A globalização perdeu encanto e ideias do Consenso de Washington estão em declínio. Por hesitar em propor ação do Estado em favor de direitos, esquerda abre espaço ao fascismo.
Paolo Gerbaudo
Fonte: Outras Palavras, com Dissent
Data original da publicação: 23/03/2022
Em A Grande Transformação, publicado em 1944, quando a Segunda Guerra Mundial ainda acontecia, o historiador econômico austro-húngaro Karl Polanyi analisou como os Estados responderam à implosão do sistema econômico internacional da Belle Époque. No rescaldo do crash de Wall Street em 1929, sociedades de todo o mundo tentaram desesperadamente superar o caos causado pelo desemprego vertiginoso e pela instabilidade monetária. Polanyi descreveu esse processo como um “movimento duplo” – um impulso para o reequilíbrio social, que se distanciava da economia de laissez-faire de um capitalismo altamente internacionalizado e movia-se em direção ao intervencionismo estatal. O bolchevismo, o fascismo, o nazismo e a socialdemocracia de Roosevelt e Leon Blum foram respostas diferentes ao mesmo dilema: como proteger a sociedade da força disruptiva do capitalismo desenfreado.
Há algum tempo, alguns economistas vêm falando de um novo “momento Polanyi”: uma crise derivada da globalização que levou ao surgimento de todos os tipos de sentimentos protecionistas. Os crescentes limites à mobilidade e as preocupações com as cadeias de suprimento que acompanharam a pandemia apenas aceleraram um realinhamento político que começou na década de 2010. A estagnação econômica que se estende desde a crise financeira de 2008 minou a credibilidade dos métodos do livre mercado. Surgiram rivalidades comerciais e tensões geopolíticas entre os Estados Unidos e a China e entre o Reino Unido e a União Europeia. Movimentos populistas à esquerda e à direita agora questionam vários aspectos do consenso neoliberal.
A globalizaçõ não tem mais a mesma popularidade de antes. Nos Estados Unidos, a mudança ficou mais clara durante a guerra comercial de Trump com a China, mas este não é um tema só dos republicanos. A política comercial de Joe Biden também é protecionista: no início de seu período na Casa Branca, ele emitiu diretivas de buy american que direcionam as compras do Estado para empresas dos EUA e se envolveu na disputa para garantir o fornecimento de semicondutores e minerais raros para os EUA.
A crença no livre comércio não é o único pilar da globalização neoliberal que está abalado. Figuras de todos o espectro político estão começando a abandonar suas críticas ao intervencionismo e ajuda estatal e a questionar a contenção de gastos públicos, o aperto da política monetária e o compromisso com a baixa tributação dos ricos e das corporações. A intervenção estatal pesada tornou-se amplamente aceita. No nível monetário, ela se dá com flexibilização quantitativa e grandes programas de compra de títulos; e no nível fiscal com déficit público e investimentos públicos maciços. A estratégia de transição verde, a que muitos países aderiram, envolve planejamento estatal para cumprir as metas de emissões de CO², uso de veículos elétricos e energia renovável. Por isso, revive uma das formas de intervenção estatal mais criticadas pelos neoliberais.
Em todas essas áreas, há um apelo à proteção contra os riscos sistêmicos criados pela globalização neoliberal. A proteção agora é invocada em toda parte – não apenas no sentido de protecionismo comercial, mas em tudo, desde política pandêmica e as discussões sobre como se adaptar às mudanças climáticas até os debates sobre política industrial e a necessidade de políticas de bem-estar social.
A direita populista parece ter chegado a um acordo com esse novo estado de coisas pós-neoliberal (e em alguns lugares contribuiu ativamente para urdi-lo). Desenvolveu uma estratégia que se concentra na proteção da identidade e da propriedade e formou uma coalizão que abrange desde a classe média alta e as pequenas empresas até os trabalhadores marginalizados. A esquerda, por outro lado, está em negação sobre a virada atual ou ainda indecisa sobre como responder a ela. Para avançar, a esquerda deve enfrentar um mundo em que a globalização neoliberal está em declínio e o intervencionismo estatal tende a se tornar cada vez mais importante. Em outras palavras, os progressistas precisam desenvolver suas próprias políticas de proteção.
