Contratualização das relações de trabalho: embaralhando conceitos canônicos da sociologia do trabalho

Cinara L. Rosenfield
Marilis L. de Almeida

Fonte: Revista de Ciências Sociais: Política & Trabalho, João Pessoa, n. 41, p. 249-276, out. 2014.

Resumo: As diferenciações e a heterogeneidade de combinações que assumem o trabalho e emprego apontam o embaralhamento de concepções de dois binômios tradicionais na área: assalariamento e independência, formal e informal. Este processo desafia a criação e/ou compreensão de novos conceitos no âmbito da sociologia do trabalho. O presente estudo propõe a noção de contratualização das relações de trabalho, aqui entendida como um processo de transferência de relações de tipo salariais (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT) e de relações de trabalho informais para relações de trabalho de tipo contratual (código civil), a fim de refletir sobre o potencial explicativo deste conceito na compreensão do fenômeno. Empiricamente, este processo é observável na recente institucionalização do autoempreendedorismo, entendido como o acesso e reconhecimento, tanto legal quanto simbólico, do trabalho independente. Socialmente, vemos estabelecer-se o valor moral da autonomia, que se reproduz em variadas formas discursivas pertinentes ao trabalho.

Sumário: Introdução: entre o novo e o conhecido; algumas considerações sobre o significado do autoempreendedorismo | Autoempreendedorismo: políticas públicas e mercado de trabalho | Políticas públicas de empreendedorismo | Mercado de trabalho e empreendedorismo | Binômio autoempreendedorismo-assalariamento | Binômio autoempreendedorismo formal-informal | Mercantilização-proteção-emancipação | Considerações finais | Referências

Introdução: entre o novo e o conhecido; algumas considerações sobre o significado do autoempreendedorismo

A crítica ao assalariamento apresenta tendências contraditórias quanto ao seu significado social: a esquerda condena suas implicações em termos de subordinação, a direita critica o peso da proteção social associada ao assalariamento. O aumento do autoempreendedorismo pode ser pensando tanto em termos de uma maior autonomia em relação à subordinação do assalariamento, quanto de uma autogestão de si que alivia o peso das proteções sociais. No entanto, a realidade empírica do autoempreendedorismo exige a reflexão a respeito do embaralhamento destas duas maneiras polarizadas de abordar o fenômeno.

O autoempreendedorismo é aqui compreendido como uma forma de trabalho que não mais coincide com uma forma de emprego, embora possa ser definido como um tipo de autoemprego. Isto porque diz respeito à passagem do trabalhador à condição de autoempreendedor, de maneira que o contrato de trabalho dá lugar a um contrato de prestação de serviço ou oferta de um produto próprio, sem as proteções tradicionais do direito do trabalho e dos direitos sociais típicos de um cidadão hipossuficiente em uma relação assimétrica por definição – tal qual a do trabalho assalariado. O autoempreendedorismo embaralha os tradicionais binômios de contraposição do mundo do trabalho, a saber, subordinação e autonomia, trabalho formal e informal, porque articula características de ambos os polos da oposição.

No que tange ao binômio subordinação e autonomia, o autoempreendedor possui características que o aproximam do trabalhador assalariado, uma vez que se mantém como trabalhador, pois depende fundamentalmente de seu trabalho, ainda que autônomo do ponto de vista legal. Por outro lado, a dependência do trabalhador em relação ao empregador é substituída por uma dependência em relação aos clientes e à dinâmica do mercado. A instabilidade decorre da fraqueza dos vínculos, que se dão no plano comercial, através de contratos entre duas partes detentoras de direitos, sem mecanismos específicos de apoio ao trabalhador tal qual nos contratos de trabalho assalariado.

O autoempreendedorismo se destaca como forma emergente de inserção pelo trabalho, na qual a relação de emprego é substituída por uma relação de trabalho, uma vez que se tornar empreendedor de si funciona como uma forma de distensão da relação de emprego. Não mais se trata de uma relação empregado-empregador, mas trabalhador autônomo-demandante do trabalho. Evidentemente, nem todo empreendedor é um autoempreendedor. Nosso objeto restringe-se às formas de autoinserção no mercado de trabalho através de uma atividade autônoma, sem sócios, e, no máximo, com um empregado formal (os empregados informais não são passíveis de serem quantificados). A oposição entre independência-assalariamento é posta em xeque de maneira generalizada no mercado de trabalho, seja para o próprio trabalhador assalariado (ele é incitado a se tornar autônomo na execução do seu trabalho, mobilizando sua subjetividade, iniciativa e criatividade), seja para o trabalhador autônomo/independente (que se vê diante da exigência de fidelidade para com o cliente-demandante de trabalho). Configura-se, pois, uma relação de articulação ao invés de oposição entre autonomia e dependência (Supiot, 2000). É possível identificar um modelo dual, paradoxal e articulado: autonomia na subordinação e submissão na independência.

Outro binômio ainda cujo sentindo se torna difuso é o de trabalho formal e informal. A inserção do trabalhador assalariado, formal ou informal, no mercado de trabalho apresenta limites mais bem definidos: ou o trabalhador possui um contrato (ou carteira), e, portanto, é um trabalhador formal, ou, na sua ausência, caracteriza-se como trabalhador informal. Para o autoempreendedor, sua inserção no trabalho se dá via a atividade econômica por ele empreendida, podendo ter sua situação formalizada (registro da empresa através do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ) ou não. Essa situação é difusa, já que isso não encerra sua relação com as fronteiras da formalidade e informalidade, pois nela podem-se combinar atividades econômicas formalizadas com atividades não formais, tornando a sua condição formal mutante, já que não é fixa nem definitiva, podendo oscilar entre ambas ou mesmo exercê-las simultaneamente. É o caso, por exemplo, do trabalhador que tem registro da sua empresa e pode ou não fazer uso de notas fiscais conforme a demanda do cliente, ou comprar notas fiscais de um colega para garantir a demanda de formalidade feita pelo cliente, ou ainda ter uma empresa formal que emprega trabalhadores assalariados informais.

Clique aqui para continuar a leitura deste artigo no site da Revista de Ciências Sociais: Política & Trabalho

Cinara L. Rosenfield. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Marilis L. de Almeida. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *