California dreamin’: o caso Dynamex e a esperança contra o pesadelo uberista

Fotografia: Pixabay

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 24/06/2019

All the leaves are brown
And the sky is grey
I’ve been for a walk
On a winter’s day
I’d be safe and warm
If I was in L.A.

California dreamin’
On such a winter’s day

The Mamas & The Papas, 1966

Para os precários trabalhadores americanos do setor de transporte por aplicativos, as folhas das árvores estão secas e o céu continua cinzento. Porém, no seu longo inverno de péssimas condições de trabalho, talvez eles já possam esperar por um futuro mais seguro e acalentador se começarem a sonhar com a Califórnia.

No “Golden State” dos EUA, o Judiciário e o Legislativo estaduais ameaçam pôr fim às bandalhas jurídicas de empresas de transporte por aplicativos. Como se sabe, diversas “startups” criadas na esteira da revolução digital, e hoje transformadas em multinacionais bilionárias, passaram a se valer na última década de um sistema criado em 2009 pela empresa UBER, que consiste, essencialmente, em valer-se de trabalhadores supostamente “autônomos” para cumprir seus objetivos comerciais, como o transporte de passageiros em grandes cidades ou a entrega de comida, correspondência ou encomendas.

Os trabalhadores, tidos como “independent contractors” porque supostamente livres para decidir os dias e horários de trabalho, na realidade trabalham em pesadas jornadas de até 16 horas (necessárias para garantia remuneração minimamente compensatória), sem direito a descansos ou garantias previdenciárias. A despeito de uma alegada “liberdade de contrato”, estão sujeitos a controle algorítmico para análise de disponibilidade e qualidade do serviço, sendo eliminados quando não atingem os patamares mínimos estabelecidos pela empresa, sem direito a qualquer indenização ou mesmo a questionamento sobre os motivos do distrato. Aos motoristas é negado o direito de sindicalização ou associação, e consequentemente de negociação coletiva, fator indutor de depressão salarial e más condições de trabalho.

Esse novo tipo de “despotismo fabril” aggiornato para o século XXI vem, é claro, sendo questionado em todos os lugares e, em especial, nos países democráticos e desenvolvidos do ocidente, sempre ciosos do pacto entre liberais e social-democratas, garantidor de direitos trabalhistas, o qual permitiu a inclusão da classe trabalhadora ao capitalismo em troca de sua renúncia aos movimentos revolucionários e antissistema.

Pois a quase todos, especialmente na Europa e em muitos estados dos EUA, já está evidente que “motoristas do UBER” e quejandos são essencialmente trabalhadores dependentes de gigantescas corporações internacionais e não, como algumas daquelas empresas de tecnologia pretendem fazer crer aos incréus, “pequenos empreendedores”.

As empresas de transporte por aplicativos têm sofridos tamanhas derrotas judiciais em processos trabalhistas (inclusive em países estratégicos como a Inglaterra e a Espanha), que a questão é objeto de especial atenção por parte de seus controladores e acionistas. O mais emblemático deste quadro foi o relatório que a UBER apresentou às autoridades da Bolsa de Valores Nova Iorque (United States Securities and Exchnage Comission) quando da abertura de seu capital para oferta pública de suas ações. Os dirigentes da empresa reconheceram que há sérios riscos judiciais de reconhecimento de vínculo de emprego com seus motoristas, o que poderia afetar seriamente as projeções da lucratividade dos potenciais acionistas.

E o maior desafio ao modelo uberista vem justamente do lugar onde a gigante UBER foi criada: a Califórnia.

A UBER já foi processada por lá quanto à questão do vínculo de emprego, mas o processo, depois de inúmeros incidentes processuais que envolviam a polêmica questão de arbitragem, acabou em um controverso acordo de 20 milhões de dólares, que beneficiou cerca de 13 mil motoristas, sem, contudo, que se tenha apreciado o mérito da questão da relação de emprego. No entanto, o verdadeiro “pesadelo” para a UBER e outras empresas que adotam o sistema vem do julgamento envolvendo uma empresa relativamente pequena que adotava o mesmo conceito de contratação de trabalho: o caso Dynamex.

A Dynamex é uma empresa de entrega de encomendas, que seguia exatamente o modelo UBER. Motoristas com seus veículos eram cadastrados no site da empresa e convocados mediante chamadas por aplicativos, recebendo uma comissão por tarefa executada. Eles precisavam seguir um restrito código de regras estabelecido unilateralmente pela Dynamex, numa forma de contrato de adesão.

