Crítica da desrazão neofeudal

Alguns autores sustentam que ressurgiram, em substituição ao capitalismo, formas feudais de apropriação da riqueza coletiva. As aparências enganam, porém.

Eleutério F. S. Prado

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 16/09/2022

Diversos autores do campo da crítica da economia política têm aderido à tese de que o capitalismo evolveu de modo inesperado, assumindo agora o caráter de algo que chamam de tecnofeudalismo, sem deixar de ser ainda capitalismo: dentre eles, alguns dos mais vocais são Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Robert Kuttner, Michael Hudson e Wolfgang Streeck. A formulação mais consistente dessa tese, entretanto, foi desenvolvida por Cédric Durand em seu livro Tecnofeudalismo – Crítica da economia digital.1 Contudo, um número bem menor de autores têm criticado essa teorização que, mesmo numa primeira visada, se afigura inusitada e estranha à tradição da crítica da economia política: dentre eles, conta-se Evgeny Morozov, Michael Roberts e o autor da presente nota.2

Foi Morozov quem apresentou até agora a análise desabonadora, mais extensa e mais sistemática, dessa tese em seu artigo Crítica da razão tecnofeudal.3 Aí, ele definiu bem o contorno dessa formulação que pretende se configurar como um corpo teórico:

Os teóricos do tecnofeudalismo compartilham com os autores que sustentam a tese do capitalismo cognitivo4 a suposição de que algo na natureza das redes de informação e dados empurra a economia digital na direção de uma lógica feudal de rentismo e despossessão, para fora e para além da lógica do lucro e da exploração.5

Em adição, esses autores se valem de uma analogia para encontrar um apoio firme à tese em consideração. Observam que o modo de coletar renda na economia digital tem uma certa semelhança – aparente – como o modo de extração de excedente no feudalismo histórico. Neste último, como se sabe, os servos produzem bens e serviços autonomamente em lotes de terras que estão sob o domínio de um senhor, mas, em contrapartida, têm de lhe entregar, gratuitamente, segundo certas regras tradicionais, uma parte do produto gerado. Considerando que o feudalismo como tal não volta mais, esses autores especulam, entretanto, que os seus métodos de apropriação de renda podem retornar, passando a prevalecer outra vez na história.

É esse tipo de ressurgimento que eles veem acontecer no capitalismo contemporâneo. Os donos das plataformas digitais, como se fossem novos senhores, se valem da coleta das informações produzidas descentralizadamente pelos usuários dos serviços digitais para obter ganhos econômicos. Eis que, atualmente, todos aqueles que se servem desses instrumentos ficam sob o domínio de sistema computacionais, fornecendo aos seus donos, também de modo gratuito, como se fosse novos servos, dados preciosos como base nos quais eles obtêm ganhos.

Ora, esses ganhos provêm supostamente da apropriação – e não do esforço próprio. E isso autoriza, os teóricos do capitalismo transformado a considerar toda essa produção de informação como um tipo de trabalho e todas as pessoas que as compartilham gratuitamente como trabalhadores produtivos de coisas úteis e de valores mercantis. Assim – admitem – uns expropriam parte da riqueza produzida por outros de um modo já visto no passado.

Como se sabe, entretanto, a aparência fenomênica das coisas autoriza explicações – seja na vida cotidiana seja no âmbito da ciência positiva –, que parecem fazer sentido, mas que se revelam falsas quando enfrentam uma crítica adequada. Será este o caso da tese da mutação do capitalismo em tecnofeudalismo? Morozov, que descreveu com precisão os contornos teóricos dessa tese, procurou mostrar com bons argumentos que ela não se sustenta pelo menos no interior da exposição dialética de Marx em O capital.

A sua estratégia crítica consistiu em examinar os argumentos dos adeptos da teoria da “feudalização” do capitalismo para expor que eles se mostravam insuficientes ou mesmo inadequados e que lhe faltava sobretudo rigor e veracidade. Sob os golpes desarticuladores da crítica, eles se afiguravam inefetivos para mostrar que o evolver do sistema teria extrapolado os contornos do seu suposto conceito – pelo menos se este vem a ser aquele dialeticamente exposto pelo fundador do marxismo. Eis aqui, ao fim e ao cabo, a sua conclusão:

Os marxistas deveriam tomar ciência de que a despossessão e a expropriação nunca deixaram de ser constitutivas da acumulação de capital na história. (…) A extração de valor de modo propriamente capitalista no centro dependeu do uso extensivo de modos de extração não estritamente capitalistas na periferia. Assim que se dá esse salto analítico, deixa-se de apelar ou invocar o feudalismo. O capitalismo está se movendo na mesma direção [N. T.: ou seja, do mesmo modo] como sempre.

