamentais de valorização. Sendo a manutenção da estabilização monetária a função-objetivo primordial da gestão macroeconômica desde o Plano Real, e considerando ainda o ambiente político-ideológico da década de 1990, de liberalização dos mercados e de redução do papel e do tamanho do Estado brasileiro em suas relações com a sociedade e o mercado, não é de estranhar que, do ponto de vista estratégico, até mesmo a função-planejamento tenha sido interpretada e aplicada para reforçar o caráter fiscalista/financista do orçamento, relegando-se a um segundo ou terceiro planos a estruturação dos condicionantes técnicos e políticos necessários à institucionalização do PPA como instrumento central do processo de planejamento governamental no país.

Com isso, foram dados passos largos no processo de institucionalização da política de geração de superávits fiscais primários permanentes. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais significativos do fenômeno de privatização das finanças públicas no Brasil, uma vez que reflete um conjunto de orientações adotadas pelos organismos multilaterais em seus procedimentos de negociação com os governos dos países membros. Tudo somado, no bojo dos processos de institucionalização e empoderamento das funções de orçamentação e controle dos gastos públicos federais, e constrangido ainda pela visão canônica do orçamento equilibrado no âmbito da teoria dominante (porém equivocada!) de finanças públicas, segundo a qual a capacidade de gasto e investimento de um ente estatal qualquer deve estar em função da capacidade prévia de poupança própria e qualquer déficit anual contábil nessa relação é necessariamente inflacionário, foi-se cristalizando no Brasil – conceitual e juridicamente – a crença inconveniente de que os instrumentos de planificação, orçamentação e controle dos gastos públicos deveriam abarcar o conjunto completo de políticas, programas e ações de governo com manifestação orçamentária.

Como consequência, desde então vem ganhando peso discursivo e materialidade institucional o movimento de contabilização integral e detalhada da despesa pública, a qual, por sua vez, deveria ser governada a partir da lógica liberal do orçamento equilibrado, isto é, da ideia forte de poupança prévia como pré-condição para toda e qualquer rubrica de gasto corrente ou investimento do governo. O resultado final, para fechar o cerco, é que a função controle cresceu e se desenvolveu, normativa e operacionalmente, para controlar (vale dizer: vigiar e punir) os desvios de conduta do poder público (nesse caso, dos próprios burocratas ordenadores de despesas públicas) em desacordo com os preceitos definidos pela lógica liberal do orçamento equilibrado.

Assim, antes nascida sob o signo da busca republicana por transparência e responsabilização coletiva dos recursos públicos, a função-controle rapidamente se transformou em agente de inibição e criminalização do gasto público e dos seus operadores ou executores. Neste particular, é preciso explicar que finanças públicas sustentáveis são algo diverso de finanças públicas estéreis. Finanças sustentáveis são aquelas assentadas em gastos primários responsáveis por políticas públicas, cujos efeitos agregados (e respectivos multiplicadores) tendem a ser positivos na medida em que geram emprego, renda, lucros e tributos ao longo do ciclo econômico. Seus determinantes são de ordem social, econômica e política.

Já as finanças estéreis são aquelas de natureza e/ou destinação financeira, cujos multiplicadores são negativos e seus efeitos agregados contribuem para a ampliação do desemprego, pobreza e concentração de renda. Seus determinantes são autônomos, endógenos, não baseados em fatores reais da economia. Daí que o problema não é o déficit ou a dívida pública em si, mas apenas a sua composição e forma de financiamento ao longo do tempo. Evidentemente, a composição e a forma de financiamento da dívida federal brasileira são ruins, pois assentadas na lógica de valorização financeira dos seus fluxos e estoques.

Todos os dados oficiais disponíveis mostram haver um grande comprometimento anual de recursos públicos destinados ao gerenciamento (leia-se: garantia de liquidez e solvabilidade) da dívida pública federal brasileira. Significa que a captura da gestão da dívida pública pela lógica das finanças especulativas continua sendo um dos principais entraves ao crescimento econômico e um constrangimento inaceitável ao cumprimento dos direitos sociais no país.

Não por outra razão, chamamos de austericídio ao conjunto de pressupostos ideológicos e diretrizes de política macroeconômica que conformam um arranjo institucional de gestão da área econômica do governo que, além de possuir precária fundamentação teórica e histórica, produz resultados opostos aos desejados, com enormes e negativas repercussões sobre a capacidade de crescimento, geração de empregos e distribuição de renda e riqueza numa sociedade, tal qual a brasileira, já marcada estruturalmente por imensas heterogeneidades, desigualdades e necessidades de várias ordens.

Significa dizer que os instrumentos de política econômica defendidos pelo liberalismo econômico se converteram na finalidade última desses sistemas. Os meios (isto é: a propriedade privada como fundamento, a concorrência como princípio, a acumulação de capital monetário como objetivo maior) se converteram em fins em si mesmos do modelo, retirando de cena tanto os pressupostos sob os quais tal economia realmente funciona, como as consequências concretas deletérias para o planeta e a espécie humana que tal mecanismo engendra.

O colapso ambiental, a deterioração das condições de trabalho e existência, a financeirização (e exclusão) da renda e da riqueza, o empobrecimento cultural e civilizatório de modo geral, tudo isso como consequência direta – e abjeta – do liberalismo econômico, converteram-se em fatos normais e naturais da realidade alienada ou resignada das sociedades contemporâneas.

Em suma, os processos aqui narrados vão então institucionalizando o fenômeno da financeirização da Dívida Pública Federal e privatização/privilegiamento da sua gestão pelas autoridades monetária (BCB) e fiscal (STN) do país. Como dito acima, tais fenômenos promovem, em função do arranjo normativo em consolidação, bloqueios e limites superiores ao gasto fiscal primário de natureza real, justamente o gasto que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental.

Simultaneamente, consolidam-se regramentos que representam tanto a flexibilização sem limite superior como a blindagem política (inclusive para fins criminais) do gasto público financeiro, cujos principais beneficiários são as instituições financeiras (bancos, corretoras, seguradoras), fundos de investimento e demais agentes econômicos de grande porte, inclusive estrangeiros com atuação no país.

Diante disso, fruto da indignação propositiva com a qual se reconstroem as sociedades e seus países, torna-se imperativo deslocar a alienação e a resignação impostas pela teoria ruim e por práticas nefastas de política econômica, substituindo-as por uma orientação geral capaz de levar o Brasil a processos consistentes e decididos de desfinanceirização e desprivatização das finanças públicas. Afinal, o Brasil pode mais!

Notas

[i] Cf. COUTO, L. e CARDOSO JR., J. C. Governança Orçamentária: transformações e lacunas nas práticas de planejamento e orçamento no Brasil. Brasília: Boletim de Análise Político-Institucional (BAPI), n. 19, Diest/Ipea, 2018.

José Celso Cardoso Jr. é doutor em economia pela Unicamp, é servidor público federal no Ipea e atual presidente da Afipea-Sindical.

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