Como o Brasil precariza até a palavra reforma

Trabalhista, Fiscal, da Previdência e, agora, a Administrativa. Nada melhoram, só devastam os direitos sociais. Uma estratégia perversa das elites para sepultar, pouco a pouco, a Constituição de 1988 — que nunca aceitaram de fato.

Paulo Kliass

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 29/09/2020

Os grandes meios de comunicação e a agenda oficial do Palácio do Planalto desde 2016 têm insistido na ideia de uma grande urgência na implementação de “reformas”. Essa é uma estratégia de comunicação muito ardilosa, pois em nossa cultura e tradição políticas, o termo é bastante associado a mudanças com conteúdo progressista. Quem fala em reformar, normalmente estaria transmitindo o desejo de aperfeiçoar ou de modernizar determinado instrumento de políticas públicas, estrutura estatal ou mecanismo de decisão.

Na verdade, essa onda toda em defesa das “reformas” esconde a verdadeira intenção de colocar uma pá de cal em cada uma das conquistas que a sociedade brasileira optou por consolidar no interior de nossa Constituição. Em 1988, a promulgação do novo documento coroou o processo da transição democrática e a ruptura com o período ditatorial. Assim, ali estão estabelecidos um conjunto de direitos e de serviços públicos de acesso amplo, bem como o desenho da importância do Estado como mecanismo para promoção do desenvolvimento social e econômico de nosso País.

Ao longo desses 32 anos de vida do novo ordenamento, houve várias tentativas de mudança. No entanto, o ritmo e a amplitude das alterações deste último quadriênio superam em muito todas as iniciativas anteriores. O fato concreto é que o projeto que se tornara hegemônico entre os constituintes estava na contramão do movimento do neoliberalismo que se espalhava por todo o mundo. A nossa Constituição aparecia como uma peça de resistência às propostas de privatização, de desregulamentação e de liberalização desenfreada, tal como proposta pelo Consenso de Washington.

A realidade é que parte de nossas elites em geral, as forças em torno dos interesses do sistema financeiro internacional e a oligarquia do financismo tupiniquim nunca engoliram muito bem o desenho apresentado à Nação por Ulysses Guimarães. Pouco mais de um ano após a promulgação da nova Carta, a eleição de Collor já abriu o caminho para minar algumas das bases do Estado desenvolvimentista. Em seguida, na sequência da aprovação do Plano Real em 1994, os dois mandatos de Fernando Henrique também avançaram pelo caminho da desconstrução das bases daquele pacto de proteção social e de natureza desenvolvimentista.

Retrocesso nas áreas trabalhista e previdenciária

A fase mais recente teve início em 2016. O argumento da crise fiscal iminente reforçava as chantagens em prol de mudanças. Uma primeira tentativa na área previdenciária não avançou. Mas Temer apresentou uma – assim chamada – Reforma Trabalhista. Uma série de alterações nos dispositivos de proteção aos trabalhadores foram introduzidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de modo a torná-los mais vulneráveis. Um exemplo dessa estratégia foi a autorização para que os acordos negociados entre patrões e empregados pudessem contrariar dispositivos legais.

Em 2019 temos a segunda etapa desse processo, por meio das propostas do governo Bolsonaro, em torno da chamada “carteira verde amarela”. Tais medidas vêm à tona em meio a um aprofundamento da crise social e o aumento do desemprego. Com isso, são introduzidos na legislação a “normalização” das situações de informalidade e de precariedade nas relações trabalhistas. A possibilidade de contratação e remuneração por hora trabalhada, por exemplo, torna legal a remuneração mensal com valor inferior a um salário mínimo.

Ora, parece evidente que tais mudanças não oferecem nenhum elemento que nos permita qualificá-las como reforma. Trata-se, pura e simplesmente, de um profundo retrocesso no campo do direito do trabalho, sempre com o foco em promover o favorecimento das empresas e a penalização dos assalariados.

