A pandemia tem revelado as fraturas econômicas, sociais e regionais da sociedade norte-americana, ao mesmo tempo em que expõe as divergências políticas em torno do modelo de Estado adotado.
Sinaida De Gregorio Leão
Fonte: GGN, com OPEU
Data original da publicação: 13/05/2020
Passados quase dois meses do início da pandemia da COVID-19 nos Estados Unidos, o desemprego atinge seu maior índice desde a Crise de 1929. Já são mais de 20 milhões de desempregados, o que representa um índice de 14,7%, de acordo com o Bureau of Labour Statistics, ou seja, quase o dobro do que se seguiu à crise financeira de 2008. Para que se possa compreender a magnitude do impacto da pandemia da COVID-19 sobre as relações de trabalho, basta atentar para o fato de que os 22 milhões de empregos gerados paulatinamente na economia norte-americana após a crise de 2008 foram abruptamente perdidos nos últimos dois meses, sob o impacto do novo vírus.
O Bureau of Labour Statistics considera como desempregados apenas os trabalhadores formais demitidos que estejam procurando um novo emprego nas quatro semanas anteriores e os demitidos temporariamente que não foram readmitidos nos últimos seis meses. Isso revela um quadro ainda mais dramático.
Assim, informa a mesma fonte, aos 23 milhões de desempregados, devem ser acrescentados 2,3 milhões de trabalhadores autônomos que estão sem trabalhar pelo fechamento das atividades econômicas; 10,9 milhões de trabalhadores que tiveram sua jornada de trabalho e o salário diminuídos; e 6,9 milhões de desempregados que perderam o emprego, mas não têm procurado outro nas últimas quatro semanas.
Com isso, chega-se a um total de 43,1 milhões de desempregados e trabalhadores com jornada reduzida. Tal quantitativo também não considera os trabalhadores ilegais, em geral imigrantes em condição ilegal. Hoje, cerca de um em cada cinco trabalhadores norte-americanos tem buscado auxílio governamental para a situação de desemprego.
Pandemia acentua desigualdade estrutural
A COVID-19 atinge a todos, sem qualquer distinção, mas não afeta todos os trabalhadores da mesma forma, revelando uma profunda desigualdade, em desfavor dos social e economicamente vulneráveis, como os negros e os imigrantes em situação clandestina.
De acordo com a Foundation for Aids Research e o Center for Disease Control and Prevention, os índices de contaminação e de óbito pela COVID-19 estão diretamente relacionados aos fatores socioeconômicos, como acesso à saúde e à medicação – em um país que não possui sistema público universal de saúde –, doenças preexistentes, condições de empregabilidade e qualificação profissional, bem como acesso a ar e água de qualidade. Desta forma, os trabalhadores mais vulneráveis, em geral, ocupam empregos menos qualificados, muitos dos quais considerados essenciais na nova situação de pandemia, o que maximiza sua exposição à contaminação.
No caso dos negros, tal vulnerabilidade é evidenciada sobretudo nos estados do Sul, demonstrando que sua maior contaminação e maior número de óbitos pela COVID-19 advêm de problemas estruturais, fundando-se na própria desigualdade decorrente do ideário racista e escravagista.
No caso dos imigrantes ilegais, a situação é agravada pelo medo de deportação, manifesto pela recusa dos imigrantes a buscarem tratamento para a COVID-19 em hospitais. Relatos de membros de tais comunidades revelam que, ao entrarem na emergência dos hospitais, são imediatamente questionados pelos médicos sobre seu status no país e sobre suas condições para pagar o atendimento.
Temem, assim, não ter como pagar o elevado custo do tratamento hospitalar e que a internação facilite sua localização e identificação por parte dos serviços de imigração, para fins de deportação. Ao permanecerem em casa, ou continuarem trabalhando sem buscar tratamento aumentam, também, o risco de disseminação do vírus. Tais trabalhadores sustentam que pagam impostos sobre o consumo das mercadorias que compram e que, portanto, deveriam ter um mínimo de proteção estatal.
Importante destacar que o Departamento de Agricultura estima que cerca de 50% dos trabalhadores do campo são imigrantes ilegais. Também considerados essenciais neste momento de crise sanitária, expõem-se mais ao risco de contaminação pelo novo coronavírus, apesar de destituídos de qualquer amparo do governo norte-americano. Por isso, com o apoio de produtores rurais, estão-se articulando para pressionar o governo para a inclusão de sua legalização nos pacotes de ajuda aos trabalhadores, aprovados recentemente pelo Congresso em decorrência da COVID-19.
A pandemia tem revelado as fraturas econômicas, sociais e regionais da sociedade norte-americana, ao mesmo tempo em que expõe as divergências políticas em torno do modelo de Estado adotado.
