por Igor Natusch
Economista ligada ao Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) há mais de 25 anos, Lucia Garcia tem grande experiência na pesquisa e análise da heterogeneidade do mercado de trabalho brasileiro. Um universo que vai ficando cada vez mais desigual, na medida em que um número crescente de trabalhadores e trabalhadoras vai sendo engolido pelas plataformas digitais, com todas as consequências advindas desse tipo de informalidade.
Lucia Garcia está concluindo seu trabalho de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com orientação do professor Cassio da Silva Calvete. Durante cerca de um ano, a pesquisadora foi construindo, por meio de modelos estatísticos semelhantes aos adotados no Dieese, o número estimado de trabalhadores por aplicativos no Brasil: segundo os resultados, temos 3 milhões de pessoas atuando nesta modalidade em nosso país. O número, obtido a partir do uso criterioso da base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, pode ser mais comedido do que o trazido por outras instituições (que ficam em torno dos 5 milhões), mas dá clara noção do alcance que as plataformas têm assumido na economia brasileira – uma presença que, a partir dos reflexos da pandemia do novo coronavírus no Brasil, tende a se tornar cada vez maior.
Em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, Lucia Garcia traz, em primeira mão, alguns resultados desse estudo. Durante a entrevista, ela reflete sobre a nova lógica de trabalho imposta pela plataformização, e explica como o presente brasileiro se conecta com um cenário de profundas transformações no capitalismo global – trazendo elementos importantes para que se possa pensar e atuar de forma mais segura na representação e proteção a esse número crescente de trabalhadores e trabalhadoras.
DMT – Considerando que a problemática em torno da presença de aplicativos no mercado de trabalho é (ou ao menos parece ser) recente, quais foram os principais desafios que a senhora encontrou durante o desenvolvimento da pesquisa?
Lucia Garcia – A literatura sobre o tema existente no Brasil se refere muito mais a processos de trabalho e ao modelo de negócio dessas novas tecnologias, e não consegue fazer uma ponte muito sólida com a questão da mudança nas relações de trabalho no Brasil e no mundo. E o meu interesse era justamente lidar com o meu universo corriqueiro de trabalho, ligado ao mercado de trabalho, o espaço onde as coisas se tornam visíveis do ponto de vista societário. A gente percebe que as mudanças acontecem a partir da base produtiva – portanto, do sistema de relações de produção – e são sancionadas numa arquitetura institucional política, que é o sistema de proteção ao trabalho, as leis trabalhistas e previdência. E que esses dois elementos vão encontrar um tripé quando a gente vai entender isso na massificação do mercado de trabalho. No Brasil, está cada vez mais evidente a ponta mais visível dos trabalhadores em plataforma, que são os entregadores e os motoristas de aplicativo, e a gente tem uma necessidade muito grande de entender isso, mas a literatura no Brasil ainda está muito vinculada a processo e condições de trabalho. Então, eu tive que ir para a literatura internacional, e não porque os autores e pesquisadores sejam melhores que os nossos, mas porque parece claro que essa mudança ocorreu primeiro nos países centrais, por conta da própria dinâmica de desenvolvimento.
Então, nesse meu percurso, eu fiz uso de uma literatura que aponta uma mudança gradual e sistêmica, que acontece desde a década de 1970 e que vai aparecer de forma mais concreta no final da década de 1980 e nos anos 1990, como um modelo de fim de pacto fordista – ou seja, um cenário de alteração do papel do estado nas relações de trabalho e de desvalorização sindical. Ao passo em que a tecnologia digital nasce dentro do sistema de inovação estadunidense, onde o papel do desenvolvimento científico altamente financiado pelo aparato de estado e voltado para o sistema militar é muito característico, e existe um momento em que essa tecnologia de comunicação de base digital é passada para o setor privado dos EUA, a partir de um processo de privatizações. Isso vai exigir privatizações no setor de comunicações do mundo inteiro – lembrando que, aqui no Brasil, esse processo acontece em meados dos anos 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Esse processo prepara a expansão digital, e essa expansão vai se acelerar no mundo inteiro a partir da eclosão da bolha financeira da NASDAQ, em 1999 e 2000, e definitivamente a partir da segunda grande bolha financeira que nós vamos identificar mais recentemente, desde o finalzinho de 2008 até 2011 ou começo de 2012. A partir desses marcos históricos é que nós vamos ter, no centro capitalista – nos EUA, na Europa e na Austrália – o assento de empresas de tecnologia altamente financeirizadas como Amazon, Google e Microsoft. Essas empresas estão precificadas em bolsas, ou seja, elas são completamente financeirizadas, e elas logo avançam no sentido de dominar o mundo.