Globalização e externalização
A lógica da globalização pode ser resumida em um imperativo: externalizar. A externalização implica tornar os sistemas de produção e distribuição mais ágeis e flexíveis para conectar produtores pobres com consumidores ricos. É visível nas práticas de terceirização, offshoring e política econômica voltada para a exportação. Exigiu a eliminação de barreiras estruturais nas regulamentações estatais e nas relações trabalhistas. Nos termos de Polanyi, a globalização foi uma estratégia de “desencaixe” dos processos econômicos das comunidades territoriais, seus grupos de interesse (trabalhadores e moradores) e instituições sociais e políticas (como sindicatos e governo).
A externalização fez com que as empresas se concentrassem nos ramos de atividade mais rentáveis, abandonando aqueles com margens menores, mesmo que tivessem um papel estratégico no ciclo de produção e distribuição. A partir da década de 1980, a empresa fordista verticalmente integrada deu lugar à corporação horizontalmente integrada, culminando nas “empresas-plataforma” do capitalismo digital. Essas mudanças foram acompanhadas pela internacionalização da produção e distribuição. Realocação de fábricas e outras formas de offshoring buscaram tirar proveito de custos trabalhistas mais baixos, às custas dos trabalhadores, nos países mais ricos. Em muitos lugares, esse desenvolvimento levou as corporações multinacionais a se tornarem menos dependentes da demanda doméstica, cortando assim um vínculo de interesse comum com os trabalhadores.
A globalização certamente teve efeitos positivos. Tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza em países como China e Índia e tornou produtos e serviços mais baratos e mais disponíveis, para consumidores de todo o mundo. Mas os frutos da prosperidade que criou foram altamente concentrados, levando a uma crescente desigualdade no interior dos países e ajudando a alimentar movimentos populistas de direita em todo o mundo.
Agora as feridas criadas pela globalização estão evidentes, junto com os efeitos perturbadores de seu declínio. Muitos dos indicadores de interconexão econômica global estão estagnando ou declinando. O comércio global contraiu 5,3% em 2020, em grande parte devido à pandemia, mas a desaceleração já havia começado durante a década de 2010. O investimento externo direto, tanto em termos de aquisições quanto de novos projetos, vem caindo severamente desde a crise financeira de 2008. Em 2020, os fluxos anuais de investimento estrangeiro direto caíram 42% em todo o mundo, ficando abaixo de US$ 1 trilhão pela primeira vez desde o início dos anos 2000.
Essas tendências são exacerbadas pelo crescente conflito geopolítico entre o Ocidente e a China. A globalização prosperou sob a incomparável supremacia dos EUA. Em um mundo mais multipolar, podemos esperar que as grandes potências sejam mais zelosas em defender suas esferas de comércio e acesso a recursos e bens estratégicos. Com a Organização Mundial do Comércio no limbo institucional – seu órgão de apelação, onde são discutidas as disputas comerciais, está suspenso por causa do conflito entre China e Estados Unidos – e países de todo o mundo adotando medidas mais protecionistas desde a crise de 2008, a expansão para mercados externos já muito saturados não é mais uma opção tão atraente como no início da globalização. A prioridade para os Estados e grandes empresas agora é a proteção: proteção dos mercados existentes, das margens de lucro e da riqueza acumulada, ou o que Marx chamou de “proteção de conquistas”.
Um mundo de riscos sistêmicos
Enquanto os capitalistas tentam proteger seus ganhos, estão surgindo formas de protecionismo com caráter mais social. Elas tentam corrigir os desequilíbrios criados pelo neoliberalismo. A externalização fundamentalmente transferiu os riscos sociais do sistema econômico – deslocando-os das empresas e dos ricos para os trabalhadores e cidadãos. Em um mundo externalizado, a sociedade tem que arcar com as consequências da degradação ambiental, da pobreza e da desigualdade, com salários estagnados e segurança cada vez menor no emprego. Tudo para garantir as margens de lucro.
Outros riscos sistêmicos podem ser atribuídos à fragilidade logística e organizacional do sistema global de produção e distribuição. A externalização criou empresas com estruturas “ágeis” e “enxutas”, onde o desperdício, a ineficiência e o excesso de capacidade devem ser eliminados para reduzir os custos fixos. As desvantagens dessa abordagem just-in-time ficaram aparentes durante a interrupção das cadeias de suprimento, na pandemia. Depois de cair em 2020, a demanda se recuperou rapidamente em 2021, levando a uma crise logística e contribuindo para uma inflação mais alta. Regras anticontágio, mudanças nos padrões de consumo (menor consumo de serviços e maior de bens domésticos duráveis) e um déficit de trabalhadores contribuíram para tensionar as cadeias de suprimento. Mas os problemas subjacentes são de caráter estrutural: superespecialização na divisão global do trabalho e a presença de gargalos no fornecimento de matérias-primas e componentes.
