Cristina Pereira Vieceli
A questão da igualdade de gênero no mercado de trabalho e nos espaços de poder ganhou especial espaço no debate público este ano, com destaque para a recente Lei 14.611, que trata sobre a igualdade salarial e de oportunidades. Para além disso, o movimento feminista e o movimento negro têm se mobilizado para a indicação de uma ministra negra para o Supremo Tribunal Federal. Este assunto não é recente, considerado uma das principais bandeiras de luta do movimento feminista. Ainda assim, os indicadores apontam que há uma continuidade das desigualdades ao longo dos anos, mesmo com avanços legislativos e a maior escolaridade feminina. O que ocorre é que as estruturas hierárquicas de gênero permeiam as relações de poder e, por conseguinte, além de serem difíceis de serem rompidas, são funcionais ao sistema. Por isso, exigem reformas profundas e radicais.
Atualmente, a remuneração média das mulheres gira em torno de 80% da média masculina. Em 2022, segundo dados da PNAD-C do IBGE, a remuneração média feminina correspondeu a 78,87% da masculina. Porém, deve-se considerar ainda as desigualdades de raça, escolaridade e regionais. As mulheres negras recebem em torno de 43% da remuneração média masculina branca, de acordo com os indicadores de gênero do IBGE. Se olharmosentre as regiões, estados com maiores rendimentos médios possuem maiores desigualdades salariais quando comparados com estados com menores rendimentos médios. A exemplo do Distrito Federal cuja razão do rendimento das mulheres é 74,68% do rendimento masculino, comparativamente a Bahia, em que a mesma relação é de 92,58%.
É difícil mensurar a desigualdade salarial nas mesmas atividades porque isso depende de políticas internas de cada empresa, incluindo critérios vinculados aos Planos de Cargos e Salários que muitas vezes não são disponibilizados nem para os próprios sindicatos que representam as categorias. Os dados desagregados por setores e por ocupações, no entanto, apontam que, mesmo quando estão ocupadas nas mesmas funções, as mulheres recebem remunerações inferiores.
Se considerarmos as ocupações formais através da base do Registro Anual de Informações Sociais (RAIS) para o ano de 2021, dentre os 45 subgrupos somente em três a população ocupada feminina recebe remunerações médias superiores às masculinas. As maiores diferenças salariais por gênero ocorrem em ocupações que possuem maiores remunerações médias, como as de “dirigentes de empresas e organizações”, cuja remuneração feminina corresponde a 51,4% da masculina.
Na literatura econômica ortodoxa, em que se destacam os estudos da Nova Economia Doméstica (NED), as desigualdades de gênero no mercado de trabalho são explicadas por alguns fatores: as mulheres buscariam locais de trabalho de menor produtividade, pois, dessa forma, conseguiriam conciliar essas atividades com os trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados. A rotatividade feminina é maior, considerando o tempo de trabalho destinado para atividades de cuidados não remunerados. No Brasil, o custo de contratação das mulheres é considerado superior, haja vista a licença maternidade de 120 dias, podendo se estender por mais sessenta dias. Comparativamente, os homens possuem licenças que variam de 5 a 20 dias. Além disso, mulheres estão presentes em atividades que possuem menores taxas de sindicalização.
Já a economia feminista faz uma crítica às estruturas desiguais de gênero, considerando que o papel de cuidados é relegado às mulheres, e isso define tanto os locais que elas irão ingressar no mercado de trabalho, como também que estas atividades possuem menor valor econômico e social. O que vemos é que todas as mulheres são, em maior ou menor grau, penalizadas pelos trabalhos de cuidados, considerando que tanto os empregadores como o Estado e a sociedade as relega ao papel de cuidadoras.
Nesse sentido, a Lei 14.611, que foi promulgada em julho deste ano, é um avanço importante para a promoção da igualdade salarial e de oportunidades de gênero. Ainda que este regramento fosse anteriormente assegurado pelo artigo quinto da Constituição Federal de 1988 e pelo artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O Brasil também ratificou duas convenções que tratam sobre o assunto, a Convenção 100 de 1951, sobre igualdade de remuneração entre homens e mulheres e a Convenção 111 de 1958, que trata sobre a discriminação em matéria de emprego e remuneração. A nova legislação brasileira também está em consonância com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial o ODS 5, que trata sobre igualdade de gênero.
A lei traz como avanços uma série de regramentos tanto para assegurar a igualdade salarial, prevendo multa e fiscalização, como também para que as empresas promovam a presença de mulheres em cargos gerenciais. Em relação às multas, a lei estabelece que, caso seja constatada a discriminação por sexo, raça, etnia, origem ou idade, a penalização deverá corresponder a diferença salarial devida. Há previsão ainda de multa caso ocorra descumprimento da lei, que deverá corresponder ao novo salário devido, multiplicado por dez vezes e previsão de agravante, caso haja reincidência.
