Desglobalização e Regionalismo

Crise climática soma-se às econômicas. Instituições multilaterais esvaziam-se e a produção de bens e serviços digitais reconfigura a divisão internacional do trabalho. 

Marcio Pochmann

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 16/11/2022

Neste mês de novembro, a realização da 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27) no Egito e da 17ª Reunião de Cúpula do G20 na Indonésia expressa desafios de um mundo em profunda transformação desde a virada para o século 21. Com o fim da Guerra Fria (1947-1991) criou-se a expectativa de um novo ciclo de expansão econômica com inclusão social e estabilidade política comparável às quase três décadas de ouro do capitalismo que se sucederam após a Segunda Guerra Mundial, com a derrota do nazifascismo.

Mas isso não ocorreu. Foi uma ilusão desfeita diante da consolidação da globalização liderada pelos Estados Unidos, cujo regime da unipolaridade no mundo fez valer crescentemente o poder das altas finanças e das grandes corporações transnacionais.

Pelo Consenso de Washington, por exemplo, o receituário neoliberal implementado terminou por esvaziar a capacidade interna de governança de grande parte dos países, cada vez mais subordinados aos ditames dos donos do dinheiro. Com o esvaziamento das instituições multilaterais do sistema das Nações Unidas herdadas do fim da segunda Guerra Mundial e o reaparecimento de uma espécie de neocolonialismo, a própria Divisão Internacional do Trabalho sofreu alterações significativas.

Neste primeiro quarto do século 21, o mundo se encontra dividido em duas partes extremamente assimétricas mediante o avanço da revolução tecnológica informacional. De um lado, alguns poucos países que produzem e exportam bens e serviços digitais, com elevado conteúdo tecnológico e valor agregado.

De outro lado, a maior parte dos países que se converteu em consumidores, pois sem conseguir produzir internamente dependem crescentemente das importações de bens e serviços digitais. Enquanto consumidores-importadores, o conjunto de países promove em maior escala a produção e exportação de bens primários assentados, em geral, na contenção do custo laboral decorrente da retirada de direitos sociais e trabalhistas e na maior dependência da extração de recursos naturais.

Com isso, o curso da Divisão Internacional do Trabalho assenta-se na retomada das condições de produção e reprodução do subdesenvolvimento. Pelo deslocamento do antigo centro dinâmico do ocidente para o oriente acontece a reconfiguração periférica dos países em novas bases, permeada pela desigualdade econômica e pela emergência climática.

Na última década do século 20, por exemplo, quando ocorreu a primeira Conferência das Partes (COP 1), em 1995 na Alemanha, importantes compromissos foram assumidos com a estabilização da concentração de gases de efeito estufa, por meio de políticas e medidas ou de metas quantitativas de redução de emissões. Atualmente, em conformidade com os constantes relatórios sobre mudança climática gerados pela própria Nações Unidas (IPCC), as medidas adotadas ao longo do tempo pelos países para prevenir o travamento do aquecimento global se revelaram inegavelmente insuficientes.

Dessa forma, a perspectiva do desenvolvimento sustentável lançada pelo diplomata norueguês Gro Harlem Brundtland, conforme o documento Nosso Futuro Comum, ficou mais distante. Próximo de completar quatro décadas, o conceito de desenvolvimento sustentável pouco se concretizou.

A prevalência de modelos econômicos apoiados no uso de recursos naturais sem limites comprometem decisivamente a sobrevivência da espécie humana. Tanto assim que o conceito do Antropoceno, trazido pelo químico holandês Paul Crutzen, em 2000, tem sido utilizado para descrever a presença de uma nova época geológica caracterizada por graves impactos decorrentes da presença humana na Terra.

Da mesma forma, o grupo de países mais ricos do mundo (G20) se encontra diante de desafios distintos dos vislumbrados em 1999, quando foi criado. Naquela oportunidade, o mundo estava ameaçado pela profusão de grandes crises financeiras que inundavam a periferia capitalista (México, em 1994; Ásia, em 1997; Rússia, em 1998; Brasil, em 1999), ameaçando, inclusive, o Norte global.

Nos dias de hoje, percebe-se o reaparecimento de sinais próprios do regionalismo em meio ao fracasso da globalização conduzida pelo regime da unipolaridade no mundo. A ausência de projeto multipolar dominante e a desordem que acompanha a desglobalização apontam para um mundo cada vez mais polarizado, enunciando, inclusive, o risco de uma espécie de nova Guerra Fria a se fortalecer na terceira década do século 21.

Ao ocorrer de forma quase espontânea, o regionalismo que se alastra traz consigo crescentes riscos, como o nacionalismo protetivo, as guerras, a competição desregulada como na pandemia, o avanço da extrema direita e outros. A instabilidade geopolítica e econômica mundial requer a estruturação organizada do regionalismo em preparação para o mundo multipolar, capaz de substituir o fracasso do globalismo unipolar.

Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.

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