Em última análise, no entanto, os maiores riscos que a globalização neoliberal gerou não são ambientais ou econômicos, mas políticos. O custo social da reestruturação econômica produzida pelas políticas neoliberais criou exércitos de eleitores descontentes, especialmente nas áreas suburbanas e rurais. Os “deixados para trás” apoiarão compreensivelmente os políticos que são vistos como escudos, em uma competição internacional cada vez mais acirrada – incluindo movimentos populistas de direita. Como argumentou Thomas Piketty, muitos trabalhadores deram as costas à esquerda porque sentem que ela não os protege mais. Mesmo centristas com Biden perceberam que a globalização traz custos políticos que não podem ser ignorados. Sua agenda econômica é concebida como uma apólice de seguro contra o retorno de Trump ou de um sósia de Trump. Mas as obstruções do Congresso estão prejudicando gravemente a credibilidade de sua presidência e tornando mais provável o retorno da direita.
O novo mundo dos riscos sistêmicos ajuda a entender o jargão das políticas protecionistas que se cristalizou após a pandemia. Termos como “resiliência”, “robustez”, “preparação” e “infraestrutura” e slogans como build back better (adotados por Biden e pelo primeiro-ministro britânico Boris Johnson) projetam prioridades radicalmente diferentes daquelas prevalecentes no auge da globalização neoliberal: como “flexibilidade”, “competitividade”, “oportunidade” e “abertura”. Essa virada na retórica e na política é uma admissão implícita de que o neoliberalismo fracassou. Mas embora o mainstream político pareça ter aceitado que a globalização deve ser temperada pelo controle político, não há nenhuma garantia de que o novo capitalismo protecionista seja melhor do que seu antecessor.
Proteção Econômica e Controle Político
Enquanto a direita populista percebeu rapidamente a crise do consenso neoliberal e desenvolveu uma nova abordagem ideológica – abandonando sua crítica ao protecionismo e aos gastos públicos, ao tempo em que atacava furiosamente o liberalismo social – partidos e candidatos socialistas muitas vezes se viram na defensiva. Às, vezes até aliando-se aos neoliberais centristas, em defesa de uma ordem global em colapso. Para responder aos dilemas sociais atuais, estes políticos e partidos devem, em vez disso, articular uma visão positiva do que a proteção significa para eles. Muitos ainda veem o retorno das posturas protecionistas como uma tendência passageira ou meramente uma continuação do neoliberalismo por outros meios. E embora a esquerda possa criticar o mercado, certamente não está totalmente convencida sobre os possíveis benefícios do crescente intervencionismo estatal – uma suspeita justificada pela memória do totalitarismo e por evidências mais recentes da cumplicidade do Estado na produção da desigualdade social. Mas a estratégia progressiva nas condições atuais não pode evitar a questão de como o Estado pode ser usado para oferecer proteção econômica e segurança contra riscos e restabelecer formas de controle político.
Alguns acreditam, otimistas, que as promessas progressistas (se ainda não foram realizadas) de Joe Biden, o governo de Olaf Scholz na Alemanha e a dos partidos socialdemocratas nos países nórdicos apontam para um renascimento do Estado de Bem-Estar Social. De fato, algum grau de ajuste de políticas, em resposta à crescente desigualdade, ocorreu – o que deve ser bem recebido pela esquerda, já que é em parte resultado de sua pressão. No entanto, também devemos estar cientes dos principais desafios que até mesmo uma agenda socialdemocrata moderada enfrenta. A oposição dos senadores Joe Manchin e Kyrsten Sinema ao projeto de lei Build Back Better de Joe Biden, em comparação com a aprovação relativamente fácil do projeto de infraestrutura, é instrutiva. O verdadeiro fulcro da discórdia das corporações não é o renascimento das políticas keynesianas de estímulo e investimento público, mas medidas redistributivas destinadas a corrigir a crescente desigualdade.
As elites corporativas e seus representantes políticos podem ter alguns escrúpulos quanto à intervenção do Estado na esfera do investimento, que consideram seu domínio. Mas no momento elas acreditam que isso pode ser benéfico para os negócios. Elas têm problemas reais com a criação de novos direitos sociais regulados pelo Estado, incluindo licença maternidade ou aumento do salário mínimo, o que, segundo Manchin, espalharia uma “mentalidade de direitos” – um eco do antigo medo de os trabalhadores se tornarem “indisciplinados”. Ainda mais desagradável para elas é qualquer conversa sobre nova tributação.
