Camareiras, cozinheiras, babás. Que horas elas vêm?

Cena do filme “Que horas ela volta”. Fotografia: Divulgação/Pandora Filmes

Lorena Holzmann

A divisão social do trabalho produziu, ao longo do tempo, marcadores sociais de distinção, definindo hierarquias, padrões de conduta, direitos e deveres. Ou melhor, direitos para os  estratos superiores e deveres para a base da sociedade. Os “de baixo”  trabalhando para sustentar o ócio e o bem viver dos afortunados, os integrantes do “andar de cima”.

Os estratos dirigentes, apoiados em condições materiais ou simbólicas, delegaram sempre ao andar de baixo as tarefas árduas do dia-a-dia. São tarefas rotineiras, desempenhadas no âmbito privado das moradias, essenciais para a reprodução da vida material, mas sem nenhuma consideração social e, por vezes, sem nenhuma visibilidade. Quem as executa é relegado à senzala, ao quartinho dos fundos, ao porão ou ao sótão. O local onde esse contingente de trabalhadores – quase sempre integrado majoritariamente por mulheres – é alojado está relacionado às tradições culturais vinculadas às concepções espacioarquitetônicas e à formação histórica de cada contexto. No Brasil, a divisão social do trabalho está ainda fortemente impregnada da tradição escravocrata, que, embora tenha sido abolida há mais de um século, deitou raízes profundas no país,  e ainda hoje se manifesta no cotidiano da sociedade.

A grande senzala deu lugar aos minúsculos cubículos nos fundos das moradias, às vezes sem iluminação ou ventilação diretas, espaços disfarçados de depósito nos lançamentos de empreendimentos imobiliários. As distâncias sociais permanecem, bem delimitadas por marcadores simbólicos, mais do que físicos, pois esses são reduzidos pela convivência obrigatória entre a família dos donos da casa com seus serviçais.

Cartas do filmes "Que horas ela volta". Fotografia: Divulgação/Pandora Filmes
Cartaz do filme “Que horas ela volta?”. Fotografia: Divulgação/Pandora Filmes

Val é a empregada nordestina de Que horas ela volta? (Anna Muylaert, Brasil, 2015). Vive com uma família de classe média alta numa confortável casa no Morumbi, em São Paulo. Partilha com certa intimidade o dia-a-dia da família, dedica um afeto especial ao garoto da casa, adolescente por quem se responsabilizou desde que ele era criança. Tem uma cumplicidade com as transgressões do garoto, para quem resgata o baseado que a mãe jogara no lixo, trata-o com carinho, serve de apoio e refúgio afetivo diante da ausência frequente da mãe. Val convive naturalmente com os limites de sua condição de empregada, sem questioná-los. Ela sabe qual é seu lugar. Sua filha Jéssica, jovem criada no Nordeste por parentes, vem para São Paulo a fim de prestar vestibular. É bem recebida pela família, com quem passa a morar, até que começa a transgredir os códigos de conduta: toma o sorvete exclusivo de Fabinho, o garoto da casa, brinca na piscina com ele e seus amigos, sugere ocupar o quarto de hóspedes, fora de uso, rejeitando dormir no chão do quarto com a mãe.

O ambiente doméstico começa a ficar tenso: a patroa não aprova as atitudes inusitadas e rebeldes da garota e Val tenta enquadrar a filha nos padrões a que ela sempre se submeteu. Explica para a filha que cada um precisa saber qual é o seu lugar. E os conflitos vão se agigantando.

O filme tem sido considerado um retrato da sociedade brasileira e seus códigos de distinção atuantes no âmbito restrito da domesticidade. Neste, a presença de serviçais é uma constante, com o predomínio das mulheres.

O trabalho doméstico é onde se concentra o maior número de mulheres  na estrutura ocupacional do Brasil: eram, em 2011, mais de seis milhões, com 10 anos ou mais de idade, totalizando 15,6% das mulheres ocupadas (IBGE/PNAD, 2011). Nesse nicho, encontra oportunidade de inserção no mercado de trabalho o contingente de mulheres com baixa qualificação e escolaridade, sem “empregabilidade” em outras ocupações dado seu escasso capital educacional e profissional. Podem ser migrantes recentes, vindas de regiões nas quais as condições de sobrevivência são poucas, ou oriundas de camadas pobres das periferias urbanas, marcadas pela precariedade de serviços públicos, fator decisivo na reprodução das desigualdades sociais no país.

Até recentemente, essa categoria de trabalhadores não contava com nenhuma proteção trabalhista. Há alguns anos, foi conquistado apenas o direito de ter a carteira de trabalho assinada pelo patrão, podendo, assim, ter acesso à Previdência e à perspectiva de aposentadoria, assim como à licença maternidade, às férias remuneradas com adicional de 1/3 e 13º salário. No entanto, mais de 70% dos trabalhadores domésticos não possuem esses direitos assegurados (mais de 4 milhões de pessoas. IBGE/PNAD, 2011). Neste ano de 2015, foi aprovada a lei que amplia os direitos laborais dos trabalhadores domésticos, incluindo FGTS, seguro acidente, regulamentação da jornada de trabalho, horas extras, entre outros. A oposição a essa lei, quando de sua discussão no Congresso nacional, fez-se ouvir, com argumento de que provocaria a contração do mercado de trabalho, pois os novos encargos não poderiam ser arcados pela maioria dos empregadores. Essa é uma atitude recorrente diante de propostas que ampliam direitos, subtraindo privilégios, pois tendem a desorganizar o que estava  estabelecido, perturbando uma ordem tida como natural pelos privilegiados.

