Considerações sobre a cegueira, mas não de Saramago

Os aplicativos quebraram as relações formais de trabalho por não comprar que o empregado esteja o tempo combinado à disposição do empregador.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Fonte: GGN
Data original da publicação: 15/02/2022

O arquétipo da precarização das relações do trabalho são os aplicativos. Alguns, como o Uber, nasceram nos Estados Unidos; outros, como o 99 e o Ifood, nasceram aqui mesmo, enquanto o Rappi veio da Colômbia, todos, porém, tendendo a ir parar na China. Lá, coincidentemente, há o aplicativo mais desenvolvido do mundo, o WeChat. Na verdade, ele faz tudo o que todos os aplicativos gostariam de fazer, indo do transporte público às compras à distância; das entregas aos meios de pagamento, tudo sem que a empresa seja taxada de exploradora. Como é que eles conseguem isso?

Os aplicativos quebraram as relações formais de trabalho por não comprar que o empregado esteja o tempo combinado à disposição do empregador. A quebra consolidou-se por romper a máxima de que o empregador detém os meios de produção, enquanto o trabalhador entra com seus tendões e músculos, como diria Karl Marx. Finalmente, os aplicativos quebraram vínculos à parte, sendo o principal deles o compromisso com a previdência social. Se um entregador cai de sua moto e fica em casa, terá de recorrer diretamente ao INSS, pois a empresa, dona do aplicativo, não contribui com os primeiros quinze dias de licença, como quando se tem a carteira assinada, elevando o dispêndio do sistema de seguridade social, sem a contrapartida em receita. Tudo se baseia em driblar as obrigações e o financiamento do Estado, dentro da ideia minimalista que vem assombrando a economia desde a última década do século passado.

No sentido oposto, do trabalhador para o empregador, a coisa não difere muito, pois, apesar de haver regras, não existe uma hierarquia, um plano de carreira, a menor expectativa de ascensão porque ela simplesmente não existe. O que se vende é  ideia de que o trabalhador tenha virado microempresário, que trabalha para si próprio, levando a meritocracia ao paroxismo. Perante tamanha selvageria, não há como garantirem-se direitos trabalhistas e que o sistema de trabalho via avatares, humanos ou não, é inexorável e serão todos abandonados à própria sorte.

Notícias recentes, no entanto, dão conta de que cidades, como Araras e Araraquara, ambas no estado de São Paulo, lançaram aplicativos públicos, em que os descontos, embora menores que os praticados pela iniciativa privada, destinam-se ao suprimento de itens, antes inerentes às relações formais de trabalho. Entre eles, encontram-se a contribuição previdenciária, o seguro contra acidentes de trabalho, até mesmo a participação em cooperativas de compras para redução do dispêndio com os itens mais básicos do consumo, como alimentação e vestuário.

A ideia parece ótima, mas faltam aprimoramentos que as habilitem ao nível de capilaridade atingido pelas nascidas no setor privado. Quando um Uber sai de casa, sabe que pode pegar uma corrida em outra cidade, caso ela lhe pareça favorável. Isso aliás foi a maior razão para a decadência do rentismo que se alastrou pelos sistemas de concessão do transporte individual como serviço público. Com a criação de aplicativos municipais, corre-se o risco de voltar à reserva de mercado que caracterizou o serviço de táxis como exercido por permissionários. Basta imaginar que um trabalhador agregado ao aplicativo de Araras não possa, por exemplo, pegar uma corrida em Rio Claro, mesmo que a distância não ultrapasse os 20 km. Há duas soluções tecnicamente possíveis, a criação de uma interface que permita manter um contracorrente entre os municípios, tal que haja compensação automática pela perda de receita oriunda da invasão de área, tal que ninguém saia prejudicado. A outra solução é criar um aplicativo em âmbito nacional, incluindo um banco digital para administrar os valores ali transitados, o que permitiria que o cadastrado pudesse prestar serviços por todo o território nacional.

Todos os municípios do Brasil cobram pelo uso de sua infraestrutura para fins privados, seja pelo ISS (Imposto Sobre Serviços), seja pelo ICMS sobre frete, que é cobrado em âmbito estadual, tendo o de destino como beneficiário. Para que essa receita não se perca, volte-se ao sistema de contracorrente, mencionado acima, parecido com o sistema de compensação bancária.

Se a solução é tão óbvia e pode mitigar os efeitos deletérios da virtualização desenfreada, por que não se pensou nisso antes? Por uma cegueira ideológica, naturalmente. Os ditames do liberalismo econômico pregam que a concorrência é capaz de mitigar conflitos ajustar mercados, sempre na crença de que todos eles se podem resolver por preço. Não se imaginam os cartéis e outras distorções de mercado que põe o preço em segundo, até em terceiro plano. Também é a concorrência que impede que dispositivos embarcados sejam bem sucedidos, como a acontece com a introdução dos pagamentos via WhatsApp, Facebook ou Sygnal. Tudo leva a crer que nos estejamos encaminhando para um WeChat brasileiro que, curiosamente, nasceu numa economia pretensamente socialista.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *