“Crise atual pode ser última chance para pensar a vida além do capitalismo”

A mesma sociedade conectada que vê algoritmos e inteligência artificial invadirem a sua privacidade –com, por exemplo, propagandas que passam a pulular insistentemente em todas as suas telas, depois de uma única visita a um site especializado– é a que consegue se mobilizar rapidamente nas redes sociais para oferecer mantimentos à família do menino que pediu ao Papai Noel carne como presente de Natal.

A era do conhecimento, que acumulou bilhões de dólares nas mãos de magnatas como Bill Gates (fundador da Microsoft) e Carlos Slim (da América Móvil, dona da Claro e da Embratel no Brasil), é a mesma que possibilita a mobilização virtual em massa de trabalhadores em uma greve por direitos, ou a que permite a pequenos empreendedores a venda de seus produtos em escala nacional.

As transformações que a “economia informacional” produzem sobre o capitalismo do século 21 e como elas moldam o jeito de pensar e de se articular de toda a sociedade são o tema do novo livro do economista Ladislau Dowbor, “O capitalismo se desloca –novas arquiteturas sociais” (Edições Sesc).

Finalista do Prêmio Jabuti deste ano, o livro faz um contraponto histórico na evolução do capitalismo agrário e industrial para o capitalismo da era da informação –em que a sociedade, embora precise lidar com certa opressão, com a sensação de um “Grande Irmão” observando todos os seus passos, como o descrito no livro “1984”, de George Orwell, também nunca teve tanto poder em suas mãos como agora. Para o bem e para o mal.

Afinal, a mesma sociedade que dissemina as “fake news” das vacinas contra o novo coronavírus, também é a que mobiliza a mídia em torno de campanhas contra o assédio sexual e a discriminação racial, como os movimentos Me Too e Black Lives Matter, respectivamente. O que nós vamos fazer com todo esse poder daqui para frente, a fim de barrar a degringolada ambiental, econômica, social, política e humanitária em curso, é a grande pergunta da obra de Dowbor.

“Novo não significa necessariamente melhor: os dramas ambientais, sociais e econômicos no planeta estão se agravando de maneira desgovernada, e o controle individualizado sobre as populações, por meio de algoritmos e de inteligência artificial, já é muito presente. Abrem-se simultaneamente imensas perspectivas de uma sociedade mais informada, conectada e colaborativa. Mas o essencial é que, para o bem ou para o mal, o mundo está passando a funcionar de modo diferente. É uma mudança sistêmica”, afirma Dowbor.

Professor titular de pós-graduação da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), ex-consultor de diversas agências das Nações Unidas, governo e municípios, Dowbor destaca as mazelas do mundo atual em três eixos críticos, que convergem com a pandemia do novo coronavírus.

“Já somos quase 8 bilhões de habitantes, aumentando num ritmo de 80 milhões ao ano, todos querendo consumir mais. Estamos destruindo a natureza do planeta em ritmo absurdo, enfileirando a mudança climática, a destruição da biodiversidade, a degradação dos solos, a contaminação da água doce, a poluição dos oceanos com plástico e outros resíduos, a geração de bactérias resistentes pelo uso de antibióticos na criança de animais”, afirma.

O eixo da destruição ambiental é acompanhado de perto pelo eixo da desigualdade social. “É bem fria a estatística de 1% dos humanos que tem mais riqueza acumulada que os demais 99%”, diz o autor.

“Temos 859 milhões de pessoas passando fome no planeta, das quais mais de 150 milhões são crianças, ainda que seja produzido no mundo mais de 1 quilo de cereais por pessoa e por dia. Se dividirmos o PIB mundial, da ordem de US$ 85 trilhões, pela população mundial, constatamos que o que hoje produzimos pode assegurar US$ 3.000 por mês por família de quatro pessoas”, afirma Dowbor.

O terceiro eixo crítico da sociedade está no caos financeiro. “Atualmente, 97% do que nomeamos ‘liquidez’ são apenas sinais magnéticos emitidos por bancos. Com os governos controlando espaços nacionais, enquanto a liquidez roda pelo planeta praticamente na velocidade da luz, há um desajuste radical entre o mundo financeiro e as velhas instâncias reguladoras”, diz o economista.

Com isso, o atual sistema permitiu a emergência de fortunas como o mundo nunca viu, em mãos de pessoas que nada produzem e vivem do ​rentismo.

“O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais”, de Ladislau Dowbor, foi finalista do Prêmio Jabuti de literatura em 2021. Fotografia: Rubens Cavallari/Folhapress

A destruição ambiental, o aprofundamento da desigualdade, o caos financeiro e a atual pandemia convergem assim para desenhar uma crise sistêmica planetária, diz Dowbor. Segundo ele, há uma mudança estrutural de como nos organizamos “neste pequeno objeto espacial chamado Terra”. “Não tenho dúvidas de dizer que se trata de uma crise civilizatória”, diz.

Mas o livro não traz uma visão apocalíptica da sociedade. Para o autor, a convergência das crises abre um imenso espaço para ideias novas. A sociedade conectada traz uma mudança profunda de cultura política, de participação ativa, com protagonismo social, e isso cria oportunidades de mudança.

“O futuro não está escrito, as quatro crises interagem de maneira caótica. Entre elas, esse vírus, que nos ameaça biologicamente e trava nossa rotina, abre espaço para mudanças. Podemos, é claro, vencê-lo em breve e retornar à mesma destruição em câmera lenta de antes. Mas ele nos dá a oportunidade rara de parar e refletir”. Segundo Dowbor, é talvez a derradeira chance de pensarmos a vida além do capitalismo.

Fonte: Blog Dowbor, com Folha de SP.
Texto: Daniel Madureira
Data original da publicação: 17/12/2021

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