Permanece no imaginário social a desconsideração e o desprestígio da ocupação de doméstica, aceita, por vezes, pelos próprios trabalhadores, que dela se envergonham, procurando ocultá-la. É a tradição renovada da mucama, ainda que patroas e empregadas possam desconhecê-la. A submissão e a  subserviência são as características  dessa tradição e sua aceitação é crucial para manter as coisas no seu devido lugar.

Cartas do filmes "Diíario de uma camareira". Fotografia: Divulgação/Maresfilmes
Cartaz do filme “Diário de uma camareira”. Fotografia: Divulgação/Maresfilmes

Essa aceitação pode ser apenas aparente, sufocando o conflito entre patrões e empregados, tradução doméstica da luta de classes na sociedade. É o que pode-se ver em Diário de uma camareira (Benoît Jacquot, França, 2015), filme francês que narra a história de Celestine, uma jovem que sai de Paris e vai trabalhar como camareira na casa de burgueses na província, no fim do século XIX. Cuidar da casa e atender aos caprichos da patroa e do patrão são suas atribuições na mansão, onde ocupa uma sórdida mansarda, sem nenhum conforto.

A prepotência, a maldade e a arrogância da senhora é suportada pela camareira, mas ela articula, com outro serviçal da casa, artimanhas que poderão livrá-la dos humores e da dependência de patrões, possibilitando a instalação de um pequeno empreendimento. Para isso, simulam um assalto à mansão e roubam as pratarias da família.

Embora em contextos diferentes no tempo e no espaço, os dois filmes abordam uma categoria ocupacional e os percalços das mulheres que a desempenham. Desses percalços fazem parte o reconhecimento e o acatamento das regras de convivência de submissão e obediência, o conformar-se com os aposentos míseros que lhes são destinados e, por vezes, o assédio e o abuso dos homens da casa, para quem as camareiras/empregadas devem estar disponíveis para suas investidas sexuais. Não são eventos estranhos à experiência dessas trabalhadoras, na França do século XIX ou no Brasil contemporâneo. Aqui, o peso da tradição escravocrata e o ainda persistente arcaísmo das relações sociais de profunda desigualdade, reservando às camadas inferiores do espectro social, o desprezo de quem as olha de cima. Lá, a tradição aristocrata, também de estrutura social desigual e extremamente rígida, imitada pela burguesia nascente em sua busca de legitimidade social.

Mas a História não estaciona, transforma-se permanentemente. Nos países europeus, trabalhadores e trabalhadoras domésticas quase desapareceram, sendo prerrogativa apenas das famílias muito ricas. Recentemente, com as migrações oriundas sobretudo dos países do Leste, a oferta de mão de obra feminina para esse tipo de ocupação tem se ampliado. No Brasil, a legislação de proteção a esses trabalhadores tem se ampliado nos últimos anos, fazendo com que eles próprios passem a encarar sua atividade menos negativamente do que o faziam em tempos passados recentes.

A filha de Val, vinda do Nordeste, tem uma percepção não naturalizada do lugar de cada um no universo social, questionando-o com atitudes de desafio às regras vigentes, para quase desespero de sua mãe. Em conversa com a patroa da mãe, surpreende a senhora com seus comentários bem articulados, explicando-lhe que seu professor de História ensinou os alunos a pensarem. Tem confiança na possibilidade de realizar seu sonho de cursar arquitetura na elitista USP, embora seja oriunda de uma escola pública e, além de tudo, do Nordeste. Para vencer os obstáculos decorrentes dessas desvantagens, empenha-se nos estudos para enfrentar o vestibular.

A pretensa cordialidade e ausência de preconceitos raciais, culturais, de gênero ou de classe na população brasileira são permanentemente desmascaradas, de modo quase inconsciente, por atitudes e comportamentos naturalizados, não sendo, por isso, contestados ou percebidos como tais.

Como exemplo: vejam-se as novelas de televisão, incorporadas ao cotidiano dos brasileiros. As relações entre patrões e empregados domésticos, sejam homens ou mulheres, podem ser muito amistosas, até cercadas de afetos, considerados os empregados como membros da família, mas eles jamais sentam na mesa dos patrões.

Lorena Holzmann é Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS.

Informações

Título: Que horas ela volta?
Ano: 2015
Duração: 112 min.
País: Brasil
Diretor: Ana Muylaert
Elenco: Regina Casé, Michel Joelsas, Camila Márdila

Mais informações: IMDb, Wikipédia (português). O filme entrou em cartaz no Brasil no final de agosto de 2015 e ainda pode ser encontrado nos cinemas.

Trailer:

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