Os trabalhadores vestiam indumentária fornecida pela empresa e caso descumprissem as regras pactuadas eram excluídos da lista de habilitados como “prestadores de serviços”, em exercício de ato potestativo da organização empresarial. Embora, em princípio, fossem livres para decidir seus horários de trabalho, caso não estivessem disponíveis para chamadas durante longos períodos do dia, perderiam as oportunidades de trabalho e não conseguiriam manter um nível mínimo de renda para sua subsistência (além, é claro, de também poderem ser eliminados do cadastro por esse motivo).

Como era de se imaginar, não demorou para que uma ação coletiva trabalhista (employment class action) fosse ajuizada pretendendo o reconhecimento dos trabalhadores como empregados (employees), e o afastamento da suposta condição de autônomos (independent contractors).

A ação foi proposta perante a Justiça do Estado da Califórnia que, em decisão terminativa de sua Corte Suprema, deu ganho de causa aos trabalhadores.

A importância extraordinária deste julgamento (Dynamex Operations West, Inc. v. Superior Court, 4 Cal.5th 903 (2018)) foi que o Judiciário da Califórnia estabeleceu um “teste”, para determinar se trabalhadores de empresas por aplicativos são ou não empregados. Esse standard estabelece três requisitos para determinar se o empregado pode, de fato, ser considerado como “independent contractor”, e a corte californiana descreveu-os em três alíneas (a,b e c). Por isso, o critério passou a ser conhecido como “ABC test”. São os seguintes:

  1. que o trabalhador seja livre de controle e direção da entidade contratante relativamente ao desempenho no trabalho, tanto sob o aspecto formal (termos do contrato), como no aspecto material (relação de fato); e
  2. que o trabalhador desempenhe um trabalho que esteja fora do negócio principal da entidade contratante; e
  3. que o trabalhador esteja habitualmente engajado em um negócio, ocupação ou comércio da mesma natureza do trabalho desempenhado.

Em síntese, a jurisprudência da Califórnia não destoa muito do que habitualmente se adota em nossos tribunais trabalhistas na definição da relação de emprego, pois os critérios “A,B,C” encontram paralelo nas seguintes definições doutrinárias e jurisprudenciais que encontramos por aqui:

  1. existência de subordinação em razão de “controle e direção”, inclusive pelo princípio da primazia da realidade;
  2. trabalho na atividade fim da empresa (sim, os americanos também usam esse critério, tão questionado na Reforma Trabalhista!)
  3. dependência econômica.

Nesse julgamento, ocorrido em abril de 2018, a Suprema Corte da Califórnia aplicou esses requisitos para estabelecer precedente judicial aos casos de relação de trabalho “uberizada”. Evidentemente, em se tratando de sistema stare decisis típico da common law, o julgado tem caráter vinculante para outros casos semelhantes que vierem a ser apreciados pela Justiça do Estado da Califórnia.

O impacto desta decisão foi ainda mais amplificado recentemente, pois no mês passado a Justiça Federal passou também a adotá-lo. A Corte de Apelações do Nono Circuito (que abrange a Califórnia, dentre outros estados da costa oeste), julgando o caso Vazquez et al. V. Jan-Pro Franchising International, Inc. no. 17-16096, não só adotou o “ABC test”, como entendeu que ele pode ser aplicado retroativamente, isto é, a casos que eram anteriores à decisão Dynamex.

Os dois julgamentos tiveram tamanha repercussão que os legisladores estaduais da Califórnia agora querem transformar o “ABC test” em lei estadual, para dar estabilidade às relações de trabalho “uberizadas”, deixando claro que os trabalhadores de aplicativos devem ser considerados empregados. O projeto de lei já foi aprovado na Assembleia Legislativa estadual, mas ainda deve ser apreciado pelo Senado estadual (o poder legislativo na Califórnia é bicameral). Há expectativa de que ele seja aprovado também na câmara alta, que tem maioria do Partido Democrata, em geral favorável às posições pro-labor. E, assim ocorrendo, o Governador também deverá sancioná-lo, pois também é do mesmo partido.

Evidentemente, gigantes como UBER e Lyft estão despejando rios de dinheiro com advogados e lobistas, para convencer tribunais e legisladores de que o seu modelo atual está dentro da lei e é benéfico aos seus “prestadores de serviços”.

Muita água ainda vai rolar sob essa ponte e é muito provável que a questão siga talvez até a Suprema Corte dos EUA, especialmente se algum outro tribunal federal decidir contrariamente ao Nono Circuito, suscitando assim divergência jurisprudencial passível de uniformização pelo mais alto tribunal norte-americano.

Se de um lado a batalha parece longa e difícil para os trabalhadores (especialmente quando se examina a atual composição conservadora da Suprema Corte), de outra parte uma boa luz de esperança parece raiar da Califórnia, estado conhecido não só por sua inovação tecnológica, mas também por liderar grandes mudanças de mentalidade judicial para solucionar os problemas inerentes ao progresso material.

Cássio Casagrande  é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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