Traz-se à discussão a grande polêmica em torno da uberização, ou seja, o parceiro pode ou não ser considerado um empregado e ter garantido seus direitos trabalhistas?
Ricardo Calcini e Felipe Augusto Oliveira Lepper
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 01/04/2021
Há algum tempo o Brasil vem sofrendo com crises econômicas, as quais, por certo, atingem desde os microempresários até as grandes empresas.
Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa média anual de desemprego em 2020 foi de 13,5%. A porcentagem representa cerca de 13,4 milhões de pessoas na fila de espera por uma vaga de emprego no país.
Para acentuar tal cenário, desde o ano passado o país vem sofrendo os reflexos da pandemia causada pela Covid-19, o que piorou as condições no mercado de trabalho, uma vez que as autoridades públicas impuseram medidas alternativas de enfrentamento à pandemia, sobretudo com o aumento do isolamento social para mitigar a propagação do vírus.
Decorrência disto, um maior número de pessoas começou a se reinventar e a procurar formas autônomas de trabalho para a subsistência de renda e de suas respectivas famílias. E nesse contexto de procura de maior renda (extra) é que se incrementou o conhecido fenômeno da uberização do trabalho.
Aliás, hoje já se pode falar em “Economia 4.0 ou 5.0”, que, impactada pela própria pandemia da Covid-19, se consolida com o surgimento de novas tecnologias disruptivas, afetam diretamente o Direito do Trabalho com a criação de novas formas de trabalho.
Fato é que vivemos uma revolução dos direitos trabalhistas, os quais, anteriormente, eram pautados no “fordismo”, na economia do ter/possuir. Doravante, com as relações uberizadas, temos uma nova forma de trabalho, oriunda de dispositivos tecnológicos, que ficou conhecida como economia de compartilhamento (sharing economy).
Assim, a uberização se trata de um fenômeno das relações de trabalho em que há uma exploração da mão de obra por parte das grandes empresas que concentram o mercado mundial de aplicativos, a exemplo da própria Uber e de Cabify, Rappi, Ifood etc.
É nesse sentido que a uberização, inicialmente propagada como uma forma de incentivar a renda extra e o compartilhamento de tecnologia, se transformou numa forma desvirtuada de trabalho, precarizando, assim, as relações de trabalho.
Ora, no âmbito trabalhista, é cediço que as principais plataformas digitais produzem reflexos nas relações laborais, sejam eles negativos ou positivos, haja vista que a principal característica da plataforma digital (Uber, Ifood etc.) é a autonomia do parceiro cadastrado ou prestador de serviço, sem que houvesse a existência de qualquer responsabilidade ou obrigação trabalhistas por parte da empresa em detrimento de seus parceiros.
Dessa forma, o que inicialmente é “vendido” de forma atraente como um modelo de trabalho perfeito, que traz autonomia ao indivíduo, podendo este se tornar um empreendedor do seu próprio negócio autônomo, com flexibilidade de horários e retorno financeiro imediato, na verdade é uma ilusão das grandes empresas para o rápido crescimento econômico sem o devido respaldo dos direitos trabalhistas. Trata-se, pois, da precarização dos direitos trabalhistas.
Nesse diapasão, estar-se-á diante de perdas dos direitos trabalhistas clássicos, como o recebimento de horas extras, adicional noturno e intervalos (intrajornada e interjornada), tendo em vista que a parte dos motoristas trabalha em horário noturno, por exemplo.
Nesse contexto, traz-se à discussão a grande polêmica em torno da uberização, ou seja, o parceiro pode ou não ser considerado um empregado e ter garantido seus direitos trabalhistas?
De início, deve-se fazer uma abordagem quanto à relação de trabalho existente. Ora, se está falando, juridicamente, de uma intermediação da mão de obra, por parte da empresa de aplicativo, envolvendo o motorista e o cliente, o que, por si só, traz uma relação jurídica triangular (empresa, parceiro, cliente).
Decerto que tal relação jurídica tem os seus aspectos positivos, a saber: liberdade para escolha de horários, flexibilidade, aumento de renda e dinamização na economia. Por outro lado, têm-se pontos negativos, aqui exemplificados pela ausência de salário fixo, perdas de garantias trabalhistas e, o mais importante, falta de legislação específica para essa categoria.