E veja bem: nesse período, no Brasil e na América Latina, nós estávamos com governos que faziam a proteção à legislação trabalhista, mesmo que relativa e sem grande consciência do processo protetivo e, portanto, atrasaram a entrada dessa operação nessa região. Por outro lado, o interesse dessas empresas, de fato, era o terreno central do capitalismo. Então, as transformações que estamos observando hoje aconteceram primeiro nos países centrais, razão pela qual os pesquisadores desses países são os primeiros que refletem sobre a entrada da tecnologia mudando a maneira de trabalhar e construir mercadoria. E esses países são os primeiros a terem suas reformas trabalhistas desenhadas após a crise das bolsas, a partir de 2011, são os primeiros a destravar, ou flexibilizar completamente, os seus mercados de trabalho para se adequarem à nova tecnologia vigente. Então, são eles os primeiros a observar os efeitos disso no mercado de trabalho, dessa mudança combinada de processos de trabalho e nas relações de trabalho, massificadas no mercado de trabalho. E essas observações que eles vão fazer vão servir de base para eu pensar sobre como observar esse fenômeno, que vai rebater na sociedade brasileira de 2015 em diante, principalmente a partir da reforma trabalhista e a partir de uma guinada na política de estado no Brasil, que deixa de manter um caráter de proteção.
Eu fiz esse longo falar, mas acho que é muito importante entender esse fenômeno, o modo como ele se dá nos países centrais e como ele, mais tarde, vai acontecer na periferia capitalista. No nosso caso, nós já temos uma estrutura de mercado de trabalho fragilizada, marcada por uma sobre-exploração, em que a proteção social sempre se deu apenas para um núcleo, embora amplo pela dimensão continental do Brasil – ou seja, todos aqueles que estavam protegidos pela CLT – mas ainda assim restrito, porque a proteção social no Brasil nunca alcançou a todos. E essa proteção vinha, desde os anos 1990, cada vez mais fragilizada.
Quando essa nova diretriz e lógica de trabalho chega a nações como a brasileira, é claro que ela vai ter suas especificidades. Ela vai, inclusive, criar um problema para os observadores e pesquisadores. Como é que a gente distingue aquela pobreza tradicional, aquela desigualdade tradicional na economia brasileira e no mercado de trabalho brasileiro, desta nova forma de desigualdade que está chegando agora? Esse é o nó que precisa ser desatado por qualquer um que vá observar os efeitos dessa plataformização.
DMT – E qual foi a solução que a sua pesquisa encontrou para essa dificuldade?
