Baile de máscara: as plataformas digitais, o debate regulatório e a arte da distração

Fotografia: Jean Nomadino/Pixabay

O mágico explora a tendência das pessoas olharem para o óbvio enquanto a mágica real ocorre em outro lugar, fazendo com que o público olhe para onde gostaria que olhasse, em vez de ver a realidade.

Viviane Vidigal

Fonte: Direito do Trabalho Crítico
Data original da publicação: 24/02/2023

Veneza, por volta do século XV, acontecia o primeiro “Ball Masquê”. No carnaval veneziano os homens usavam a “baùta”, uma roupa com uma espécie de capa que cobria todo o corpo. O rosto era escondido por uma máscara branca triangular, com uma abertura que não os impedia de comer e beber, mas era suficientemente fechada para alterar até mesmo a voz de quem a usava. As mulheres usavam a “moretta” uma máscara preta de veludo oval. Porém, vejam só, para elas reinava o silêncio, já que a moretta era encaixada no rosto por meio de um botão que devia ficar dentro da boca da mulher, o que as impedia de se expressarem (CONCEIÇÃO, 2021).

O uso de máscaras significava uma oportunidade de esconder a identidade. O disfarce permitia aos/às venezianos/as serem quem eles/as queriam ou não serem quem não queriam, pelo menos durante um momento fugaz. As máscaras serviam para não poder ver o que/quem realmente era. O uso das máscaras, por vezes, proporcionava a quem estivesse debaixo delas operar às margens do sistema.

Em “Capitalismo de Plataforma: as facetas e as falácias” demonstro como os elementos são manipulados pelo capital para mascarar o vínculo empregatício. O vínculo, portanto, pode ser mascarado de diversas maneiras conforme exponho e sistematizo no livro1.

Há alguns anos, li no Geledes2 um texto sobre “as grandes estratégias da manipulação midiática por Noam Chomsky”. A primeira estratégia mencionada era a da distração. “A Estratégia da DistraçãoO elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças que são decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto ‘Armas Silenciosas para Guerras Tranquilas’).”

Goebbels, publicitário de Hitler, ao estabelecer o princípio da transposição, explicava que deve-se transladar todos os males sociais ao inimigo e, se não puder negar más notícias, deve-se inventar outras que as distraiam. Sendo que a própria construção de um inimigo único era uma distração importante para desfocar dos problemas reais da sociedade.

A arte da distração, que pode ser vista no filme “Um truque de mestre” (2013), foi escrita por Dariel Fitzkee no livro “Magic by Misdirection” (1945). O autor explica como um mágico habilidoso explora a tendência das pessoas olharem para o óbvio enquanto a mágica real ocorre em outro lugar, ele faz com que o público olhe para onde gostaria que olhasse, em vez de ver a verdadeira realidade.

Como cientista social, desprovida de habilidades mágicas, convido-lhes a olhar para a realidade. A categoria jurídica do/a trabalhador/a das empresas-plataforma já existe: empregado/a. Tal qual não se trata de uma nova classe como o precariado de Standing (2013), não se trata de uma nova espécie de trabalhador/a. O ordenamento jurídico brasileiro atual é suficiente para reconhecer a atividade desempenhada pelos/as motoristas, entregadores/as, entre outros/as, como trabalho subordinado, consequentemente como empregado/a.

Pela doutrina, aos/às adeptos/as da subordinação clássica, com a interpretação de que o algoritmo faz as vezes do/a gerente, do/a supervisor/a e do/a capataz, vincula-se. Aos/às adeptos/as da subordinação estrutural de Mauricio Godinho Delgado (2006), uma vez afastada a máscara de vínculo que é a falácia das empresas-plataforma serem todas de tecnologia, vincula-se. Mais recentemente, ao olhar especificamente para o trabalho no capitalismo de plataforma autores e autoras contribuíram com proposições para novas expressões da subordinação jurídica como a subordinação algorítmica (BARZOTTO; MISKULIN; BREDA, 2020, COUTINHO, 2021), a subordinação disruptiva (GAIA, 2019), a subordinação imersiva (GUSMÃO, 2023) e a subordinação digital (VIDIGAL, 2023). Por todas essas facetas da subordinação, vincula-se.

