Como é uma audiência trabalhista na Justiça Federal dos EUA?

Ilustração: Freepik

Procedimento é marcado por oralidade e interações frequentes entre juiz e advogados.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 16/05/2022

A convite do juiz Peter Messitte, que atua na Corte Federal para o Distrito de Maryland, compareci no último dia 5 de maio ao edifício sede da Justiça Federal de primeira instância na cidade de Greenbelt, para acompanhar uma audiência em processo trabalhista que estava sendo conduzido pelo meu generoso anfitrião.

Alguns dias antes da audiência, recebi da assessoria do juiz Messitte um resumo sobre o caso, para que pudesse melhor compreendê-lo. O processo está identificado como Volto C. Benjamin v. Prince George’s County (Civ. No. PJM 20-211) e foi ajuizado em janeiro de 2020. O reclamante era empregado como guarda prisional em um centro de detenção provisória do condado de Prince George, estado de Maryland. Volto Benjamin, o autor, alega discriminação em razão de deficiência, como base no Americans Disabilities Act, editado em 1990. Segundo a petição inicial, o trabalhador possui problema visual degenerativo de hipersensibilidade à luz fluorescente, e ao permanecer exposto a ela durante longas horas, desenvolveu enxaqueca, náusea e hipertensão.

O autor, que trabalhava no período noturno e em posto iluminado por luz fluorescente, solicitou em 2016 uma acomodação à sua condição peculiar e um supervisor supostamente permitiu que a luz que ficava imediatamente sobre sua mesa permanecesse desligada. No entanto, em 2018, um outro supervisor, alegando razões de segurança carcerária, determinou que a luz permanecesse ligada. Esse novo quadro teria levado a uma deterioração de sua saúde, com vários afastamentos médicos. A falta de providências do empregador teria criado um ambiente hostil de trabalho e o reclamante passou a ser tratado de forma discriminatória e retaliatória por seus superiores, em razão de suas demandas. O reclamante pediu uma “injunction” (obrigação de fazer) para que pudesse trabalhar em local sem incidência de luz fluorescente e uma indenização de US$ 40 mil como reparação. O pedido do autor de obrigação de fazer foi extinto no curso do processo porque ele se aposentou, remanescendo apenas o requerimento indenizatório.

A defesa do condado sustentou basicamente que a acomodação pretendida pelo requerido era irrazoável, pois a luz sobre sua mesa não poderia ser apagada por motivos de segurança do próprio reclamante e dos demais guardas prisionais, não havendo prova de que isso tenha ocorrido durante o período alegado. O réu afirmou também que havia oferecido ao empregado outras alternativas para contornar seu problema médico, inclusive transferência para o turno do dia, o que ele não teria aceitado.

Dois aspectos iniciais que chamam a atenção nesse processo dizem respeito à competência da Justiça Federal para apreciar o caso, em que um servidor público reclama direitos trabalhistas em face de um condado do estado de Maryland. Nos Estados Unidos, não existe um regime “estatutário” próprio para servidores públicos. Todos estão sujeitos à lei trabalhista geral (Federal Labor Standards Act, de 1938) e às demais leis federais consectárias aplicáveis às relações de trabalho (como a Americans with Disabilities Act, de 1990). Leis de condados ou dos estados podem criar regras ou acrescer benefícios aos servidores, desde que não afastem a incidência da legislação federal.

É por isso que esse caso, embora envolva servidor e o condado local que o emprega, foi ajuizado perante a Justiça Federal, em razão da “subject-matter jurisdiction”, isto é, diferentemente do Brasil, nos EUA sempre que uma lei federal é invocada como o fundamento da causa de pedir incide a jurisdição dos tribunais federais. Essa é basicamente a razão pela qual quase todas as lides trabalhistas podem ser aforadas, em tese, na Justiça Federal, excetuado os casos em que o litigante invoque apenas lei trabalhista estadual. Portanto, embora os Estados Unidos não possuam uma “Justiça do Trabalho” especializada, a Justiça Federal exerce jurisdição trabalhista e possui caudalosa jurisprudência em matéria de Direito do Trabalho.

Voltando ao processo, a audiência designada atendia a um pedido do réu para julgamento sumário (summary judgement motion), que é uma espécie de julgamento antecipado da lide, quando inexiste disputa sobre fatos. Caso o juiz entenda que remanesce controvérsia quanto às questões fáticas, ele deve rejeitar a moção e convocar o júri, que nesta hipótese dará o veredito quanto aos fatos do processo.

Assim, a audiência contou com a presença das partes, mas elas não foram ouvidas formalmente, o que só ocorrerá quando (e se) houver convocação do júri.  A audiência, mesmo sem a oitiva de autor e réu, durou cerca de uma hora e era essencialmente de natureza dialógica entre o juiz e as advogadas das partes (que podiam consultar seus clientes), na tentativa de esclarecer pontos obscuros das duas narrativas, pois havendo acordo quanto às questões fáticas, o processo poderia ser julgado sem a necessidade de convocação do júri, pois caberia ao juiz tão somente aplicar o direito.

O primeiro ponto controvertido dizia respeito ao próprio local de trabalho, pois o réu, aparentemente por um equívoco, juntou no processo fotografias de um andar diferente daquele em que o autor trabalhava e as partes não estavam de acordo quanto à similaridade das condições ambientais. O juiz e as advogadas passaram um bom tempo projetando as imagens em retroprojetor para tentar estabelecer de onde vinha a luz prejudicial ao autor. Do ponto de vista dos fatos alegados pelo autor, não estava claro em que momento o autor havia comunicado oficialmente sua deficiência, quando o empregador havia respondido e em que termos.

Seguiu-se para esse fim uma exposição de vários documentos contidos no processo, e pareceu-me que a advogada do condado não havia estudado adequadamente esse material. Também não foi possível determinar claramente se a luz havia sido desligada com autorização de um supervisor e se o autor de fato havia respondido às adaptações oferecidas pelo empregador.

Ao final, como restou matéria fática controvertida, é possível que o juiz entenda pela necessidade de se convocar o júri. A decisão, que poderia ter sido proferida ao final da audiência, foi, no entanto, adiada, pois o magistrado, talvez percebendo pontos vulneráveis em ambas as partes, determinou que as partes se reúnam para tentar um acordo.

Em uma comparação com o processo do trabalho no Brasil, pode-se perceber que há semelhanças e diferenças. A semelhança maior é a oralidade da audiência e a necessidade de delimitar bem as questões de fato e de direito, o que é frequente nas audiências iniciais na Justiça do Trabalho. O diálogo que o juiz do trabalho brasileiro estabelece com os advogados para delimitar a matéria fática não parece muito diferente do modelo americano, embora aqui o juiz me pareceu ser mais ativo e empenhado em proceder a uma “pré-instrução” do caso com a colaboração das advogadas presentes. Essa fase também parece permitir uma maior avaliação, pelos advogados, quanto às suas chances de sucesso, sendo um estímulo à conciliação no curso do processo.

A principal diferença sem dúvida reside na necessidade de júri para resolver disputas fáticas, sendo esse um dos elementos fundamentais e estruturantes do direito americano. As dificuldades para convocação do júri, se de um lado estimulam as partes a uma atitude colaborativa para reduzir ao máximo as controvérsias de fato por meio de mútuo entendimento, de outro lado tornam o processo bastante lento quando isso não ocorre.

Autor  é Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022).

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