Jorge Luiz Souto Maior
Fonte: Carta Maior, 01/04/2013.
Doméstica!
Ela era
Doméstica!
Sem carteira assinada
Só caía em cilada
Era empregada
Doméstica!
[…]
Doméstica!
Era a americana, de doméstica
A nêga deu uma gargalhada
Disse: “Agora tô vingada
Tu vai ser minha
Doméstica!” (Doméstica, Eduardo Dusek)
Veja bem meu patrão como pode ser bom
Você trabalharia no sol
E eu tomando banho de mar (Caxangá, Milton Nascimento)
É a volta do cipó de arueira
No lombo de quem mandou dar (Arueira, Geraldo Vandré)
Noticia o “site” do Senado Federal: “Aprovada a Lei Áurea do Século 21”.
Seriam exagerados os termos da chamada?
Abstraindo o possível interesse eleitoral envolvido na notícia, que é, por sinal, bastante legítimo, dado o relevante fato a que faz alusão, e atendidas as devidas proporções, acredito que a frase tem o mérito de chamar a atenção para a necessidade de relacionarmos as duas situações histórias, para, primeiro, apreendermos a enorme importância que efetivamente possui a PEC n. 66/2012 e, segundo, para não cometermos os mesmos erros verificados por ocasião da abolição dos escravos, erros esses, aliás, que repercutem ainda hoje, pois conforme advertência feita por Emília Viotti, a partir das observações de Florestan Fernandes, “O movimento abolicionista extinguiu-se com a Abolição […]. Alcançado o ato emancipador, abandonou-se a população de ex-escravos à sua própria sorte”.
Lembre-se, a propósito, que um dos exemplos do resquício da lógica escravagista dentre nós é, exatamente, a forma como o trabalho doméstico tem sido tratado, cultural e juridicamente, isto sem falar dos argumentos, pautados pela retórica apocalíptica, que desde o término da escravidão são apresentados de forma recorrente para se contraporem aos direitos dos trabalhadores em geral.
Com efeito, por ocasião da lei de férias, em 1925, foi dito que as férias destruiriam a moral dos trabalhadores brasileiros; em 1943, que a CLT arruinaria as indústrias; em 1963, que o estatuto do trabalhador rural imporia a bancarrota no campo… Como de resto sempre se faz com relação às proteções específicas do trabalho do adolescente e da mulher, afirmando que essas normas de proteção dificultariam a sua inserção no mercado de trabalho.
Não se trata, aliás, de mero resquício, pois no Brasil o trabalho escravo ainda se mantém sob as mais variadas formas, tanto que a luta contra o trabalho escravo é um tema relativamente recente, tendo iniciado, de modo mais preciso, em 1993, quando a OIT, por intermédio de um relatório, apresentou dados relativos a 8.986 denúncias de trabalho escravo no Brasil. Como reação, em 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho, para atuação específica no meio rural e investigação de denúncias de trabalho escravo; em 1998, foi aprovada a Lei n. 9.777, que alterou os artigos 132, 203 e 207 do Código Penal (considerando crime: exposição da vida ou a saúde das pessoas a perigo direto e iminente; frustrar direito assegurado pela legislação trabalhista mediante fraude ou violência; aliciar trabalhadores e conduzi-los de uma para outra localidade do território nacional mediante fraude); em 12 de setembro de 2002, foi instituída a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – CONAETE, no âmbito do Ministério Público do Trabalho; em 2002, a Lei n. 10.608/2002 assegurou o pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado da condição análoga à de escravo; em 2003, a Lei n. 10.803 alterou o art. 149 do Código Penal, buscando uma tipificação mais precisa das condutas que caracterizam o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, equiparando à situação de trabalho em condições degradantes; em 2003, foi anunciado o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego; em 2008, tal Plano foi atualizado; e, presentemente, discute-se no Senado Federal a denominada PEC contra o trabalho escravo, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado, destinando-as à reforma agrária e ao uso social urbano.
No Estado de São Paulo, no Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, 28 de janeiro, no ano de 2013, foi sancionada uma lei que cancela a inscrição no cadastro estadual de contribuintes – ICMS, de empresas nas quais se constate a exploração do trabalho em condições análogas à de escravo, proibindo-as de atuar por 10 (dez) anos.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.