Conquistas do trabalhador no Direito capitalista

Os direitos trabalhistas são uma conquista da classe trabalhadora, mas nos termos do direito capitalista.

Filippe de Oliveira Mota

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 22/10/2020

O estudo do Direito por vezes nos conforma com uma suposta naturalidade das suas estruturas, de maneira que nem sempre nos é fácil lutar pela sua efetivação e aumento de sua abrangência e, ao mesmo tempo, criticar os próprios fundamentos que lhe concedem estrutura. É esse o caso, por exemplo, dos direitos trabalhistas, cujo surgimento se deu, não por acaso, a partir dos ideais liberais sob o impulso da Revolução Industrial. É nesse sentido que é preciso afirmar que os direitos trabalhistas são uma conquista da classe trabalhadora, mas nos termos do direito capitalista.

O período histórico da Revolução Industrial marcou definitivamente o estabelecimento da sociedade capitalista. Com a introdução das máquinas para o incremento das forças produtivas, o comércio desenvolvido durante o período pode, ao mesmo tempo, multiplicar sua capacidade produtiva e tornar descartável parte da força de trabalho. As técnicas de produção, antes dominadas pelos trabalhadores, eram progressivamente incorporadas às máquinas. Como decorrência dessa potencialização da produção, tornava-se cada vez mais difícil a competição no mercado que se expandia. O controle dos meios de produção passava a concentrar-se, cada vez mais, com uma minoria, restando aos demais dispor da sua força de trabalho na forma de mercadoria. 

Apesar das diferenças fundamentais entre a organização dos trabalhadores na forma das corporações de ofício e aquela que seria realizada, já na preponderância do modo de produção capitalista, na forma dos sindicatos, não seria demais afirmar que a origem desses foi acentuadamente influenciada pelo encerramento daquelas[1]. A finalidade monopolista das corporações, por certo, não se adequava aos ideais liberais das revoluções burguesas e por esse motivo sua existência foi juridicamente banida, por meio de diversas legislações, e fisicamente reprimida pelas autoridades locais. A vedação não se direcionava apenas às corporações de ofício, mas a todo tipo de associação que se colocasse no intermédio entre capital e trabalho, ou seja, entre o capitalista e o trabalhador, posto que ambos seriam desde então compreendidos como sujeitos de direito e aptos a defenderem seus próprios interesses. As associações, nesse sentido, causariam uma suposta deturpação da igualdade e liberdade propugnadas pelo ideal liberal. 

Com o fim das corporações, e desprovidos de qualquer meio de subsistência, os trabalhadores ofereciam sua força de trabalho na forma de mercadoria aos capitalistas, o que se dava, ao menos formalmente, de maneira voluntária. Seu intuito, como contrapartida, era o de auferir uma remuneração suficiente para adquirir outras mercadorias que, da mesma forma que sua força de trabalho, eram disponibilizadas no mercado. 

No entanto, a combinação entre o grande número de trabalhadores livres e a contínua potencialização da capacidade produtiva permitida pelo uso das máquinas conferia aos capitalistas um enorme poder de negociação. Tal era a disparidade, que o próprio termo “negociação” poderia ser facilmente colocado em questão. Isso porque seu exercício não passava da mera oferta de vaga de trabalho nas condições oferecidas pelo capitalista, restando ao trabalhador acolhê-las com o fim de garantir condições mínimas de subsistência ou rejeitá-las e morrer de fome. Essa situação se prolongou, ainda, por algumas décadas, tornando os salários cada vez mais baixos e as condições de trabalho cada vez piores.

Frente ao poder crescente dos detentores dos meios de produção, a reivindicação dos trabalhadores isolados certamente não surtiria qualquer efeito. O banimento jurídico e a repressão física das associações dificultavam enormemente a atuação contrária aos interesses dos capitalistas, fundamentalmente voltada para a majoração dos seus lucros mediante a redução dos custos dispendidos com a locação de força de trabalho

Mas se as medidas destinadas à redução dos custos trouxeram benefícios imediatos para o projeto de acumulação de capital, tiveram também repercussões que facilitaram a organização dos trabalhadores. Esse foi o caso, por exemplo, da centralização da produção nas fábricas e da menor relevância concedida aos conhecimentos técnicos dos trabalhadores, ambas facilitadoras da criação de laços de solidariedade. Essas medidas, acentuadas pela administração científica taylorista, permitiram que os trabalhadores reunissem forças para se organizarem e elevarem seus interesses ao plano coletivo, único plano onde era realmente possível disputar com os interesses capitalistas. 