Será? Aqui se vai discordar desta última conclusão, mesmo se se considera que é necessário criticar a (des)razão tecnofeudal e se endossa o contra-argumento central de Morozov, qual seja ele, de que o capitalismo do presente é ainda, simplesmente, capitalismo. Está ainda fundado no capital industrial, mesmo se precisa receber por necessidade de esclarecimento teórico ou de ordem histórica, outras qualificações.

Mesmo recusando a tese tecnofeudal, argumenta-se aqui que ocorreu, sim, uma mudança no sistema do capital. Pois, realizou-se de fato já no final do século XX uma tendência histórica que fora notada por Marx no capitalismo de meados do século XIX. Contudo, ela sobreveio sem que tivesse ocorrido uma mutação, ou seja, algo que implicasse a ultrapassagem de quaisquer limites dados por suas características intrínsecas.

A história do capitalismo, entretanto, está marcada por reestruturações sucessivas e elas sobrevieram sempre sob o acicate da concorrência para obter lucros e sempre mais lucros, assim como pela realização de uma taxa de lucro compensadora dos investimentos passados e estimuladora de novos investimentos. Novas tecnologias, novas formas de organização, aprimoramentos da subsunção do trabalho, novos mercados etc. foram sendo descobertos e introduzidos nos processos de produção e circulação para que a acumulação de capital pudesse ter continuidade. A última dessas mudanças endógenas, vinda mais recentemente, recebeu já o nome de “economia da informação e do conhecimento”.

O funcionamento do capitalismo no século XXI depende agora, crucialmente, da extração, manipulação e uso centralizado de “dados” – um elemento inerente da produção e da circulação mercantil, que antes permanecia esparso ou mesmo era perdido em boa medida. É bem evidente que o uso intensivo das informações resultante das operações mercantis está associado ao advento e aprimoramento das tecnologias da computação, o que vem ocorrendo desde as últimas décadas do século XX.

O funcionamento do sistema econômico atualmente depende de empresas especializadas em operar grandes bancos de “dados” digitalizados. Para compreender a sua natureza econômica, emprega-se uma classificação sumária dos tipos de empresas que empregam formidáveis sistemas de computação e fazem uso de grandes ou imensas quantidades de informações e mesmo de conhecimentos.6 Elas são chamadas, como se sabe, de plataformas. Será necessário mostrar de que relações de mercado participam e, em especial, que relações de produção estão implícitas nas operações usuais dessas empresas.

Do ponto de vista tecnológico, as plataformas são infraestruturas computacionais que fazem a intermediação entre pessoas, empresas, órgão públicos e outras organizações em geral, tornando possível a interação entre elas, reduzindo imediatamente quaisquer distâncias. Do ponto de vista social e econômico, mesmo se têm caraterística de comuns, constituem-se como empresas monopolistas que visam a acumulação de capital. Eis como Srnicek as caracterizam:

As plataformas, em suma, são um novo tipo de empresa; caracterizam-se por fornecer a infraestrutura para intermediar interações entre diferentes grupos de usuários, por apresentar tendências a se tornarem monopólios impulsionadas que são por “economias de rede”, por empregar subsídios cruzados para atrair diferentes grupos de usuários e por ter uma arquitetura central projetada para governar as possibilidades de interação. A propriedade da plataforma, por sua vez, é essencialmente a propriedade de software e hardware, os quais são construídos como sistemas abertos. Todas essas características tornam as plataformas modelos de negócios que se baseiam na extração e controle de dados.7

Há vários tipos de plataformas. As que se alimentam de propaganda (Google, Facebook) extraem “dados” dos usuários e de outras fontes como revistas científicas, jornais etc., organizam todos os dados obtidos e os utilizam para formar veículos de informação que têm como objetivo vender anúncios. Elas produzem ao mesmo tempo um serviço útil e um espaço de propaganda; este último, portador de valor e mais-valor, é vendido como mercadoria para as empresas capitalistas em geral. Obtêm, assim, lucros e mesmo, eventualmente, superlucros. As relações de mercado dessas empresas com os usuários comuns não são, entretanto, relações de valor.

Há as plataformas que detêm grande capacidade para guardar informações e que são chamadas de nuvens (Onedrive, Dropbox etc.). Essas empresas produzem uma mercadoria, qual seja ela, determinados espaços de armazenamento, os quais são disponibilizados e vendidos aos usuários em geral, sejam eles pessoas ou organizações. Tal como no caso anterior, trata-se de empresas industriais que, como quaisquer outras, produzem mercadorias, ou seja, valor de uso e valor; realizam este último num mercado e, assim, obtêm lucros. As relações de mercado aqui são sempre relações de valor.