Pela legislação, o controle telemático e informatizado exercido pelas empresas-plataforma, ainda que seja um controle exercido primordialmente por um código de computador, sem gerência intensiva de um superior hierárquico, é equivalente ao controle pessoal e direto (BABOIN, 2017). Ao encontro da realidade social, da forma como o controle se dá na contemporaneidade, via informacional-digital, desde 2011 a CLT expressamente equipara os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios pessoais e diretos, conforme parágrafo único do art. 6º3.

Se fosse eu uma mágica habilidosa capitalista, com a intenção de desviar o foco da realidade, distrairia o/a interlocutor/a. Para isso, tentaria criar outras categorias ou subcategorias de trabalhadores/as para desfocar do fato que a categoria já existe. Ao elaborar novas proposições legislativas não se aplica a legislação que já existe. Ao se despender esforços debatendo e formulando outras novas categorias se descura do arcabouço jurídico existente. Ao alardear que é necessária uma lei nova para dizer que se aplica a CLT se reforça que ela não se aplica. Isto tudo, significa dizer que o ordenamento jurídico é insuficiente para vincular o/a trabalhador/a plataformizado/a. Para quem acredita que esses/as trabalhadores/as são subordinados/as tal tomada de posição é um erro estratégico.

Para não distrair e confundir, existem duas questões distintas relacionadas ao trabalho para as empresas-plataforma, a primeira é o debate regulatório sobre a espécie de trabalho e o vínculo empregatício, a segunda é o debate regulatório sobre o controle digital.

O controle digital (VIDIGAL, 2023), este sim, precisa de regulação. Já denunciava em 2017, Scheiber (motorista da Uber), em entrevista ao New Tork Times, que a coleta de dados é surpreendente e, a esse despeito, não há controle trabalhista sobre a questão (SCHEIBER, 2017). Rodrigo Carelli afirma que deve ser avançada a regulação da coleta, processamento, guarda e utilização de dados dos trabalhadores (CARELLI, 2023).

Os dados são utilizados de forma obscura e as regras não são informadas e acordadas com os(as) trabalhadores(as). Neste caso, os(as) trabalhadores(as) não são informados e não tem conhecimento do total conteúdo de seu contrato de trabalho, não podendo alterá-lo ou negociá-lo (VIDIGAL, 2021). Não há regulamento de empresa que possa ser segredo (VIDIGAL, 2021; CARELLI, 2023).

Quando falamos em gamificação4, que não é neutra ou aleatória, mas uma programação, trata-se de um “jogo” com regras pré-determinadas, definidas de forma unilateral pelas empresas-plataforma tendo como objetivo estimular os(as) trabalhadores(as) a ficarem disponíveis o máximo de tempo. Um “jogo” com regras de cartas marcadas para o capitalista vencer e o/a trabalhador/a perder. Enquanto o “jogo” continua desregulado, os(as) trabalhadores(as) desempenham suas atividades sem parar, desprotegidos(as), sendo interrompidos(as) apenas por doenças laborais e acidentes de trabalho – que por vezes, ceifam suas vidas (VIDIGAL, 2022). Estes limites precisam ser debatidos e impostos. A regulação do controle digital deve ser foco estratégico das pautas.

A respeito das dezenas de propostas de uma terceira via, do meio termo italiano chamado “parassubordinado” ou do inglês conhecido por “worker”, de alguns direitos, de poucos direitos, de mais ou menos direitos, de outra lei para dizer que se aplica a CLT, elas confundem. Trata-se da arte da distração para manter o pensamento da classe dominante. Tais projetos e propostas são um baile de máscaras.

