Desordem social: quarentena, teletrabalho e saúde do trabalhador

Fotografia: Dimitri Karastelev/Unsplash

Onde há maior caos social? Em uma pandemia ou em disseminar a maior crise da saúde física e psicológica dos trabalhadores?

Letiane Nogueira Ramos

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 13/04/2020

O caos social decorrente da crise sanitária vivida hoje no mundo não é novidade, entretanto, um questionamento é recorrente e objeto de estudo: onde há maior caos social? Em uma pandemia ou em disseminar a maior crise da saúde física e psicológica dos trabalhadores?

O tema pouco divulgado e analisado atualmente é: como equilibrar o campo físico e o emocional em meio a uma trajetória de crise sanitária e redução de direitos trabalhistas?

Com a vigência da Lei nº 13.647/17, comumente denominada “reforma trabalhista”, o estudo era acerca das inovações tecnológicas e a influência desse cenário nas relações de trabalho, tanto que disciplinou o teletrabalho. [1] E ainda a existência de uma invisibilidade do descontrole? [2]

Nos limites do presente estudo, e em uma análise ao regime de teletrabalho imposto, inclusive, como medida de enfrentamento do estado de calamidade, debruçamo-nos acerca da saúde e da segurança do trabalhador.

O teletrabalho é conceituado como aquele realizado fora das dependências da empresa com a utilização de tecnologias, ex vi do artigo 75-B da CLT: “Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”.

Por sua vez, justifica-se a adoção do teletrabalho com a finalidade de evitar o contato social em meio a uma crise sanitária de propagação de um vírus, tanto que o artigo 3º da Medida Provisória 927 trouxe como medida tal modalidade de prestação de serviços, entretanto, alterou e apresentou novas nuances à modalidade, ao contrário das previsões celetistas.

Desse modo, os artigos 4º e 5º da referida norma apresentam a possibilidade de alteração do regime presencial de trabalho para o teletrabalho unilateralmente pelo empregador, em homenagem ao seu poder diretivo, ou seja, sem qualquer concordância do empregado, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado, inclusive, o registro prévio da alteração no contrato de trabalho, redação antagônica à celetista.

A medida de urgência imposta apresenta resumidamente como requisito apenas a notificação prévia do empregado com antecedência mínima de 48 horas por meio escrito ou por meio eletrônico. Além disso, toda a infraestrutura e os dispositivos eletrônicos para o teletrabalho deverão ser definidos em contrato escrito, firmado previamente ou no prazo de 30 dias, contado da data da mudança do regime de trabalho.

Uma discussão que ainda nos parece não superada é o distanciamento das regras de saúde e segurança dos trabalhadores em regime de teletrabalho, seja por falta de informação ou dificuldade de fiscalização pelo empregador e pelos órgãos de fiscalização dos procedimentos obrigatórios relacionados a segurança e saúde do trabalhador, inclusive, disposta em Normas Regulamentadoras, como local dedicado ao teletrabalho e ergonomia, entre outras, diante do direito constitucional da inviolabilidade do domicilio. Aliás, a própria vigilância da jornada de trabalho fica prejudicada, tanto que a redação do artigo 62, III, da CLT afirma que o empregado em regime de teletrabalho está excluído da proteção da jornada de trabalho.

Assim, o questionamento ressurge: como ficarão a saúde e a segurança dos trabalhadores com a alteração do regime de trabalho para o teletrabalho durante a pandemia?

O artigo 4º, parágrafo 5º, da Medida Provisória acima destacada apresenta ainda que a duração da jornada poderá ser superior ao limite constitucional, inclusive com supressão de intervalos de saúde e segurança do trabalhador. Vejamos: “O tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo”.

