O ajuste fiscal imposto por Levy et caterva traduz com precisão o projeto derrotado nas urnas. A condução da política econômica segue a tese de que investimento privado e nível de emprego dependeria apenas da confiança do mercado.
Gustavo Noronha
Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 19/06/2015
Quarta-feira, 6 de dezembro de 1995, noite chuvosa no Rio de Janeiro, mais de 100 mil pagantes e cerca de 130 mil presentes para ver a vitória do Flamengo sobre o Independiente na final da Supercopa dos campeões da Libertadores no Maracanã. A vitória foi do escrete rubro-negro, mas quem se sagrou campeão foi o time argentino.
A situação acima lembra em muito o cenário político brasileiro. Assim como o time do Flamengo foi impulsionado à vitória por sua torcida, a presidente Dilma alcançou a vitória no segundo turno das eleições presidenciais graças a uma militância revigorada, inclusive com apoio de setores que fazem oposição à esquerda ao seu governo. Tal qual o torcedor do Flamengo naquela noite, a sensação do eleitor dilmista é a do famoso gosto de guarda-chuva na boca, ganhou, mas não levou. Ainda que orgulhoso da vitória e de sua contribuição para a mesma, o torcedor/militante viu/vê o título ser comemorado do outro lado.
O ajuste fiscal imposto por Levy et caterva traduz com precisão o projeto derrotado nas urnas. A condução da política econômica segue conduzida pelo que Kalecki denominou de proeminentes e autointitulados “especialistas econômicos” estreitamente ligados à banca e à indústria. Kalecki nos alertava que assim ficávamos submetidos à tese de que num sistema capitalista o nível de emprego dependeria apenas da confiança do mercado. Caso esta confiança fosse comprometida, o investimento privado reduzir-se-ia e, consequentemente, haveria uma queda na produção e aumento do desemprego.
Deste modo, toda e qualquer ação que pudesse contrariar os interesses do mercado afetaria a tal confiança, assim os governos acabam por se submeter a estes interesses. Se por outro lado os governantes compreendessem que o que mantém o emprego são os gastos públicos, esta chantagem desapareceria.
Um ajuste fiscal quando o crescimento econômico começa a patinar e os indicadores de emprego pioram simplesmente não faz sentido. O único argumento plausível para eventual aperto nas contas públicas seria o eventual risco inflacionário de um aumento de gastos. Para tanto, Kalecki também nos lembra que a demanda governamental funciona como a demanda privada. Ou seja, se houver oferta suficiente de trabalho, plantas e matérias-primas estrangeiras, todo aumento da demanda será atendido por um aumento na produção. Apenas quando não houver mais capacidade ociosa os preços subirão de modo a equilibrar a demanda e a oferta de bens e serviços.
Em outras palavras, a ação do governo com o objetivo de alcançar o pleno emprego deveria parar apenas um pouco antes da demanda efetiva ultrapassar a marca de pleno emprego. Desta forma, não há necessidade de ter medo da inflação, ainda mais quando o quadro é de estagnação econômica.
Em realidade, se há risco inflacionário no cenário atual, este certamente não decorre de um suposto excesso de demanda. Além de problemas específicos de oferta em determinados mercados, como o de alimentos onde a demanda é relativamente inelástica, não custa lembrar que a inflação também pode ser uma estratégia sutil e eficiente de reação a uma maior participação do trabalho na distribuição funcional da renda.
Em outras palavras, uma forma de recompor imediatamente a taxa de mais valia e forçar o governo a adotar medidas que caminhem em direção contrária ao pleno emprego. O ganho para os capitalistas ocorre no curto prazo com a recomposição das margens de lucro e no médio prazo com a adesão do governo à agenda da austeridade.
A situação fica ainda mais surreal quando olhamos que, combinado ao pacote de contração fiscal, temos uma política monetária que sabota estes mesmos objetivos fiscais. Se a conta do ajuste parece cair na conta do trabalhador, com restrições a pensões e ao seguro-desemprego, a atual política econômica só faz sentido se temos um caso claro de inflação decorrente do conflito distributivo capital trabalho.
Diante da melhora na distribuição funcional da renda no último período, os capitalistas tentam recompor sua margem de lucro com aumento nos preços. De maneira a acomodar os interesses do capital, o governo interfere na redistribuição do excedente por ele apropriado e retira dos trabalhadores via ajuste fiscal e devolve ao capital através do aumento nos juros.
Ademais, se o medo da inflação é tão grande a ponto de promover uma política recessiva e concentradora de renda, a preocupação deveria atingir também outras causas do processo inflacionário. Já falamos aqui do viés anti-inflacionário da política de reforma agrária , portanto, numa situação em que os alimentos estão entre os principais vilões da inflação, não faz sentido um corte de metade do orçamento para as políticas de reforma e desenvolvimento agrário, dado que a única explicação racional para o ajuste fiscal seria a inflação.
O que queremos dizer, na verdade, é que as chantagens da inflação e da confiança são os argumentos de uma fictícia estabilidade econômica que busca ampliação de excedentes fiscais para remuneração do capital em detrimento do atendimento das necessidades da população. Buscam, em realidade, uma distribuição de renda às avessas ou, em outras palavras, uma apropriação da mais valia coletiva.
Fazem com que as classes médias questionem o Bolsa Família e qualquer outro gasto público, mas mantêm intacto o Bolsa Banqueiro. O pouco gasto fiscal acaba por se restringir a programas sociais compensatórios de estímulo limitado à demanda associado à desestruturação de toda e qualquer política social integrada.
Gustavo Noronha é economista do Incra.