Lucia Garcia – Na verdade, temos vários tipos de plataforma. Nós temos essas plataformas de quick work, que a OIT denomina como microtarefas, que se tratam, na verdade, de um aumento extraordinário do processo de parcialização do trabalho. Isso vem lá da manufatura, aquela coisa do (cineasta Charlie) Chaplin (no filme Tempos Modernos), do trabalho se parcializar e o trabalhador nunca ter uma noção completa do conjunto do trabalho. A Amazon, por exemplo, faz uma chamada mundial e trabalhadores da Irlanda, eslavos, da Colômbia, brasileiros e da África respondem a esse chamado e fazem uma pequena tarefa. Nós temos igualmente as plataformas de freelancer, do trabalho contingente e muitas vezes imaterial, de jornalistas, fotógrafos, advogados, arquitetos etc, que é considerado pela sociedade como um trabalho mais elaborado e que vai ser intermediado por essas plataformas. E nós temos essas plataformas de trabalho geográfico, que alguns chamam de trabalho por demanda, que são essas plataformas de trabalhadores que, no caso do Brasil, já operavam como autônomos e que agora estão subordinados à plataforma. Então, nós temos sofisticações das plataformas que incidem sobre tipos diferentes de trabalho, mas sob a mesma lógica: a contratação instantânea, a desobrigação de direitos, uma estrutura semelhante de supervisão e gerenciamento punitivo.
Então, para que a gente possa distinguir essa pobreza tradicional dessa nova condição, é preciso definir alguns parâmetros, que vão estar ligados principalmente ao setor de atividade. Nós temos que separar o bóia-fria do condutor de transporte urbano. Então, essa distinção precisa ser setorial em um primeiro momento – mesmo porque em breve nós não vamos ter mais como fazer essa distinção, em decorrência do espraiamento das plataformas. E precisamos buscar também alguns elementos que são externos à condição de conta própria, que a OIT chama de variáveis transversais, que vão nos ajudar a caracterizar esse trabalho. Então, o local de exercício do trabalho é muito importante, por exemplo, saber se essas pessoas têm ou não um local de exercício de trabalho é uma informação fundamental. Outro ponto importante é que essa pessoa trabalhe de forma isolada, que seja um trabalho individual. Então, o local de trabalho, o trabalho individual e o setor de trabalho são, neste momento, as informações e ferramentas de que dispomos para cruzar e construir uma visão ampla dos trabalhadores em plataforma.
DMT – É possível, neste momento, determinar com um nível razoável de certeza quantos trabalhadores e trabalhadoras estão ligados às plataformas no Brasil? Qual a conclusão de sua pesquisa nesse sentido?
Lucia Garcia – Quero acentuar que nós dificilmente conseguiremos, de um ponto de vista oficial, ter o número exato de entregadores, por exemplo, ou o número de condutores de veículos de transporte por plataforma. Nós podemos ter do conjunto dos trabalhadores plataformizados. E, a partir desse cruzamento de informações e tomando o cuidado de fazer a distinção com a pobreza tradicional, eu cheguei, para o ano de 2018, ao número de 3 milhões de trabalhadores nessa condição.
DMT – É um número bem significativo.
Lucia Garcia – Na verdade, esse número é mais tímido do que o que foi indicado pela empresa Locomotiva, que sinalizou (no começo de 2019) que seriam 5 milhões de trabalhadores em entrega e condução feitas por plataforma. Depois esse número foi retirado, sumiu, e não se falou mais nisso. Nós, no Dieese, chegamos a fazer contato com a empresa, mas não obtivemos retorno. O que nos leva a pensar que existe a possibilidade de que esse número tenha sido superestimado naquele momento. Nós, aqui, estamos tentando ter bastante rigor, a partir do nosso conhecimento e a partir do trabalho com a base de dados oficial do Brasil, que é a PNAD. Quando nós vamos usar a base oficial, quando nós fazemos essas filtragens todas, nós chegamos ao número de cerca de 3 milhões de trabalhadores nesse contexto.
DMT – Até que ponto é possível, dentro das informações trazidas pela sua pesquisa, traçar um eventual perfil dessas pessoas? É possível delimitar se são mais homens ou mulheres, qual o grau de escolaridade, rendimento médio etc?
