Um grande problema do déficit fiscal brasileiro aparece quando se considera a conta de juros nominais, de 8,5% do PIB, quando a inflação não é de demanda.
Rodrigo Medeiros
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 04/02/2016
Um tema que vem merecendo um bom destaque na imprensa é o das contas públicas e suas relações com a evolução da economia brasileira. Desde o fim da eleição de 2014, já havia a expectativa de um ajuste a ser realizado. Para que a confiança do mercado financeiro estivesse presente ao longo do processo, o governo trouxe uma figura de respeito desse setor para integrar a nova equipe econômica. O viés contracionista do ajuste macro buscava oferecer a perspectiva de rápida recuperação da “confiança”, através de uma espécie de “austeridade expansionista” tão criticada por Krugman, Stiglitz e outros que consideram a importância dos multiplicadores fiscais.
Desde o início do processo que visava a “recuperação” da confiança na economia, não acreditei que seria algo rápido e fácil de realizar. Afinal, desde meados de 2014, os preços internacionais das commodities, que representam aproximadamente dois terços das exportações brasileiras, caíram fortemente e tal fato impactaria negativamente na nossa economia em 2% do PIB (pelo método do multiplicador da base exportadora). Algum tempo depois, o Ministério da Fazenda divulgou a estimativa de que a operação Lava Jato levaria outros 2% do PIB por conta da paralisação de investimentos e projetos. Essas questões afetaram adversamente as receitas públicas em nosso país, inclusive o potencial de crescimento da relação dívida/PIB em uma recessão aprofundada.
A economia brasileira vinha deslizando para baixo desde 2011 e já era possível notar que o governo federal tentava “esticar a situação anterior” a partir de 2012 com algumas medidas que hoje são tão criticadas, mas que foram apresentadas pelo empresariado então (as desonerações fiscais e a queda dos preços de energia elétrica, por exemplo). Segundo avaliaram José Oreiro (IE/UFRJ) e Paulo Gala (FGV-EESP), a histerese derivada da desindustrialização prematura da economia brasileira aponta para a saída lenta, difícil e dolorosa da crise. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por sua vez, estimou que o nosso PIB deverá cair 3,5% em 2016 e parar de piorar em 2017.
De acordo com o “Resultado do Tesouro Nacional”, de dezembro de 2015, a receita total em 2015 caiu 6,3% em termos reais e as despesas totais cresceram 2,1% para o governo central. As despesas discricionárias caíram em termos reais a um patamar inferior ao ano de 2013. Para o “Cenário Macroeconômico 2016”, da Gradual Investimentos, “o problema fiscal [brasileiro] verificado nos últimos anos foi derivado não de um aumento repentino das despesas, mas antes de tudo de uma queda abrupta das receitas. Não quero dizer com isso que não houve aumento das despesas nos últimos anos, mas o ponto aqui é verificar o que de fato estourou as contas públicas em 2014/2015”.
Desde o final de 2014, estava claro para mim que a desindustrialização prematura da economia brasileira dificultaria o processo de rápida recuperação econômica em um contexto no qual o FMI chamou, posteriormente em 2015, de “um novo medíocre” em termos de expectativas de crescimento global. Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano e acadêmico de prestígio internacional, defende a tese da “estagnação secular” e suas implicações derivadas da histerese na redução do crescimento potencial (“Vox/ CEPR’s Policy Portal”, 30/10/2014). Entre nós, poucos identificaram o efeito de histerese na desindustrialização prematura (nesse sentido, recomendo os blogs dos economistas Paulo Gala e José Oreiro). Segundo afirma Paulo Gala (FGV-EESP), “como bem ressalta o economista argentino Roberto Frenkel num trabalho recente, aquele que se queima com leite vê uma vaca e chora! (Ditado argentino.) Será muito difícil convencer os empresários brasileiros a voltarem a investir no setor de bens transacionáveis não commodities depois de uma década de sobrevalorização cambial. Sem esses investimentos não haverá aumento de produtividade e complexidade e nossa renda per capita mal conseguirá crescer, se é que vai crescer nos próximos anos” (04/01/2016).
José Oreiro (IE/UFRJ), por sua vez, diz que “se a taxa de câmbio permanece sobrevalorizada por longos períodos, como ocorreu com a economia brasileira no período 2005-2014, então a mudança na estrutura produtiva decorrente dessa sobrevalorização não poderá ser totalmente revertida com o retorno da taxa de câmbio ao seu patamar original. Será necessário que a taxa de câmbio se deprecie além do ponto inicial e fique nesse novo patamar por um período de tempo suficientemente longo para que as firmas estrangeiras que entraram no bojo da sobrevalorização cambial decidam se retirar do mercado” (06/01/2016). A sobrevalorização cambial crônica do real vem ocorrendo desde o Plano Real (1994) e foi intensificada no boom das commodities, algo que contribuiu para a nossa desindustrialização prematura e a estagflação vigente. No plano das contas públicas, é bem interessante observar o drama do Estado do Rio de Janeiro e como a “maldição do petróleo” impactou nas finanças públicas fluminenses.