Há, também, as plataformas industriais que estão constituídas por complexos de hardware e software capazes de transformar as empresas tradicionais em empresas conectadas à internet, ao mesmo tempo em que contribuem para a redução de seus custos e ampliação os seus mercados, ou seja, de sua capacidade de competição. Esse tipo de empresa produz e vende mercadoria normalmente e, assim, também não apresenta características que possam levar alguém a pensar numa mutação do modo de produção da sociedade moderna, num capitalismo tecnofeudalizado.

Se as modalidades anteriores se baseiam na venda de mercadorias, há um tipo de plataforma que se funda na venda do capital como mercadoria por meio de redes próprias e da internet. Elas são criadas com a finalidade de alugar determinados “bens de capital”, tais como máquinas, automóveis, equipamentos esportivos etc. para outras pessoas e empresas. Vendem, assim, o valor de uso da mercadoria em questão, mas não a própria mercadoria. O rendimento que obtêm tem grosso modo a forma do juro já que o dinheiro emprestado consiste também na venda de capital como mercadoria.

Nos quatro casos anteriores, as empresas tendem a ser monopolistas, mas não se constituem como empresas estruturalmente diferentes das empresas clássicas do capitalismo. No quinto caso, no entanto, há algo diferente.

Finalmente, há um tipo de plataforma que introduz uma novidade em termos de relação social entre o capital e o trabalho: e ela se encontra nas plataformas que se especializam na compra e venda de serviços de táxis, de entrega etc. (Uber, Loggi etc.). Como se sabe, essas plataformas contratam trabalhadores que operam com os seus suportes tecnológicos, mas atuam em conta própria. Põe-se, então, a questão de saber se há aqui uma relação de assalariamento disfarçada ou um outro tipo de relação social já que os trabalhadores são proprietários de parte dos meios de produção usados (carro, moto, celular etc.).

Julga-se aqui que eles devem ser considerados como trabalhadores por conta própria que alugam os serviços computacionais da plataforma. Compram o uso do capital desse tipo de empresa; esta última, em contrapartida, lhes vende (aluga) o capital como mercadoria. Passam o operar por meio de suas teias informacionais e, ao fazê-lo, se subordinam a elas de um modo tão firme quanto o do assalariamento. Como não podem obter renda para si e para a sua própria família sem pagar aluguel às empresas a que se vinculam, os trabalhadores, ao entrarem nessa relação social, ficam subsumidos financeiramente ao capital. Pois o aluguel que estão obrigados a pagar tem a forma do juro – e não da renda da terra como se sugere muitas vezes.8

Tendo em mente essas considerações, vê-se logo que o erro capital dos defensores do tecnofeudalismo não vem do fato de que não consideram a despossessão e a expropriação como formas históricas, complementares ou subsidiárias, da acumulação de capital. Ainda que cometam, sim, esse erro, a falha central deles, em última análise, está na má compreensão das relações de produção inerentes ao capitalismo de plataforma.

A origem desse erro está em que compreendem as finanças como Keynes – e não como Marx. Para o autor da Teoria Geral, como se sabe, o rentismo provém da capacidade de exploração do valor de escassez dos fatores de produção em geral, sejam eles a terra, os meios de produção, o capital-dinheiro etc. E, nesse sentido, esse grande economista engloba o juro e a renda da terra na categoria de “rent”, denominando o possuidor do fator escasso de “rentier”.9 Ao invés de ver relações tipicamente capitalistas na interação entre o capital industrial e o capital financeiro, ele enxerga aí relações pré-capitalistas ou insuficientemente capitalistas.

Ademais, como Keynes prevê que a evolução do capitalismo vai levar necessariamente à “eutanásia do rentista”, isto é, do “poder cumulativo de opressão do capitalista de explorar o valor de escassez do capital”10, ele crê que o rentismo possa desaparecer conforme evolve a “economia monetária de produção”, cujo fim – pensa ele – é a produção de bens e serviços que atendem as necessidades das pessoas. Como os teóricos aqui criticados veem que essa “morte anunciada” não apenas não aconteceu, mas, ao contrário, que o “rentismo” não apenas sobreviveu, mas se tornou supostamente uma forma dominante, eles concluem afirmando que o capitalismo sofreu uma mutação e, por meio dela, se transformou em techno-feudalismo. O rentismo, nessa visão, é promovido não apenas pelas plataformas, mas também mais amplamente pelo que se denomina usualmente de financeirização.