Lucia Garcia – A grande característica desse grupo, e que mais o diferencia da pobreza tradicional – ou seja, do nosso trabalhador por conta própria que era chamado setor informal, organizado em pequenos negócios e pequenas empresas que caracterizam o mercado latino-americano – a partir da entrada da plataforma, que produz trabalhadores sob a mesma condição de instabilidade que experimentamos anteriormente, é que se trata de um grupo heterogêneo, enquanto aquele era homogêneo. Aquele grupo da informalidade tradicional, em que pese ele trazer dentro de si alguns elementos de diversidade, é um grupo de ganhos mais baixos, de forte desproteção social na medida em que ele não participa da Previdência, e com um saber que é geralmente advindo da atividade laborativa. É um mestre de obras que aprendeu na obra, é um trabalhador do corte da cana ou da laranja que aprendeu o seu ofício na prática. É um trabalhador de escolaridade em geral baixa, renda baixa e desproteção. Enquanto que esse grupo de trabalhadores que é acionado pelas plataformas é heterogêneo do ponto de vista da escolaridade; o seu naipe de rendimentos, em que pese serem baixos no comparativo com as devidas profissões (de cada um), é variável; e a jornada efetiva tende a ser um pouco menor do que a dos trabalhadores assalariados e dos donos dos próprios negócios, porque ela é uma hora recrutada, demandada pelo capital.
Além disso, a heterogeneidade de saberes se reflete também em uma grande heterogeneidade das próprias plataformas. Vamos ter, por exemplo, a Singu, que é uma plataforma que recruta e administra serviços de cuidados pessoais, pedicure, cabeleireiras, maquiadoras etc, e que é voltada especialmente ao público feminino. E vamos ter os freelancers, também, como em uma plataforma chamada Celebra, que recruta trabalhadores de restaurantes e trabalhadores para serviços de catering e buffet – maitres, cozinheiros, sommeliers, garçons e garçonetes que são recrutados para trabalhos instantâneos na cadeia de alimentação e nessas atividades de empresas que organizam eventos. É incontável o número de exemplos que vão nos dar conta de uma heterogeneidade muito grande. E, ainda assim, nós estamos falando de um trabalho com ares de conta própria, mas que é completamente subordinado, comandado. E essa é a sua característica definidora: é um grupo heterogêneo de trabalhadores, e que tende a ser mais heterogêneo com o passar do tempo, porque a plataformização entrou de sopetão no Brasil entre 2016 e 2017, naquele momento específico da reforma trabalhista, e vai se aprofundar.
DMT – Mesmo porque a Covid-19 está tendo esse efeito, não é? Na medida em que a pandemia causa um desarranjo sobre todos os aspectos da nova vida e de nossas experiências, é evidente que trará efeitos sobre o mundo do trabalho. E o que temos visto aponta na direção de uma utilização ainda maior das plataformas, tanto por quem procura serviços, quanto por trabalhadores em busca de renda.
Lucia Garcia – Um autor, chamado (Gerald) Friedman, chama essas empresas de que estamos falando de empresas-sombra, ou empresas-espectro. Então, tomando emprestado a Friedman esse termo, poderíamos fazer um jogo de palavras, a partir do que Marx nos dizia sobre um espectro que ronda a Europa. Hoje, um espectro ronda o mundo e apavora os trabalhadores, que é o dessas empresas-sombra, que ninguém sabe onde estão mas, na verdade, estão na Califórnia, na resistência do capitalismo que é os Estados Unidos.