A Nota Técnica sobre a Medida Provisória apresentada pelo Ministério Público do Trabalho descreve o artigo citado: “Veja-se que, ao dispor, genericamente, que o uso de aplicativos e programas de comunicação não configura jornada ou tempo à disposição, não se está garantindo devidamente o direito do repouso do trabalhador. Evidente que, na modalidade de teletrabalho ou trabalho à distância, o controle realizado pelo empregador se dá também por meio de aplicativos de mensagens, como WhatsApp, telegrama, Skype, e-mail, dentro outros. O empregado, ao receber as mensagens, permanece alerta, à disposição para responder, realiza a tarefa solicitada e presta contas do andamento das atividades, havendo que se respeitar a duração do trabalho disposta no artigo 7º, XIII, Constituição da República”. [3]

Observa-se que o distanciamento das regras de duração da jornada e condições de trabalho resulta em retrocesso social, mas também, e principalmente, no adoecimento de trabalhadores. Não é razoável também a edição de normas com assuntos de grande relevância social como Medidas Provisórias sem, contudo, diálogo social e consulta tripartite de forma célere entre representantes do governo, trabalhadores e empregadores, nos termos da Convenção nº 144 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). E, em um plano jurídico constitucional, é a redação do artigo 7º, caput, da Constituição Federal a admitir apenas previsões desde que “visem à melhora da condição social”.

Por seu turno, ainda em análise da redação da “reforma trabalhista” sobre o aspecto de saúde e segurança do trabalho, nem haveria de se falar na retirada da proteção constitucional de duração do trabalho aos trabalhadores em regime de teletrabalho, visto que caminha para um retrocesso social.

Analisando o teletrabalho antes da pandemia, em um relato de um estudo de um trabalhador no caso na Shell Brasil, empresa que, desde 2000, promove a migração de alguns funcionários para o regime home-office, apresenta: “O mais negativo é que eu trabalho mais. Eu acho que não me desligo do trabalho, estou sempre trabalhando. Parece que a Shell está dentro da minha casa (…) que, a qualquer momento, eu posso ser acionada. (…) A barreira entre a minha casa e o trabalho não existe mais, ficou muito tênue”. [4]

Dessa feita, a percepção do trabalhador fica confusa, na ausência de distinção de trabalho e vida pessoal, amoldando uma jornada mais longa à identificação com o sucesso extrínseco na carreira.

Outro dado importante é que empregados em teletrabalho são propensos a se tornarem workaholics, patologia psíquica que afeta consideravelmente a saúde do trabalhador, caracterizada pelo “vício” em trabalho, no que concerne às consequências para o trabalhador: “No que concerne às consequências do workaholismo, as investigações enfatizam o seu lado negativo (e.g. Killinger, 1991), muito embora alguns trabalhos sugerem haver benefícios para indivíduos e organizações (e.g. Machlowitz, 1980). Os dados obtidos neste estudo corroboram a perspectiva negativa, havendo apenas uma resposta de carácter positivo (progressão na carreira). Todos os restantes sujeitos focam factores nocivos como o afastamento de amigos e família, problemas pessoais e de saúde ou perda de valores. As consequências do workaholismo são analisadas segundo várias perspectivas: satisfação com o trabalho e carreira; saúde mental, perfeccionismo e desconfiança; sucesso na carreira, relações sociais e saúde física; e o papel do tempo (curto prazo vs longo prazo)” (Gomes; Soares, 2011). [5]

Portanto, a pesquisa revela a influência do ambiente de trabalho do empregado na patologia, impulsionada pela produção de metas e resultados e, de modo consequente, demonstra exclusão social e familiar, saúde afetada e perda de valores.

Não se pode olvidar as possíveis patologias psíquicas com a realização do teletrabalho, como depressão, pela mescla da vida pessoal com a profissional, assédio psicológico, ansiedades, jornadas exaustivas, solidão, entre outros fatores, que se tornaram a causa mais frequente de afastamento do trabalho no mundo, segundo o 1º Boletim Quadrimestral sobre benefícios por incapacidade 2017 (BRASIL, 2017d). [6]

No cenário atual, a situação mundial em relação ao novo coronavírus, classificada como pandemia, o que significa dizer que há risco potencial de a doença atingir a população mundial de forma simultânea e, portanto, fazer com que parte da população se previna da contaminação e mantenha-se em isolamento, pode ser um agravante à saúde física e psíquica dos trabalhadores.