Surge, assim, um novo questionamento na sociedade norte-americana acerca do sentido de ser o país mais rico do mundo e, concomitantemente, possuir a maior taxa de pobreza entre jovens entre todos os países industrializados, com cerca de 12,7% da população, ou seja, 41 milhões de pessoas, vivendo na pobreza, segundo a ONU, e a pior distribuição de renda entre os países industrializados, com o aumento da desigualdade entre ricos e pobres sob o governo Trump, como revela o índice de Gini, com dados fornecidos pelo Banco Mundial.
É cedo para afirmar, mas talvez a COVID-19 possa contribuir para formar uma nova consciência sobre a destinação da riqueza e da necessidade de sua melhor distribuição no país.
Diferentes políticas para diferentes visões do Estado
Em um ano de eleições, democratas e republicanos propõem diferentes medidas de enfrentamento da COVID-19, no que se refere às relações de trabalho, refletindo o modelo de Estado que defendem.
Democratas sustentam a necessidade de que o governo continue dando suporte financeiro a trabalhadores, empresas e estados até que a economia se recupere, o que implica um déficit público federal de cerca de US$ 3,7 trilhões no próximo ano. Já os republicanos e o presidente Donald Trump defendem a flexibilização do isolamento social e a cessação dos auxílios financeiros que importem em transferência de recursos, limitando a ação do governo apenas ao corte de impostos para empresas e deduções fiscais para novos empreededores.
Ambos os lados do espectro político divergem, ainda, sobre a intensidade e a velocidade da adoção das medidas de flexibilização do isolamento social, já que um confinamento prolongado poderia implicar a falência de muitas empresas. A Universidade de Chicago e o ADP Research Institute estimam que cerca de 40% dos postos de trabalho perdidos são de empresas que fecharam suas atividades por causa do impacto da pandemia.
A agência Moody’s estima que, nos Estados Unidos, a recuperação econômica será mais rápida do que a recuperação dos postos de trabalho, a qual, provavelmente, ocorrerá somente em 2023. É difícil, contudo, prever o rumo das relações de trabalho pós-pandemia, já que outros fatores devem ser considerados nesta equação.
O alto índice de desemprego pode conduzir à diminuição do custo da mão de obra pelo excesso de força de trabalho disponível, bem como à redução dos salários e dos direitos trabalhistas e à pressão patronal pela desfiliação sindical – esta última já relatada em grandes empresas norte-americanas.
A admissão de novas tecnologias e a consequente adaptação do cotidiano – como o home office, o comércio on-line, delivery, lives, webinars –, transformando a comunicação e a cadeia logística dos setores produtivos, assim como o possível desenvolvimento de novos padrões de consumo, diante da crise econômica, são outros fatores que devem ser considerados no que se refere à recuperação do mercado de trabalho.
Há que se ponderar, ainda, que a pandemia da COVID-19 evidenciou os problemas advindos da desconcentração industrial e a necessidade de desenvolvimento das indústrias locais, exemplificada pela dependência dos EUA dos produtos de saúde fabricados na China. Isso significa que a recuperação econômica e a recuperação do mercado de trabalho norte-americano também dependerão dos novos movimentos e rearranjos dos setores produtivo e financeiro em âmbito global.
Diante de um quadro tão incerto, as manifestações sindicais, como a da estadunidense AFL-CIO, demonstram uma preocupação urgente, inicial e imediatista com a garantia da saúde e da vida dos trabalhadores – notadamente dos trabalhadores essenciais e dos mais vulneráveis, diante da ausência de um sistema público de saúde – e com a garantia dos salários e auxílios emergenciais diante do aumento das demissões e do alto índice de informalidade.
Por enquanto, porém, não se observa um discurso por parte de tais entes que evidencie os rumos a tomar após a crise para o restabelecimento dos postos de trabalho e a manutenção dos direitos dos trabalhadores, especialmente em um período de pressão patronal pela desfiliação sindical e de alto índice de desemprego. Neste sentido, importante refletir acerca das advertências de Naomi Klein, quanto ao surgimento, em tempos de crises causadas por fenômenos e desastres naturais e biológicos, de novos discursos de aprofundamento do modelo econômico vigente.
Se, por um lado, as restrições impostas pela COVID-19 à rotina podem conduzir à reflexão sobre o modelo de Estado, sobre a sociedade almejada e sobre a elaboração de novos modelos econômicos diante do aparente esgotamento do neoliberalismo, por outro, a experiência demonstra que também podem propiciar o surgimento de novos discursos que conduzam ao aprofundamento do status quo, como demonstra o recente discurso pela privatização do serviço postal norte-americano.
Diante de tantas incertezas, é possível antever apenas que a reflexão e o desenvolvimento de uma agenda de atuação, que considere todas as variantes acima expostas, pelos entes sindicais e pelas organizações da sociedade civil, no mundo pós-COVID-19, torna-se fundamental para a defesa dos direitos dos trabalhadores e pela reconstrução de um mercado de trabalho mais justo e mais igualitário nos Estados Unidos.
Sinaida De Gregorio Leão é bacharel em Direito (UFF), especialista em Direito Privado (UFF) e Mestre em Relações Internacionais (UFF).