Ao meu ver, a Covid-19 traz um cenário em que tudo que é ruim pode ficar pior. Existe uma parcela da nossa esquerda que gosta de projetar um otimismo infundado em tudo. Primeiro, ela veio nos dizer que um mundo em rede seria um mundo melhor, que era absurdo pensá-lo a partir de lógicas demasiado clássicas porque ele seria um mundo mais livre e, portanto, naturalmente melhor. Depois, ela nos disse que a internet nos trazia uma oportunidade para romper as hierarquias, porque nós teríamos uma comunicação mais horizontal, coisa que não se efetivou. E agora surgiu essa ideia otimista de que a Covid-19, na medida em que explicita essa relação de dominação a que estamos sujeitos, despertaria um salto conscientizador na classe operária. O que a gente tem observado não é isso: na verdade, a pandemia tem acelerado o processo de digitalização. Atividades que levariam alguns anos para incorporar a lógica do trabalho remoto acabam engolidas pela plataforma, por esse modelo de funcionamento da empresa capitalista (que atua por plataformas). Vamos dar um exemplo concreto para isso. Eu sou aluna da UFRGS ainda, e recebi ontem o meu link para o Microsoft Lync – uma plataforma internacional (para mensagens corporativas), que vai captar todos os dados da nossa produção universitária, e a UFRGS aderiu a isso. A educação, que seria um setor que teoricamente resistiria um pouco mais a esse processo de plataformização, acabou tendo esse ingresso acelerado por conta da oportunidade trazida pela Covid-19.
Então, a minha resposta é essa: a Covid-19 potencializa e acelera tendências que já estavam colocadas. E nós estamos em um contínuo desde os anos 1970. Não estamos diante do novo, de algo surpreendente: estamos diante de uma mudança sistêmica, que vem se colocando há muito tempo e que associa, de uma maneira muito perversa, financeirização e trabalho digital.
DMT – Aproveito, então, essa sua colocação para perguntar a respeito da relação entre uso de aplicativos e desemprego. Trago esse tema porque é um argumento muito usado como, digamos, uma apologia aos aplicativos: que eles permitem que um número maior de pessoas tenha acesso a renda, encontre uma ocupação lucrativa etc. Como a senhora vê isso? A plataformização traz, de fato, uma redução no desemprego?
Lucia Garcia – O desemprego é uma condição típica de uma economia capitalista, um mecanismo associado às oscilações desse sistema. Vamos ter o desemprego como algo resultante da acomodação da decisão capitalista de produzir e como produzir, e as associações disso com sua capacidade de gerar absorção do volume produzido. Os trabalhadores, nesse sentido, não são mais do que uma engrenagem da máquina capitalista. Se estamos vivenciando uma transformação desde os anos 1970, é porque desde então o desemprego vem adquirindo a característica de se modular, a partir de mudanças gradativas, de fundo e conjunturais. Entretanto, quando a base de produção assume o formato digital, ela tem como característica a criação de um desemprego de longo prazo, cristalizado a partir da matriz tecnológica. Um desemprego de exclusão: as pessoas que não são letradas digitalmente estão excluídas, elas são expulsas desse sistema. E esse contingente em desemprego vai ser aproveitado pelas empresas-sombra, vai ser recrutado em determinados momentos. Isso quer dizer que esse desemprego tem graduações. Nós vamos ter desempregados estruturais, que vão estar jogados à pobreza permanente, e vamos ter trabalhadores recentemente desempregados, como o metalúrgico que operava uma máquina CNC e cai em desemprego, o jornalista que estava operando em uma redação e agora tem dificuldade de obter seu trabalho, o economista que antes estava inserido no sistema produtivo… Enfim, essa força recém desempregada e mais próxima do trabalho digital é um força latente, e que será recrutada pela plataforma.
Então, nós vamos ter emprego para os trabalhadores desempregados a partir da expansão da plataforma? Sim, para alguns trabalhadores que foram expulsos do núcleo de produção. Vamos ter emprego para todos? Não, não vamos. Porque o volume de desempregados expulsos do setor produtivo pela mudança tecnológica é muito maior do que os que vão ser aproveitados de maneira temporária, instantânea pelas plataformas. E isso quer dizer que o mercado de trabalho não só apresenta mais desemprego, mas que as ocupações que ele gera têm uma característica de insuficiência do ponto de vista da renda dos trabalhadores, da qualidade e da proteção do trabalho. Além disso, essa nova tecnologia faz uma separação muito mais nítida e muito mais abissal entre planejamento e execução do trabalho. Essa questão já estava colocada na primeira e na segunda Revolução Industrial, mas agora se abre uma fenda muito maior. O que eu quero dizer com isso? Que é uma coisa ser um programador, outra coisa é ser um letrado digital capaz de se inscrever em uma plataforma de serviços e aguardar até que alguém chame para entregar uma pizza. Há uma diferença do seccionamento entre planejamento, racionalidade, criatividade e a execução do trabalho.