O isolamento proposto atingiu sensivelmente o campo social e o profissional de muitos trabalhadores, principalmente aqueles aos quais foi imposto o regime de teletrabalho, tanto que ocasionou uma desordem pela adoção de sucessivas Medidas Provisórias como as de nº 927, 928 e 936, todas de 2020. Entretanto, também atingiu o campo físico e o emocional de muitas pessoas, sem prejuízo dos equívocos jurídicos de alguns de seus dispositivos.

Imagine tantas pessoas isoladas, com medo de se aproximar das pessoas e a ansiedade de como será a vida, agindo em desespero, seja por estar ou poder ficar sem trabalho ou até dinheiro para sobreviver à crise.

Em que pese a instituição do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda pela Medida Provisória 936, de 1º de Abril de 2020, certamente pela calamidade pública, pelo isolamento social, pela falta de rotina, pela redução de jornada e de salários e pela suspensão temporária do contrato de trabalho, abalos físicos e emocionais virão e parecem as medidas para o enfrentamento do estado de calamidade pública esquecer a necessidade de enfrentamento das alterações nos campos físico e emocional dos trabalhadores.

É oportuno ainda destacar que o auxílio apresentado pela Medida Provisória 936/2020 é destinado, no tocante à análise da perda na renda e na composição pelo auxílio, aquelas pessoas que recebem até três salários mínimos, visto que nas demais faixas a perda salarial é de grande monta.

Recentemente foi publicado um artigo pela Revista Brasileira de Psiquiatria [7] no qual se analisa o “medo pandêmico” e a Covid-19: “Ônus e estratégias para a saúde mental e pelos estudos feitos pela crise sanitária declaram que o medo pode ser crônico ou até mesmo ampliar a ameaça existente e, consequentemente, ser um estímulo para possíveis patologias mentais”.

É hora de pensar e repensar a intensificação de sintomas como ansiedade e estresse das pessoas, principalmente aquelas que apresentam já episódios ou diagnósticos de transtornos psicológicos. O estudo ainda é revelador ao afirmar que durante episódios de tragédias, epidemias e pandemias, como a atual, é maior o numero de pessoas que desenvolvem problemas psicológicos do que propriamente são infectadas pelo vírus.

E mais, a relação de sintomas físicos oriundos dos psíquicos atualmente já é comprovada, como alteração imunológica, dor de cabeça, estresse, cansaço físico, insônia, gastrite, depressão, ansiedade, dores no corpo, inflamação no nervo ciático, angústia, indisposição e variação de humor. [8]

A realidade nos apresenta um isolamento social, na qual uma pandemia é enfrentada, e, no futuro, os historiadores dissertarão acerca da sobrevivência à pandemia da Covid-19, mas como será a análise no tocante à saúde física e emocional do trabalhador, principalmente aqueles em regime de teletrabalho?

Em uma prevenção à crise sanitária, a balança será: combate ao vírus e os efeitos do isolamento. Quais serão os efeitos colaterais físicos e psíquicos do trabalhador neste momento de sobrevivência?

A expectativa é que a pandemia cesse, entretanto, teremos de compreender e saber lidar com os danos físicos e, principalmente, psicológicos e emocionais que perdurarão. Estamos em uma caminhada de obediência às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), a qual recomenda em meio a uma calamidade pública o isolamento social, mas quais serão os efeitos de tal isolamento?

Sem dúvidas é uma circunstância de guerra e a medida é certa, entretanto, a necessidade preventiva de conscientização — pouco divulgada e, certamente, capaz de reparar os abalos físicos e psicológicos desses trabalhadores que vivem em meio à desordem social — precisa de maior realce.