Outro avanço é a questão da transparência. As empresas são obrigadas a estabelecer mecanismos e critérios salariais e remuneratórios. Aquelas com mais de 100 trabalhadores devem publicar relatórios semestrais com dados que possibilitem a comparação da remuneração entre homens e mulheres, bem como estatísticas sobre raça, etnia, nacionalidade e idade, considerando a proporção de ocupações em cargos de direção, gerência e chefia. Em caso de descumprimento, a empresa é obrigada a definir plano de ação, com a garantia de representação sindical e das trabalhadoras(e)s nos locais de trabalho. Ou seja, a legislação permite que a sociedade e a classe trabalhadora abram a caixa preta dos planos das políticas salariais empresariais, possibilitando a ampliação da democracia nestes locais.
É, portanto, uma importante melhoria em termos legislativos. No entanto, para alcançarmos a igualdade efetiva de gênero, é necessário que essa legislação esteja alinhada com outras políticas, como as voltadas para a promoção de um sistema de relações de cuidados integral, que inclua tanto mudanças no aparato legislativo, considerando a maior igualdade de licenças parentais, como também na infraestrutura de cuidados, com a ampliação da oferta de escolas de educação infantil e de ensino básico integrais. Essas políticas oportunizam tanto a redistribuição do trabalho não remunerado, o aumento da empregabilidade feminina, como também possuem reflexos no bem-estar social, principalmente se pensarmos nas futuras gerações.
Para além disso, há uma grande incidência de mulheres empregadas como autônomas e informais, o que as coloca fora da nova legislação, bem como dos direitos assistenciais e previdenciários. Portanto, é necessária uma política voltada para a geração de trabalhos decentes. Nesse âmbito deve-se tomar atenção especial para as mulheres negras e mães solo, que estão na base da pirâmide social e são as mais vulneráveis à pobreza.
Outra questão importante que deve ser considerada é o acesso às carreiras de elite no funcionalismo público. Nesse sentido é importante destacar que, pela literatura feminista, há dois tipos principais de segregações: a horizontal, que define quais são os espaços que os homens e mulheres devem ocupar, e a vertical, que define que os espaços masculinos são mais valorizados que os femininos. Ocorre que as ocupações tradicionalmente exercidas pelas mulheres, relacionadas aos cuidados, criam benefícios sociais que são de difícil mensuração por parâmetros econômicos comumente utilizados pelo mercado e pela economia ortodoxa.
O setor público é um importante exemplo de como as segregações horizontais e verticais se traduzem. Este é um espaço procurado principalmente pelas mulheres com maior escolaridade, considerando que, do total de empregos formais femininos em 2021, segundo a RAIS, 22,86% eram estatutários. Em relação aos homens, este percentual era de 11,36%. As mulheres compreendem 61,79% do funcionalismo público.
A maior parcela do funcionalismo público está concentrada em atividades de remunerações médias de até 4 salários-mínimos, tanto para os homens como para as mulheres. No entanto, se considerarmos as ocupações de maiores remunerações do funcionalismo, a participação masculina é majoritária. Dentre os promotores públicos, por exemplo, 59,59% são homens e 40,41% mulheres, os magistrados são compostos de 59,81% homens e 40,19% mulheres. Outras ocupações de remunerações elevadas do funcionalismo público, como auditores-fiscais do tesouro nacional, a participação dos homens é de 69,33%, enquanto entre as mulheres o percentual é de 30,67%. Dentre as oito ocupações com maiores remunerações médias dos cargos estatutários, somente “defensores públicos e procuradores de assistência judiciária” cuja participação feminina se iguala a masculina (Gráfico 1).
Há, portanto, barreiras de entrada para as mulheres ingressarem nas carreiras de maiores remunerações, assim como ocorre no setor privado, o que chamamos de teto de vidro. A competição entre homens e mulheres por ocupações de maior prestígio no funcionalismo é desigual, considerando que o acesso exige muito tempo de preparação, o que penaliza as pessoas com responsabilidades de cuidados. Além disso, a segregação se perpetua ao longo das carreiras, haja vista que são espaços historicamente dominados por homens. As desigualdades de gênero, raça e classe no ingresso de posições de elite do funcionalismo público podem ser mitigadas, por exemplo, através das políticas de cotas, mas, além disso, é necessário que as oportunidades de acesso em cargos de liderança sejam consideradas. A exigência de transparência e igualdade de oportunidades é essencial tanto no setor privado como no público e nas carreiras políticas a fim de efetivamente construirmos uma democracia participativa e rompermos com as estruturas hierárquicas de gênero.
Notas
Este texto se baseia em uma entrevista recente que dei para o podcast Monitor do Novo Debate Econômico, sobre Economia Feminista. O podcast está disponível nas principais plataformas e faz parte de um projeto com o mesmo nome, disponível em: http://novodebateeconomico.org.br/.
Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre, doutora e pós-doutora em economia pela FCE/UFRGS, analista em gênero pelo Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é economista do DIEESE, colunista do site DMT, e professora da ESAG/UDESC.