Câmbio e juros são dois preços fundamentais voláteis em uma economia emergente. Nesse sentido, algumas reflexões se mostram bem relevantes. O professor e ex-ministro João Sayad, no livro “Dinheiro, Dinheiro” (Portfolio Penguin, 2015), levanta a hipótese de que “o regime de metas de inflação gera instabilidade. Aumenta a inflação, sobem os juros. A inflação cai, mas a taxa de câmbio também. No curto prazo, um ano, o resultado é favorável, mas num prazo maior o balanço de pagamentos se desequilibra”. O economista Bráulio Borges, na “Folha de S.Paulo” (02/09/2014), ao analisar o desempenho do tripé macroeconômico implementado em 1999, afirma que “chama a atenção o fato de que, no período de 16 anos compreendido entre 1999 e 2014, a inflação medida pelo IPCA foi igual ou inferior ao centro da meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional em apenas 4 (ou 25% do total)”. Entre 2004 e 2008, ele foi exitoso em apenas 2 dos 5 anos.
Quando se fala sobre o Brasil, a comparação com outros países da região aponta, na cabeça de alguns, para uma receita a ser seguida. Se “eles” crescem mais, “estão em melhor forma”. Não se avalia se esse tipo de crescimento está distribuindo renda ou concentrando riquezas nas mãos de poucos e se o Brasil suportaria efetivamente permanecer aprisionado a esse modelo primário-exportador. A destruição ambiental tampouco é considerada, assim como não é avaliado se um modelo que “serve” a um país de menor dimensão atenderá a um país maior.
O jornal “El País Brasil” (24/10/2015) publicou uma matéria sobre a crise na América Latina, citando como o Brasil, a Colômbia, o Peru e o Chile amargam déficit nas contas públicas com o fim da festa das commodities. Ricardo Caballero (MIT) afirma, na matéria citada, que “tivemos um episódio daquilo que se conhece como doença holandesa. Quando o preço e a produção de um bem de exportação sobem muito, as matérias-primas em nosso caso, geralmente elas arruínam o resto do setor exportador, por causa de uma valorização sustentada da taxa de câmbio”. Para o colombiano José Antonio Ocampo (Universidade Columbia), também citado na respectiva matéria, “a desindustrialização foi excessiva, o investimento em tecnologia muito baixo, e há muito por fazer até obter uma educação de qualidade, um setor público eficaz, e uma melhora na infraestrutura que potencialize o crescimento”.
Um relatório da Economist Intelligence Unit (EIU), de setembro de 2015, chamado “Growth in an Uncertain Global Environment”, trouxe um olhar de preocupação para a América Latina. As moedas da região já sofriam pressões por desvalorizações cambiais e as políticas monetárias domésticas enfrentavam então um delicado dilema. Afinal, devem as autoridades monetárias elevar as taxas básicas de juros domésticas para combater as pressões inflacionárias derivadas de repasses das desvalorizações cambiais das moedas nacionais quando as economias estão desacelerando? O relatório “Fiscal Monitor” (outubro de 2015), do FMI, mostrou em números como países da América Latina e de outras regiões enfrentam problemas nos seus resultados fiscais. Segundo foi projetado, o Chile, por exemplo, só zerará o seu déficit fiscal primário em 2018. O caso do Peru é parecido para esse mesmo horizonte de tempo. No horizonte de projeção do FMI até 2020, não consta a expectativa de que os EUA zerem o seu déficit primário. Essa expectativa também não está presente para o G7 e o G20.
Um grande problema do déficit fiscal brasileiro aparece quando se considera a conta de juros nominais, de 8,5% do PIB, quando a inflação não é de demanda. Não é estranho, portanto, que o setor bancário tenha elevado de forma extraordinária os seus lucros: “somados, os ganhos dos quatro maiores bancos cresceram mais de 40% no primeiro semestre, na comparação com os primeiros seis meses de 2014” (“G1”, 14/08/2015). Felizmente, há questões no presente que representam pontos de convergências na priorização de reflexões e ações para o curto prazo: a reversão de renúncias fiscais concedidas de forma indiscriminada, o combate sistemático à sonegação fiscal anual da ordem e 10% do PIB, a redução dos custos de transação na economia, o enxugamento de excessos burocráticos, as melhorias na gestão pública e nas agências reguladoras, a avaliação de programas, o orçamento de base zero, entre outros.
Por outro lado, existem temas bem relevantes, como é o caso da tributação progressiva, que não são considerados pelos supply-siders. Eles preferem atacar as vinculações orçamentárias e as despesas obrigatórias dos orçamentos públicos. O Brasil já viveu o tempo no qual a sua inserção global foi primário-exportadora e os governos estiveram livres de vinculações orçamentárias e algumas despesas obrigatórias. A Primeira República, oligárquica e antissocial, não resolveu o problema das contas públicas brasileiras e isso ficou bem claro nos desdobramentos da crise de 1929: concentração de riquezas e socialização de prejuízos. Coube posteriormente ao ministro Osvaldo Aranha um levantamento dos empréstimos que Estados e municípios tinham contraído no estrangeiro, tendo em vista a consolidação da dívida externa brasileira. A década de 1930, na onda da Grande Depressão, não foi marcada pelos avanços do liberalismo econômico e da paz mundial. Em síntese, desvalorizações cambiais competitivas em um processo de desaceleração global representam um sinal de alerta.
Os tempos são “outros”, mas é importante aprender com as experiências passadas do sistema capitalista. Para Dani Rodrik, professor de Harvard, “a economia não é o tipo de ciência na qual alguma vez poderá existir um único modelo genuíno que funcione melhor em todos os contextos (…) diferentemente das ciências naturais, o avanço científico das econômicas não se dá pela substituição de velhos modelos por melhores, mas pela expansão de sua biblioteca de modelos, com cada um esclarecendo uma contingência social diferente” (“Valor Econômico”, 11/09/2015). Essa é uma boa reflexão para um debate civilizado, aberto ao dissenso e que seja pautado pela ética da responsabilidade.
Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).