O fracasso em aprovar os componentes socialmente mais ambiciosos da agenda de Biden mostra que a voz das empresas continua a ser mais forte do que a dos trabalhadores. Construir de novo políticas melhores pode muito bem ser popular entre o eleitorado, mas, nos Estados Unidos a pequena maioria democrata no Senado dá aos interesses empresariais e seus representantes uma vantagem contra as demandas para lidar com a desigualdade. A resistência da classe capitalista à redistribuição também pode ser vista em como ela está cada vez mais do lado da direita populista, porque não se sente mais adequadamente protegida por um centro neoliberal decadente – uma tendência que lembra assustadoramente a forma como os empresários apoiaram os movimentos fascistas em as décadas de 1920 e 1930 para proteger seus interesses contra a pressão dos trabalhadores.
A margem de manobra para políticas que satisfaçam as demandas de alguns trabalhadores enquanto mantêm os empresários relativamente felizes é muito menor do que na era socialdemocrata do pós-guerra. A redistribuição em tempos de baixo crescimento é em grande parte um jogo de soma zero; requer atacar a riqueza concentrada dos super-ricos e das corporações, muitas vezes escondidas em paraísos fiscais. É por isso que mesmo concessões limitadas, como garantir direitos que os trabalhadores europeus há muito consideram garantidos, e a reforma tributária,, enfrentam uma oposição tão grande. Dada a solidez do bloco empresarial, alterar a correlação de forças exigiria um projeto ambicioso de transformação social, e não apenas reivindicações pontuais. Requereria um nível de organização e mobilização popular muito maior do que o atualmente articulado por sindicatos e organizações progressistas.
Não podemos nos contentar em consertar um sistema capitalista injusto, apenas compensando os efeitos nefastos das forças do mercado em vez de enfrentá-los pela raiz. A bandeira da democracia econômica, uma promessa não cumprida da era socialdemocrata, agora tem que ser levantada mais uma vez. Grandes monopólios capitalistas precisam ser desfeitos e, quando necessário, nacionalizados, como no setor de energia, onde o controle público é necessário para implementar políticas climáticas sérias. No entanto, a verdadeira democracia econômica não é garantida apenas pela propriedade pública. Ela precisa ser exigida de todas as empresas, por meio de maior densidade sindical, participação dos trabalhadores na governança e, sempre que possível, propriedade cooperativa. Esta é uma prioridade. Mas somente recuperando o controle econômico os trabalhadores poderão reunir poder político necessário para alcançar maior proteção social.
Em vez de lamentar os obstáculos previsíveis que tem à frente, a esquerda deve se concentrar no desenvolvimento de uma agenda social protetora que possa reconquistar os trabalhadores marginalizados, e ao mesmo tempo atender às necessidades de todos os setores da sociedade que enfrentam o empobrecimento e a precariedade. As oportunidades que a pós-globalização oferece para a esquerda não devem ser negligenciadas. Um sistema capitalista cuja capacidade de usar táticas “escapistas” (como offshoring e terceirização) está limitado por um maior protecionismo e se torna um alvo mais fácil para a pressão dos trabalhadores. Além disso, a atual escassez de mão de obra nos Estados Unidos e na Europa pode aumentar a influência dos sindicatos. E sob um quadro econômico mais intervencionista, onde o papel diretivo do Estado na economia e seu patrocínio às corporações se tornará cada vez mais difícil de esconder, as decisões econômicas se tornarão mais politizadas, abrindo espaços para contestação e desenvolvimento de propostas alternativas .
Polanyi argumentou que proteger a sociedade contra o capitalismo exigia a reinserção da atividade econômica nas instituições sociais e políticas, tornando-a objeto de deliberação democrática em vez de algo decidido apenas pelas forças do mercado. Mas se o capitalismo não for controlado por meios democráticos, a direita populista se tornará mais atraente entre os trabalhadores descontentes, e soluções autoritárias se tornarão mais prováveis. Nossos dilemas no início da década de 2020 são semelhantes aos que Polanyi estudou há um século – e as apostas políticas são igualmente altas.
Paolo Gerbudo é sociólogo e cientista político no King’s College London, onde dirige o Centro para a Cultura Digital. Autor de “Tweets and the Streets”, “The Mask and the Flag” e “The Digital Party”. Já escreveu para “The New Statesman”, “Guardian” e outras publicações.