Ora, como também se mostrou em outros textos (ver nota 9), essa é uma maneira superficial de entender a financeirização e a dominância financeira que veio à luz no capitalismo contemporâneo. Eis que apreende apenas os fenômenos econômicos que refletem a aparência da mudança, vê somente a subsunção do capital industrial ao capital fictício, mas não compreende que se está diante de uma mudança estrutural no ocaso do capitalismo. Assiste-se, na verdade, à realização de uma tendência que já aparecia de modo incipiente em meados do século XIX, qual seja ela, a expansão progressiva de socialização do capital.

Aqui só se pode apresentar esse processo resumidamente. Com o desenvolvimento do capitalismo, o capital privado tende a se transformar em capital social, ou seja, em “capital de indivíduos diretamente associados”. Desse modo, ocorre, segundo Marx, “a suprassunção do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção”.11

O processo de centralização e concentração do capital, lei tendencial do modo de produção capitalista, induz o surgimento do capital acionário, eleva importância do capital portador de juros não só quantitativamente, mas qualitativamente. As formas financeiras do capital, entretanto, não são estranhas às suas formas industriais, mas, ao contrário, lhe são complementares. Ambas essas espécies de capital estão imbricadas uma na outra no processo de produção e de acumulação em todas as fases do ciclo econômico.

No momento final do ciclo, na fase em que a superacumulação se manifesta, o capital industrial tende a se refugiar nas formas fictícias de capital. Aí ele se concentra até que o estalar efetivo da crise inicie o processo de destruição de parte maior ou menor do capital acumulado. Entretanto, subjacente a esse movimento cíclico, ocorre também o aumento do peso relativo do capital expresso em “papéis” de vários tipos, cada vez mais complicados do ponto de vista financeiro, em relação ao capital investido na produção.

Ora, o apogeu desse processo de mudança estrutural de longo prazo passou a ocorrer de fato a partir dos anos 80 do século passado. E ele foi reconhecido pela ciência, aquela que ama secretamente a ideologia, como um fenômeno novo, o qual merecia ser tipificado pelos nomes de globalização financeira e de financeirização. A partir desse momento, do auge histórico da socialização do capital, a reversão do processo de acumulação em processo de desacumulação no estalar da crise econômica passou a ameaçar, devido ao seu volume gigantesco, a destruição do próprio modo de produção.

A desvalorização brutal do capital converteu-se assim, num evento praticamente inaceitável pela classe dominante e pelas forças governantes principalmente do centro do sistema global. É o propósito de bloquear esse processo que dá origem à intervenção do Estado por meio do chamado relaxamento monetário. Ao trocar título por dinheiro vivo, o banco central impede que a falta de liquidez leve à quebra dos bancos comerciais e de investimento, assim como de grandes empresas chaves na malha da produção industrial. Ao fazê-lo, como esse desenlace é endogenamente necessário, o Estado bloqueia também a possibilidade de que ocorra uma recuperação sustentável do sistema econômico. Este, assim, entra numa crise estrutural que se afigura insolúvel.

Aquilo que uma plêiade de teóricos chama de tecnofeudalismo não é mais – crê-se aqui – do que um elemento do amadurecimento final do próprio capitalismo. De qualquer modo, eles abriram as portas para um debate que é importante continuar.

Notas

1 Durand, Cédric – Techno-féodalisme – Critique de l’économie numérique. Paris: Éditions La Découverte, 2000.

2 Prado, Eleutério F. S. – tecnofeudalismo ou socialismo do capital?. In: blog Economia e Complexidade: https://eleuterioprado.blog/2021/11/14/tecnofeudalismo-ou-socialismo-do-capital/

3 Morozov, Evgeny – Critique of tecnofeudal reason. New Left Review, nº 133/134, jan-abr, 2022.

4 Por exemplo, Moulier-Boutang, Yann – Cognitive Capitalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

5 Op. cit., p. 107.

6 Ver Srnicek, Nick – Plataform capitalism. Cambridge, UK: Polity Press, 2017.

7 Op. cit., p. 33.

8 Ver Prado, Eleutério F. S. – Subsunção financeira do trabalho ao capital. In: Blog Economia e Complexidade. https://eleuterioprado.blog/2018/04/17/subsuncao-financeira/

9 Ver Keynes, John M. – Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

10 Op. cit., capítulo 24, p. 255.

11 Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Tomo III. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 494.

Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP. Mantém o blog Economia e Complexidade (https://eleuterioprado.wordpress.com).

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