Notas

1 Capítulo intitulado “Máscaras de Vínculo”. VIDIGAL, V. Capitalismo de plataforma: as facetas e as falácias. 1ed.: Mizuno, 2023. (no prelo)

2 Disponível em: https://www.geledes.org.br/10-estrategias-de-manipulacao-da-midia-noam-chomsky/

3 Art. 6o Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio. (Incluído pela Lei nº 12.551, de 2011)

4 A gamificação do trabalho, portanto, pode ser entendida como uma tentativa de engajar o(a) trabalhador(a), além de ser uma tentativa do capitalismo de integrar, ao âmbito do trabalho uma dimensão afetiva, que concerne a fatores como a diversão para um apagamento do sofrimento no trabalho, e uma dimensão material, pois ao completar os desafios os trabalhadores aumentam os seus rendimentos. Como consequências da gamificação existem ganhos simbólicos e materiais, positivos ou negativos, destinados aos(as) trabalhadores(as) (VIDIGAL, 2023).

Referências

BABOIN, José Carlos de Carvalho. Trabalhadores sob demanda: o caso Uber. Revista LTr, São Paulo, ano 81, n. 3, mar. 2017.

BARZOTTO, Luciane Cardoso; MISKULIN, Ana Paula Silva Campos; BREDA, Lucieli. Condições transparentes de trabalho, informação e subordinação algorítmica nas relações de trabalho. In: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da (org.) Futuro do trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020, pp. 212-213.

CARELLI, R. O trabalho em plataformas digitais precisa de regulação especial. Disponível em: https://jornalggn.com.br/trabalho/o-trabalho-em-plataforma-digital-precisa-de-regulacao-especial-por-rodrigo-carelli/. 2023.

CONCEIÇÃO, Helton da Silva. O cenário arquitetônico como passarela do carnaval carioca: um quebra cabeça poético e multicultural através da colagem. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Visual-Design)-Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

COUTINHO, Raianne Liberal. A subordinação algorítmica no arquétipo Uber: desafios para a incorporação de um sistema constitucional de proteção trabalhista. 2021. 241 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

DELGADO, Maurício Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista LTr. São Paulo, LTr, ano 70, n. 6, p. 657-667, jun. 2006, p. 667.

GAIA, Fausto Siqueira. Uberização do trabalho: aspectos da subordinação jurídica disruptiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019

GUSMÃO, Xerxes. A Subordinação Imersiva. In: Viviane Vidigal; Oscar Krost (Org.). Adeus Direito, Tecnologia e Trabalho. 1ed.. Leme/SP: Editora Mizuno, 2023. ( no prelo)

SCHEIBER, N. How Uber uses psychological tricks to push its drivers’ buttons. New York Times, 2 de abril de 2017. 2017. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/ technology/uber-drivers-psychological-tricks.html. Acesso em: 20 jan. 2018.

STANDING, Guy. O Precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

VIDIGAL, V. game over, play again? a gestão gamificada e o jogo de cartas marcadas. In: Viviane Vidigal; Oscar Krost; Manuel Estrada. (Org.). Direito, Tecnologia e Trabalho. 1ed. Leme/SP: Editora Mizuno, 2022.

VIDIGAL, V.. periciando a caixa de pandora: os segredos da gestão algorítmica do trabalho. teoria jurídica contemporânea, v. 1, p. 1, 2021.

VIDIGAL, V. Capitalismo de plataforma: as facetas e as falácias. 1ed. Leme/SP: Editora Mizuno, 2023. ( no prelo)

Viviane Vidigal é professora universitária e pesquisadora. Doutoranda e mestra em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Especialista em Direito do Trabalho (NTC, 2011) e Especialista em Direito Penal. Coordenadora do núcleo de sociologia da ESA OAB/SP. Coordenadora da coleção Direito, Tecnologia e Trabalho (Editora Mizuno), autora da obra “Capitalismo de plataforma: as facetas e as falácias”.

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