Congresso retomará atividades com a “reforma” administrativa. A pretexto de “sanear finanças”, reduzem-se salários de servidores e extinguem-se políticas públicas. Mas obsessão é seletiva – em um ano, já foram R$ 178 bi em juros da dívida pública.
Paulo Kliass
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 28/01/2020
A retomada dos trabalhos do Congresso Nacional na semana que vem deve recolocar na ordem do dia um conjunto amplo de escândalos e políticas criminosas levadas à cabo pelo governo do capitão. A lista de malfeitos é enorme, incluindo desde as imbecilidades patrocinadas pelo núcleo mais doutrinário da equipe de Bolsonaro até as propostas mais extremadas do entreguismo explícito, que parece tão caro a Paulo Guedes.
Assim, o país poderá discutir as razões que levam a ministra Damares a propor a abstinência sexual como método para reduzir a gravidez indesejada ou então questionar as trapalhadas de seu colega Weintraub na condução dos processos envolvendo o ENEM, o SISU e o PROUNI. Por outro lado, os parlamentares poderão questionar absurdos como a política de compras governamentais do Estado brasileiro ser entregue para as empresas internacionais ou então a enésima tentativa de promover a privatização da Eletrobras, uma das principais empresas estatais na área de geração e transmissão de energia elétrica.
No entanto, algumas das principais maldades encomendadas pelo núcleo duro de Bolsonaro referem-se às Propostas de Emenda Constitucional (PECs) já enviadas ao poder legislativo no final do ano passado. São as PECs 186, 187 e 188, apelidadas sarcasticamente pelo governo de “Plano Mais Brasil”. Além disso, ao que tudo indica, ainda estão em compasso de espera na cozinha do Palácio do Planalto as demais medidas relativas à chamada Reforma Administrativa. Todo esse amplo conjunto envolve proposições que têm por objetivo única e exclusivamente promover a redução de despesas públicas. Como sabemos, Paulo Guedes incorpora a missão de destruição do Estado brasileiro e também de promover o desmonte das políticas públicas ainda vigentes.
As PECs pretendem incluir no texto da Constituição Federal a interpretação ortodoxa e monetarista do ajuste fiscal e da austeridade burra. Assim, estabelece a possibilidade de redução dos salários dos servidores públicos em até 25% dos atuais vencimentos, com o surrado argumento da redução compulsória da jornada de trabalho. Depois de promover a redução dos benefícios do INSS, por meio da Reforma Previdenciária aprovada no ano passado, agora o superministro se propõe a eliminar direitos adquiridos dos servidores públicos nos planos federal, estadual e municipal.
Já a PEC 187 pretende extinguir um conjunto amplo de fundos financeiros públicos criados ao longo dos últimos trinta anos sem que tivesse sua inscrição registrada no texto da Constituição. O objetivo sempre foi o de utilizar esses fundos para que o governo federal pudesse executar políticas públicas em setores estratégicos ou para áreas consideradas sensíveis ou prioritária para o país. Com a PEC, a intenção é promover a extinção de mais de 280 fundos infraconstitucionais existentes e transferir o saldo superavitário dos mesmos para livre uso pelo Tesouro Nacional, da forma que mais interessar ao governo. As estimativas apontam para um valor superior a R$ 320 bilhões que ficarão disponíveis para Paulo Guedes realizar, sem nenhum constrangimento, as suas tão desejadas despesas financeiras, caso haja êxito em tal manobra.
Esse movimento de preferência pelo domínio do financeiro tem sido reforçado desde a consolidação da estratégia do austericídio como o elemento central da política econômica do governo federal em 2015. A combinação de uma verdadeira obsessão pelo corte de despesas orçamentárias e a manutenção de taxas de juros bastante elevadas promoveu o ingresso da economia brasileira na mais profunda e prolongada recessão de nossa história. O agravante de todo esse processo foi o início de um período de redução das receitas tributárias derivadas da diminuição do PIB por sucessivos quatro anos.
No entanto, o governo manteve a política do chamado superávit primário. Por meio dessa verdadeira malandragem introduzida espertamente na metodologia de nossas finanças públicas, todo o esforço fiscal deve se restringir às contas de natureza não-financeira. Vale dizer, que a austeridade não cabe nas contas financeiras – as despesas com juros da dívida pública. Esses gastos podem subir leves e tranquilos, ao passo que as rubricas de educação, saúde, previdência, pessoal, saneamento e outras devem ser comprimidas em nome do “sacrifício necessário”.
No entanto, a observação dos próprios dados e estatísticas oficiais nos revelam que a austeridade não vale para todos.
Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, as despesas realizadas pelo governo federal com o pagamento de juros somaram R$ 370 bilhões. Ora, frente a um montante como esse, fica completamente desacreditado o discurso governamental de que o país estaria quebrado por conta das necessidades de financiamento da previdência social ou em razão dos gastos com salários dos servidores. Caso a intenção fosse mesmo realizar uma chamada ampla para o esforço fiscal, o setor que mais deveria contribuir é – sem sombra de dúvida – o financeiro e os que dessa prática se beneficiam.
As informações disponibilizadas pela Secretaria do Tesouro Nacional nos demonstram as distorções na alocação dos recursos públicos federais. A série histórica iniciada em 1997 informa que, entre janeiro daquele ano e outubro de 2019, foram destinados nada mais, nada menos que R$ 5,6 trilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Esse valor impressionante representa uma média de R$ 20,3 bilhões ao longo de cada um dos 274 meses da longa série. Caso fosse anualizado, o dispêndio médio do período seria equivalente a R$ 244 bi a cada 12 meses.
Caso a intenção seja verificar a sinceridade do argumento da austeridade a partir do momento em que ela se implantou com maior vigor, os números traem ainda mais o discurso do financismo. Entre janeiro de 2015 e outubro do ano passado, o total de despesas com juros atingiu R$ 1,8 tri. Esse dado representa um gasto mensal equivalente a R$ 31 bi, ou seja, um gasto anual de R$ 372 bi.
Assim, percebe-se que os gastos financeiros foram mais do que privilegiados ao longo do período. Eles representaram, desde 2015, a maior rubrica individual do gasto do governo federal. Seus valores de R$ 1,8 tri foram superiores aos gastos com pessoal (R$ 1,5 tri) e à cobertura das diferenças entre receitas e despesas na contas do Regime Geral da Previdência Social – RGPS (R$ 0,8 tri) realizados no mesmo período.
Mas os argumentos falaciosos do governo são ecoados sem a menor cerimônia pelos grandes meios de comunicação e pelos chamados “formadores de opinião”. Tanto que a própria “oposição” de direita até realiza alguma crítica ao que considera “exageros” de Bolsonaro, mas revela-se uníssona na defesa da pauta econômica daquele que iniciou sua carreira profissional como assessor de Pinochet.
A campanha em prol das reformas destruidoras do Estado e de suas políticas inclusivas tenta se reforçar na mentira da ausência de recursos orçamentários. O governo, coitadinho, estaria quebrado. Ora, a mais recente demonstração das estatísticas do Banco Central revela exatamente o oposto. Na condição de operador do Tesouro Nacional junto ao mercado financeiro, os demonstrativos da nossa autoridade monetária nos revelam que a chamada “Conta Única do Tesouro Nacional” apresenta um saldo credor e disponível de R$ 1,2 trilhão.
Ora, frente a tal descalabro, a única pergunta que cabe é a seguinte: austeridade para quem, cara pálida?
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.