Como decisão histórica da Justiça dos EUA protege trabalhadores gays e trans da discriminação

Em uma decisão considerada histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos, a mais alta instância da Justiça americana, afirmou nesta segunda-feira (15/06) que empregados não podem sofrer discriminação no trabalho por serem gays ou transgêneros.

A decisão, com seis votos a favor e três contra, representa uma vitória para trabalhadores LGBTQ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer), que até então corriam o risco de serem demitidos por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero.

“Essa é uma vitória enorme para a igualdade LGBTQ”, disse o diretor do projeto de LGBTQ e HIV da organização de direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), James Esseks.

“A definição da Suprema Corte de que é ilícito demitir pessoas por serem LGBTQ é o resultado de décadas de ativistas lutando por nossos direitos.”

Votos de juízes conservadores

A decisão contou com os votos de dois juízes da ala conservadora do tribunal, John Roberts e Neil Gorsuch, que se uniram aos quatro juízes da ala liberal.

“Um empregador que demite um indivíduo por ser homossexual ou transgênero demite essa pessoa por (causa de) características ou ações que não teria questionado em membros de um sexo diferente. Sexo tem um papel crucial e indisfarçável na decisão, exatamente o que o Artigo 7º proíbe”, escreveu Gorsuch.

O juiz se refere ao Artigo 7º da Lei de Direitos Civis de 1964, que proíbe discriminação no local de trabalho por “raça, cor, religião, sexo ou origem nacional”.

Quando a lei foi aprovada, há mais de meio século, a interpretação da palavra “sexo” nesse artigo era simplesmente de que mulheres não podiam ser tratadas pior do que homens no local de trabalho – da mesma maneira homens não podiam ser tratados pior do que mulheres.

Ao longo do tempo, porém, a referência a “sexo” no Artigo 7º passou a ser interpretada por alguns tribunais como abrangendo também orientação sexual e identidade de gênero.

Com a decisão desta segunda-feira, a Suprema Corte reafirma essa interpretação e garante que funcionários gays e transgêneros em todo o país também estão protegidos de discriminação no trabalho com base no artigo.

“Antes dessa decisão, o tipo de proteção que pessoas LGBTQ tinham nos Estados Unidos dependia da cidade ou Estado em que viviam, ou da empresa para a qual trabalhavam”, diz à BBC News Brasil a socióloga Erin Cech, professora da Universidade de Michigan.

Menos da metade dos 50 Estados americanos têm leis específicas que proíbem discriminação no local de trabalho com base orientação sexual e identidade de gênero.

“Isso significa que, (antes da decisão) se você estivesse em um local de trabalho em que não havia essa proteção, poderia ser demitido legalmente porque seu chefe não gostava do fato de você ser LGBTQ”, salienta Cech.

Casos

Os casos analisados pela Suprema Corte foram os de Donald Zarda e Gerald Bostock, ambos demitidos por serem gays, e Aimee Stephens, que perdeu o emprego como diretora de uma funerária após revelar ao patrão que sofria de disforia de gênero e que havia decidido fazer a transição e voltar das férias como mulher.

Zarda, que era instrutor de paraquedismo, foi demitido em 2010, após revelar a uma aluna que era gay. Ele morreu em 2014, em um acidente de paraquedismo, mas seu caso foi levado adiante por seu companheiro, Bill Moore, e por sua irmã, Melissa Zarda.

“Meu irmão Don era tudo para mim”, disse Melissa Zarda em depoimento. “Eu fui à Suprema Corte para honrar sua memória e continuar a luta por justiça. O que aconteceu com Don foi errado. As pessoas no nosso país já sabiam disso, e agora (com a decisão) não resta mais dúvida.”

Aimee Stephens morreu em maio deste ano, de insuficiência renal. O caso apresentado à Suprema Corte argumenta que ela foi demitida em 2013, duas semanas após enviar uma carta ao chefe na qual dizia que, em vez de Anthony, seu nome passaria a ser Aimee e passaria a vestir roupas femininas, respeitando o código de vestuário da empresa para funcionárias mulheres.

“Eu e minha mulher Aimee éramos almas gêmeas. Nós fomos casadas por 20 anos”, disse em depoimento sua viúva, Donna Stephens. “Estou grata por esta vitória (na Suprema Corte) para honrar o legado de Aimee e garantir que as pessoas seja tratadas de forma justa, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.”

Zarda, Stephens e Bostock receberam apoio de mais de 200 empresas, 150 congressistas, 750 organizações e líderes religiosos, 40 organizações de direitos civis e mais de 100 cidades e prefeitos e organizações médicas nos processos na Suprema Corte.

Os réus – a funerária R.G. & G.R. Harris Funeral Homes, de onde Aimee foi demitida, a empresa Altitude Express, que demitiu Zarda, e o Condado de Clayton, na Geórgia, onde Bostock trabalhava – tiveram o apoio do governo do presidente Donald Trump em seu argumento de que o propósito original da lei não era proibir discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

Nesta segunda-feira, em nome dos três juízes conservadores da Suprema Corte que discordaram da decisão, o juiz Samuel Alito escreveu: “Se cada um dos americanos vivos tivesse sido entrevistado em 1964, seria difícil encontrar algum que pensasse que discriminação por causa de sexo significa discriminação por causa de orientação sexual – sem mencionar identidade de gênero, um conceito que era essencialmente desconhecido na época”.

‘Momento extraordinário’

Apesar de definir este como um “momento extraordinário” para a igualdade LGBTQ nos Estados Unidos, Cech, da Universidade de Michigan, ressalta que “ainda há muito trabalho pela frente”.

A socióloga diz que suas pesquisas com funcionários federais LGBTQ que já contavam com proteções contra discriminação em seus locais de trabalho revelam que, mesmo com essas regras, as desvantagens para esses empregados podem persistir, com tratamento pior e menor acesso a recursos do que os outros colegas. Cech afirma que a situação é ainda pior para pessoas LGBTQ que não são brancas.

“(A decisão da Suprema Corte) é apenas o começo”, afirma a socióloga. “Ainda temos uma longa luta pela frente.”

Esseks, da ACLU, entidade que fez parte da representação legal de Zarda e Stephens, concorda que ainda há muitos desafios.

“Ainda há lacunas alarmantes nas leis de direitos civis federais que deixam (muitas) pessoas, particularmente pessoas LGBTQ negras (e outras minorias), sujeitas a discriminação em estabelecimentos abertos ao público e programas financiados pelo contribuinte”, afirma Esseks.

Fonte: BBC News Brasil
Texto: Alessandra Corrêa
Data original da publicação: 15/06/2020

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