A nova forma de organização dos trabalhadores, entretanto, se dava sob estruturas econômicas completamente diferentes daquelas sob as quais se constituíram as corporações de ofício. As mudanças na superestrutura jurídico-política decorrentes das revoluções burguesas permitiram uma forma de organização que seria impensável sob as condições anteriores. Com a posterior legalização das associações, foram criadas, nos países do centro do capitalismo, as primeiras associações de trabalhadores já sob essas novas condições, tendo como objetivo principal o fortalecimento da luta dos trabalhadores nas disputas de interesses com os patrões. É certo, entretanto, que a elevação dessa disputa de interesses ao plano coletivo comportava seguimentos com dimensões bastante distintas. Conforme Ricardo Antunes, enquanto algumas delas limitavam suas disputas ao plano econômico, como as trade-unions inglesas e o sindicalismo reformista norte-americano, outras tinham suas lutas ampliadas, como o sindicalismo revolucionário, o anarquista e o comunista.[2]

As disputas entre capital e trabalho se acirraram, isso tanto durante o período de banimento como nas primeiras décadas da legalização. As greves foram inicialmente compreendidas como fato social alheio ao direito, consistindo o seu exercício em manifestação unilateral que presumia o rompimento dos termos do contrato de trabalho[3]. É nesse sentido que se pode afirmar que a inexistência do direito de greve implicava, consequentemente, a ausência de delimitação do seu exercício, de maneira que as reivindicações constantemente ultrapassavam as lutas por aumento salarial ou melhores condições de trabalho para passar a questionar as próprias estruturas do modo de produção capitalista. Ocorre que essa ausência de limitação fazia com que suas consequências, mesmo quando seus objetivos eram meramente econômicos, trouxesse grandes danos para a produção, colocando em risco tanto o lucro imediato do capitalista quanto a própria organização da sociedade naqueles termos. Surgia, então, a necessidade de regular o exercício da greve, assimilando o fato sob a estrutura do direito.

Conforme ensina Bernard Edelman, a legalização da atuação sindical se deu com base nas premissas próprias ao direito forjado a partir das determinações do modo de produção capitalista, de modo que aquela passou a ser concebida como elemento peculiar ao contrato de trabalho, sujeitando-se, portanto, aos seus limites. As greves cujas reivindicações ultrapassassem os limites determinados pela esfera profissional passavam a ser consideradas abusivas, aplicando-se a mesma lógica àquelas que rompiam com os deveres contratuais do trabalhador.[4]

Com isso, as greves passaram a se limitar, cada vez mais, a disputas em torno de aumentos salariais e benefícios para a respectiva categoria, cingindo-se, portanto, às pautas concernentes à relação entre trabalhador e empregador. Nesse sentido, seriam consideradas abusivas quaisquer manifestações que ultrapassem esses limites, como o caso das greves contra a reforma da previdência ou trabalhista, por exemplo. É certo, portanto, que não se trata, apenas, de limitação. Trata-se de adequação das reivindicações trabalhistas aos próprios moldes liberais, rechaçando todo e qualquer laço de solidariedade em benefício de reivindicações cada vez mais particularizadas.

É inegável que a legalização das reivindicações operárias trouxe diversos benefícios para os trabalhadores, de maneira que a luta pela manutenção e ampliação desses marcos é medida sempre adequada. Isso não pode ser feito, entretanto, de maneira a naturalizar a projeção harmoniosa que se pretende alcançar a partir da esterilização política dessas reivindicações, agora pautadas em regras técnicas e pretensamente apolíticas. A técnica passa a afirmar-se como limite para a crítica, abstraindo da disputa a política que lhe seria inerente. É justamente esse limite, que predetermina os termos da disputa, que deve ser constantemente questionado, iluminando seus fundamentos no intuito de revelar as fissuras que a pretensa harmonia se dirige a ofuscar.

Notas:

[1] RUSSOMANO, Mozart Victor. Princípios gerais de direito sindical. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

[2] ANTUNES, Ricardo. O que é sindicalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.

[3] EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.

[4] Idem.

Filippe de Oliveira Mota é servidor público. Especialista em Sociologia e bacharel em Direito pela UNESA.

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