No domínio previdenciário, houve uma tentativa em 2016, mas o governo Temer não logrou aprovar as medidas no Congresso Nacional. Com a posse de Bolsonaro, o tema volta com mais força e o governo encaminha ao legislativo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 06/2019. O texto original sofre alterações ao longo da tramitação e algumas das medidas mais extremadas que constavam inicialmente no documento enviado são retiradas. No entanto, mesmo assim, a Emenda Constitucional (EC) n° 103 contém reduções significativas nos direitos dos aposentados e dos que pretendem se aposentar no futuro. Dentre outros aspectos, as mudanças se referem à ampliação das idades mínimas e dos tempos de contribuição para se ter o direito a pleitear os benefícios do INSS.

Assim, sob o rótulo de Reforma Previdenciária, deu-se a implementação de um profundo retrocesso no modelo de nossa previdência social e também nos regimes dos servidores públicos. As medidas significaram, muito longe da narrativa oficial de suposta modernização, um sério ataque à sustentabilidade do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), de natureza intergeracional e baseado no princípio da solidariedade. Com isso, tentou-se promover um estímulo indireto às alternativas de previdência privada, baseada na cotização individual e sob a forma de capitalização.

Involução nos domínios fiscal e administrativo

Outro domínio que mereceu atenção por parte dos governos foi a política fiscal. Assim, uma chamada Reforma Fiscal terminou sendo aprovada a toque de caixa no final do ano de 2016. Reforçando o discurso catastrofista de uma quebra iminente do Brasil caso nada fosse feito, o governo Temer encaminhou ao Congresso Nacional a chamada PEC do Fim do Mundo. A medida foi promulgada sob a forma da EC nº 95, que terminou por introduzir na Constituição a polêmica figura da criação de um Novo Regime Fiscal.

Por meio da medida, passamos a ser o único país do mundo a ter uma regra fiscal rígida no texto constitucional. Por meio dela, fica estabelecida a proibição de aumentos nas despesas orçamentárias não financeiras pelo longo período de 20 anos. A proposição reforça a abordagem da solução da crise fiscal apenas pela ótica da redução das despesas, sem nenhuma preocupação com a busca de novas fontes de receitas tributárias. Além disso, torna-se um enorme obstáculo para a implementação de políticas anticíclicas para enfrentar a recessão. Ou seja, trata-se de mais um retrocesso sob o manto enganoso de uma narrativa reformista.

No momento atual, a bola da vez é a PEC 32, também tratada pela grande imprensa e pelos “especialistas” do mercado financeiro como sendo uma Reforma Administrativa. Porém, uma leitura atenta dos dispositivos propostos no texto, ainda aguardando o início de sua tramitação na Câmara dos Deputados, deixa evidente que se trata tão somente de mecanismos destinados a aprofundar a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas.

A proposição foca apenas na redução da despesa com pessoal, mas com a devida cautela de ter excluído do rol de maldades os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Poder Legislativo e os militares. As conquistas introduzidas na Constituição de 1988 são eliminadas, a exemplo da estabilidade do servidor, do ingresso por meio de concurso público e da remuneração condizente com os requisitos das funções. Assim, acaba entrando em processo de extinção o chamado regime Jurídico Único (RJU), pois os chefes de Executivo federal, estadual e municipal poderão passar a contratar sob as regras dos novos regimes a serem criados. Os princípios da impessoalidade e a natureza republicana da administração pública são abandonadas de vez.

Por outro lado, a mesma PEC oferece aos mandatários do Executivo a possibilidade de extinção de órgãos da administração direta, empresas públicas, autarquias e fundações apenas por uma canetada. Não será mais necessária a aprovação prévia pelo poder legislativo de tais inciativas, a exemplo do que ocorre atualmente. Como se pode perceber, a noção de reforma passa longe desta evidente involução no trato da administração pública brasileira.

Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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