O binômio eclode combatendo o vírus, mas adoecendo os trabalhadores. A medida de isolamento é salutar, entretanto, medidas de prevenção da saúde, principalmente psicológica, no meio de uma crise sanitária é o que se espera de um governo, pois senão a calamidade continuará sobre outros viés e somente será um degrau a fomentar o caos social já instaurado e enfatizado pelo isolamento social, conforme estudos em relação ao teletrabalho.

Em suma, é necessária uma reclusão saudável em momento de pandemia, com a existência da conscientização da classe trabalhadora acerca do aspecto negativo do isolamento social e do teletrabalho, para que somente assim a população previna-se de males físicos e psicológicos.

As medidas são, sinteticamente: busca de fontes confiáveis de informações, fugindo de notícias possivelmente falsas acerca da pandemia (fake news), tentativa de um contato social pelos meios tecnológicos e inclusive com o compartilhamento dos sentimentos, realização de atividades prazerosas, como meditação, ler um bom livro, orações e, inclusive, alimentação saudável e exercícios físicos, que podem ser realizados em casa, além da realização de um sono reparador.

Por fim, que seja um momento de reclusão, mas também de autoconhecimento e conscientização acerca não só dos perigos da pandemia latente, mas também das repercussões na saúde física e emocional do trabalhador. E no futuro, como o Brasil vai enfrentar os males da pandemia? E os males causados por ela na vida dos trabalhadores? A saúde física e mental fica abalada em meio a uma vida de incertezas e os impactos serão futuros, mas devemos somar esforços para mitigar os efeitos nocivos do estado de calamidade pública, sempre preservando a saúde e a segurança do trabalhador em todos os aspectos e de todos os ataques, é a informação sobre ajustar a vida durante e após a pandemia.

Notas:

[1] BUENO. LETIANE C. A escravidão contemporânea e digital do empregado em regime de teletrabalho. . Acesso 13.09.2019, 09h42min.

[2] RAMOS. LETIANE C. B. N. Avanço ou retrocesso: invisibilidade do descontrole? https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/avanco-ou-retrocesso-invisibilidade-do-descontrole-08122019 . Acesso 02.04.2020, 15h03min.

[3] NOTA TÉCNICA SOBRE A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 927/2020. Ministério Público do Trabalho.

[4] BARROS, A. M.; SILVA, J. R. G. Percepções dos indivíduos sobre as consequências do teletrabalho na configuração home-office: estudo de caso na Shell Brasil. Cad EBAPE. BR [on line], v. 8, n. 1, p. 72-91, Mar. 2010.

[5] GOMES, J. F. S.; SOARES, P. O excesso de trabalho mata ou dá prazer? Uma exploração dos antecedentes e consequentes do workaholismo. Psicologia, v. 25, n.1, p. 51-72, jun. 2011.

[6] BRASIL. Previdência Social. 1º Boletim quadrimestral sobre benefícios por incapacidade. Adoecimento mental e trabalho. A concessão de benefícios por incapacidade relacionados a transtornos mentais e comportamentais entre 2012 e 2016. 2017d, 32p. Disponível em http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2017/04/1%C2%BA-boletim-quadrimestral.pdf. Acesso em 15 Jul.2018.

[7] Felipe Ornell1,2, , Jaqueline B. Schuch1,2, , Anne O. Sordi1, , Felix Henrique Paim Kessler1,2, .”Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Disponivel em: http://www.bjp.org.br/details/943/en-US/-pandemic-fear–and-covid-19–mental-health-burden-and-strategies. Acesso em 02.04.2020, 15h20min.

[8] GODOI, Christiane Kleinübing. RANGEL, Fabiana Bittencourt. Sintomas Psicossomáticos e a Organização do Trabalho. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-48922009000400404. Acesso em 02.04.2020, 15h52min.

Letiane Nogueira Ramos é advogada pós-graduada em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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