Então, em síntese, nós temos um mercado de trabalho com mais desemprego, um volume de desemprego mais alto e resistente a queda, um mercado de trabalho com formas bem diferentes do assalariamento e que não nos gera essa segurança associada ao assalariamento, seja porque esses empregos gerados são instáveis e temporários, seja porque a remuneração é mais baixa ou porque esses trabalhadores não têm acesso à seguridade social.
DMT – Ou seja, a engrenagem capitalista vai se transformando a partir da plataformização, e gerando novas modalidades de precariedade para a classe trabalhadora…
Lucia Garcia – Sim, e isso nos demonstra, com muita clareza, que o capitalismo está muito longe de acabar. Ele se renovou, substituiu a indústria automobilística pelas plataformas, e estabelece um circuito de trabalho que o retroalimenta. Essa é uma pauta extensa, que talvez precise de toda uma outra conversa, mas a plataformização gera um mercado menor, e não apenas porque ele oferece menos empregos, mas porque as pessoas desistem do mercado de trabalho. É uma porcaria tão ruim que as pessoas não querem mais participar disso, entende? E veja bem, faz algum tempo que o hiperconsumismo caiu de moda. Faça seu próprio pão, tricote sua própria roupa, do it yourself, faça você mesmo. Esse movimento de redução de trabalho passa a criar também uma ideologia. E é claro que eu não sou filósofa, nem socióloga e nem cientista política, que eu acho que são as pessoas que têm que discutir isso mais a fundo, mas eu comecei a fazer uma pesquisa sobre a quantidade de canais do YouTube que nós temos associados a isso tudo, e me parece que, na verdade, nós estamos treinando as pessoas para não consumir. Assim como o fordismo da segunda Revolução Industrial fez um treinamento social para que tivéssemos pessoas que consumissem muito, hoje nós temos um treinamento para o contrário: vamos buscar a essência de nós, diminuir o mundo do consumo.
Inclusive o (governante russo Vladimir) Putin foi, em determinado momento, muito criticado quando fez uma fala sobre uma manifestação pública da (ativista sueca) Greta Thunberg. E eu acho que a perspicácia do Putin é fantástica, porque ele diz: olha, eu respeito, acho que todo mundo tem direito de falar, mas eu lamento que essa criança esteja sendo manipulada. Passar ao mundo uma imagem de que não se deve consumir, que devemos baixar nossas expectativas de consumo – tudo isso, diga-se, é algo essencialmente verdadeiro e correto, mas está associado a um movimento político do cerne do capitalismo. Porque hoje não precisamos de tantos trabalhadores e, veja bem, (o economista Thomas) Malthus já havia dito isso. A política de dizimar populações é malthusiana. Hoje, os pós-modernos estão chamando de necropolítica, mas esse conceito, dentro de economia política, existe há séculos. David Ricardo e Malthus discutiam se o tamanho da população seria importante economicamente, e Malthus tinha uma prescrição, que passava pelo controle de natalidade e, depois, deixar os velhos morrerem. Hoje, existe um excesso populacional, e o tamanho do mercado de trabalho, que tende a diminuir, faz com que as pessoas tenham que viver fora dele – ou, em última instância, que populações venham a ser eliminadas. Porque nós temos gente demais para esse barquinho.
