Lorena Holzmann
Há alguns anos atrás, participando de um debate alusivo à data de 8 de março – Dia Internacional da Mulher – ouvi de outras participantes (uma jornalista e uma psicóloga) a opinião de que a data era coisa superada tendo em vista as grandes conquistas das mulheres nas últimas décadas em todas as esferas da vida.
Conquistas? Que conquistas? Podem assim ser consideradas práticas vigentes ao redor do mundo, tais como o apedrejamento de mulheres por suspeita de adultério, a mutilação genital de meninas e jovens, o casamento obrigatório escolhido pelo pai, a proibição de mostrar o rosto, estudar, escolher uma profissão, andar desacompanhada na rua, dirigir automóvel, ser punida com a morte por desobediência ao marido, a prática recorrente da agressão física, psíquica e sexual dentro da própria família, na defesa masculina da concepção de posse sobre as mulheres, entre tantas outras atrocidades?
Houve conquistas, sem dúvidas, mas muito ainda precisa avançar para assegurar a nós, mulheres, condições plenas de cidadania e respeito a nossa individualidade e autonomia. As diferenças da condição feminina ao redor do mundo, com avanços em alguns contextos, mas com persistência de práticas cruéis em outros, evidenciam que a comemoração de um dia focado na discussão dessa condição é ainda relevante e necessária. É preciso olhar o mundo para além do próprio umbigo e não considerar como universal uma experiência pessoal de vida.
A presença da mulher no mundo do trabalho, desde a revolução industrial do século XVIII, tem sido recorrente, assim como muitos problemas por elas vivenciados. O cinema tem dado conta dessa longa trajetória, na qual se combinam superações e permanências.
A pretensa inferioridade intelectual da mulher e sua incapacidade de gerenciar negócios são rejeitadas nas narrativas de Uma secretária de futuro (Mike Nichols, Estados Unidos, 1988) e Amor sem escalas (Jason Reitman, Estados Unidos, 2000), cujas personagens são executivas de alto padrão em grandes empresas, ou jovens ambiciosas em processo de formação tendo em vista a ascensão no mundo corporativo. No entanto, não estão a salvo do assédio masculino, por vezes condição para conquistar a promoção desejada ou manter o próprio emprego.
A visão masculina da mulher como uma presa a ser dominada e domada é recorrente no espaço de trabalho e também em outras esferas da vida, mas vamos tratar aqui apenas da esfera do trabalho.
A vulnerabilidade da mulher diante do poder masculino se reproduz ao longo do tempo. Obras relevantes na história do cinema dão conta dessa realidade. Em Germinal (Claude Berri, França, 1993 ), em Terra prometida (Andrzey Wagda, Polônia, 1975 ), em As sufragistas (Sarah Gavron, UK, 2015), no seriado A fábrica, exibida recentemente em canal fechado de TV, e em tantos filmes que abordam o início da produção industrial, o assédio masculino sobre mulheres subordinadas a sua autoridade no local de trabalho é fato recorrente. Sempre diante de situações que fragilizam a capacidade de resistência às investidas masculinas – pobreza, doenças, encargos de família – ceder a essas investidas pode ser a única possibilidade de garantir o emprego e a própria sobrevivência. Quando não existiam leis de proteção ao trabalho, limitando a arbitrariedade dos empregadores, também os homens eram muito vulneráveis ao poder do patronato. No entanto, a particularidade para as mulheres, sobretudo se jovens, era a cobrança de favores sexuais em troca da própria sobrevivência.
Era e ainda continua sendo. Filmes que abordam as condições de trabalho em tempos mais recentes mostram a permanência desse constrangimento, que, diante de leis que visam a proteção dos trabalhadores e especialmente das mulheres, inibem essa prática abertamente, mas não a eliminam. Apenas a tornam mais discreta, às vezes. No já mencionado Uma secretária de futuro, em Pão e rosas (Ken Loach, Espanha/França/Suiça, 2000), os mesmos constrangimentos são impostos às mulheres. Em Terra fria (Nike Cato, Estados Unidos,2005), o confronte entre homens e mulheres decorre da disputa pelos postos de trabalho numa mineradora, num contexto de aumento de desemprego. Temendo a perda de seus empregos para as mulheres, os operários as tratam com desrespeito, com grosserias, ridicularizando-as, atacando-as em sua sexualidade, considerando-as como vadias. A denúncia da protagonista da história sobre as condições de maus tratos a que são submetidas, feita aos dirigentes da empresa, é desconstruída pelos dirigentes do sindicato dos operários, que se aliam aos patrões na recusa a aceitar as denúncias. Havia o agravante da denunciante ser mãe solteira, o que a desmerecia diante dos interlocutores. Era a aliança do poder masculino acima dos interesses de classe.
Fora da ficção do cinema (cujas narrativas, por vezes, baseiam-se em eventos reais), investigações realizadas no mundo do trabalho por pesquisadores e pesquisadoras enfatizando as condições laborais das mulheres têm identificado a permanência de discriminação contra as elas, traduzidas em bloqueios a promoções na hierarquia das empresas sob a alegação de seu despreparo para tarefas dirigentes; a penalização de suas possibilidades profissionais decorrentes da maternidade, da responsabilidade com o cuidado dos filhos e de outros membros da família; a prioridade dada por elas à família em detrimento do interesse pelo trabalho; a instabilidade emocional diante de desafios e de conflitos (mulher chora por qualquer coisa!); o “dom natural” a tarefas minuciosas, de detalhes, sem exigência de longa formação (nascem sabendo). Daí decorrem os salários menores pagos às mulheres, sua concentração em setores nos quais o trabalho é repetitivo, monótono, e os efeitos negativos sobre a saúde mais recorrentes.
Recorrente também a ação do macho sobre sua presa natural, o assédio sexual e moral, incorporado à pauta de luta das mulheres (e também dos homens, no caso do assédio moral) pela dignificação no trabalho.
É inegável o avanço das mulheres no acesso a direitos trabalhistas e de reconhecimento à importância social de sua condição como geradora de vida e nutriz, assegurados por legislação que contemple essas especificidades. Mas elas são muito desiguais ao redor do mundo e não suficientemente amplas e gerais que possam descartar a validade de manter um dia dedicado ao debate sobre os problemas das mulheres, no trabalho, na família e em qualquer âmbito da vida. Permanecem na pauta reivindicações de salário igual para trabalho igual, debate sobre o direito ao aborto e acesso à contracepção, medidas contra a violência doméstica, entre outras. Em sociedades em que a inferioridade e subordinação das mulheres estão alicerçadas em tradições profundamente arraigadas, as demandas são de outra natureza e de outra dimensão, na medida em que, quase sempre, justificadas com argumentos sagrados e imutáveis.
Por isso, é válida e necessária a manutenção de um dia em que esse cotidiano seja posto na berlinda, debatido, e formas coletivas de superação sejam buscadas. É preciso ver o mundo além das próprias condições que algumas de nós conquistamos, construindo uma vida com independência e autonomia. Ampliar o horizonte de nossas percepções é urgente. Então,
VIVA O 8 DE MARÇO, DIA INTERNACIONAL DA MULHER
( homens são bem-vindos nessa luta).
Lorena Holzmann é Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS.
[…] na defesa masculina da concepção de posse sobre as mulheres, entre tantas outras atrocidades? Continua. Fonte: Democracia e Mundo do […]