Como o capitalismo está manejando isso? Ele está eliminando o conceito de hora de trabalho. Você vai receber pelo texto que você vai escrever. Você não vai receber por uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, ou de 36 ou de 30 horas, na qual você está alocando seu tempo independente de produzir ou não produzir. O capitalismo vai propor o seguinte: eu quero o seu texto pronto aqui, eu até pago bem, mas pelo texto pronto, por lauda, e é isso aí. Nós estamos adentrando um momento de recuperação capitalista retumbante, nas costas do trabalhador. E aí, voltando para o meu tema de pesquisa, nós vamos precisar adaptar os sistemas estatísticos e de pesquisa para que sejam capazes de retratar esse novo mundo do trabalho. Que a gente possa chegar a uma quantificação não esforçada desses trabalhadores, mas que a gente possa vê-los de forma mais transparente e direta, vamos dizer assim, nos dados oficiais.
DMT – Até que ponto a sua pesquisa, e essa mudança nos modelos estatísticos e de pesquisa que a senhora mencionou como necessária, podem instrumentalizar as representações políticas da classe trabalhadora? Pergunto porque estamos vivenciando também uma crise no sindicalismo em escala global, que vai além da precarização em si, mas que se refere à própria capacidade de representação dessas entidades. Estamos falando sobre uma grande massa de trabalhadores e trabalhadoras que vivem, todos os dias, situações de precarização sobre as quais os sindicatos não parecem preparados para atuar.
Lucia Garcia – Claro que a contribuição que a gente traz a partir de um estudo acadêmico é sempre muito modesta. E a modéstia vai crescendo na medida em que se vai avançando no trabalho, porque a gente vai entendendo com mais clareza as dificuldades que existem. Mas acho que esse questionamento que você traz é muito importante. Dar visibilidade é um fundamento da representação. Me parece que, quando os trabalhadores do mundo se organizaram, eles procuraram se organizar como classe. Quando nós passamos da primeira para a segunda Revolução Industrial, temos uma cristalização das categorias, e o nosso sindicalismo é baseado em categorias. O sindicalismo brasileiro é caudatário da organização operária europeia da segunda Revolução Industrial, e isso trouxe uma fragmentação das categorias e uma fragmentação do poder operário, que hoje se mostra cabalmente impotente diante do novo mundo do trabalho.
Acho que uma das questões mais importantes que aparecem neste estudo, neste esforço que estou tentando fazer, é que a generalização desse tipo de tecnologia vai trazer para a classe trabalhadora e para a organização sindical muito mais aquele contexto da primeira Revolução Industrial, onde nós tínhamos uma homogeneidade de condições de vida, do que o da segunda Revolução Industrial. As máquinas da primeira Revolução Industrial eram genéricas, ou seja, podiam ser facilmente adaptadas a todos os ramos produtivos. Isso quer dizer que o fundamento das máquinas era o mesmo para a grande parte da massa trabalhadora. Quando passamos para a segunda Revolução Industrial, temos um salto para máquinas especializadas e, com isso, um saber mais fragmentado dentro da classe trabalhadora, que vai nos gerar diferentes categorias. Dentro de uma fábrica, o engenheiro e o varredor do chão vão saber coisas muito diferentes, e isso vai resultar em lugares sociais muito diferentes. O que a tecnologia digital faz é recuperar o princípio da primeira Revolução: ela divide os trabalhadores em ciber-operariado e a produção tecnológica mais especializada, com trabalhadores que elaboram os algoritmos e entendem a lógica da arquitetura digital.
O que há de positivo, ou mesmo de alvissareiro, no novo mundo do trabalho? As condições de vida dos trabalhadores vão se tornar mais rebaixadas, mas também mais uniformes. Isso pode aproximar e gerar melhores condições de organização. Então, por um lado a gente visibiliza e, por outro, demonstra que nós todos somos trabalhadores. Essa história de classe média, que é uma falácia, começa a perder um pouco de força, e em consequência se fortalece o que é concreto e real: nós todos vivemos de uma renda que é gerenciada pelo outro, por uma dessas empresas-sombra que aí estão.
[…] Clique aqui e leia a entrevista completa […]