Voltando-se, então, à pergunta acima referida, é sabido que existem hoje duas correntes na doutrina que tratam desse assunto, senão vejamos.
A primeira corrente trata da relação de trabalho em sentido amplo, a qual comportando várias espécies. Nesse cenário, a relação de trabalho é qualquer vínculo jurídico, por meio do qual uma pessoa física ou natural assume compromisso de prestar serviços em favor de outrem. Portanto, se é uma relação de trabalho, deve-se aplicar o artigo 114 da CF/88, incisos I e IX, fruto da EC 45/2004. Assim, a relação de trabalho do trabalhador parceiro, em eventual ação trabalhista, deve ser julgada e processada perante a Justiça do Trabalho.
A segunda corrente diz a uberização é uma relação jurídica de natureza civil ou consumerista, não havendo que se falar em direitos trabalhistas ou relação de emprego entre o parceiro e a empresa de aplicativo.
Ademais, outro ponto controvertido é se há subordinação do parceiro em relação a empresa de aplicativo. Ora, hodiernamente já se fala em subordinação por algoritmo, já que o aplicativo funciona com o gerenciamento algorítmico que consegue processar variedades de informações e controlar, inclusive, a forma de trabalho do parceiro. Nessa dinâmica, ter-se-á, em tese, a figura do trabalhador, porém sem o vínculo empregatício.
Diante de todo o cenário envolvendo o fenômeno da Uberização, de um lado estão as empresas alegando que os “parceiros” podem trabalhar quando e quanto quiserem; de outro, está um indivíduo reduzido à força humana de trabalho sem seus direitos trabalhistas garantidos.
A par de todo o exposto, a Justiça Trabalhista brasileira vem enfrentando diversas reclamações discutindo a existência do vínculo trabalhista ou não, ao passo que a Uber, por exemplo, tem assim se posicionado [1] sobre tais processos no Brasil, vejamos:
“Nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça do Trabalho vêm construindo sólida jurisprudência confirmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, apontando a inexistência de onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação, requisitos que configurariam o vínculo empregatício.
Em todo o país, já são mais de 800 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho neste sentido, sendo que não há nenhuma decisão consolidada que determine o registro de motorista parceiro como funcionário da Uber.
Os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber: eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo.
Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento.
Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima.
No último dia 2/3, pela terceira vez, o TST confirmou que não existe vínculo de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros. De forma unânime, a 4ª Turma do Tribunal negou provimento ao recurso de um motorista independente que tentava reverter decisão do TRT-MG que já não havia reconhecido o pedido de vínculo empregatício.
O relator do processo, ministro Ives Gandra, considerou que os motoristas parceiros que utilizam a plataforma da Uber para gerar renda têm autonomia e flexibilidade, requisitos incompatíveis com o vínculo, já que existe autonomia ampla do motorista para escolher dia, horário e forma de trabalhar, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Uber.
Entendimento semelhante já foi adotado em outros dois julgamentos do TST em 2020, em fevereiro e em setembro, e também pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de 2019″ (grifos do autor).
É cediço que a Uber enfrenta processos semelhantes em outros países, como, por exemplo, no Reino Unido. Aliás, no último dia 16 a Uber anunciou que irá conceder direitos laborais para todos os mais de 70 mil motoristas cadastrados no Reino Unido, que, doravante, receberão salário fixo mínimo e férias remuneradas.
Essa postura da empresa se deu após o ajuizamento de uma ação em 2016, sendo que o Tribunal do Trabalho de Londres decidiu que a companhia exercia controle significativo sobre os motoristas, os quais não deviam ser considerados autônomos. Em 2018, a empresa apelou e, em julgamento de apelação ocorrido em fevereiro deste ano, a Suprema Corte manteve a decisão e determinou que o grupo de motoristas tivesse direito a benefícios trabalhistas, como o salário mínimo.
Diante disso, ante a flexibilidade e a ausência de fiscalização, bem como ausência de uma legislação e de diretrizes específicas sobre a temática, tudo aliado à ideia de um modelo autônomo de trabalho, cresceu o espaço para a chamada uberização, até porque hoje se tem notícia da possibilidade de alugar um carro para um terceiro e este prestar o serviço para o aplicativo, pagando os aluguéis do carro ao proprietário do veículo.
Diante desse quadro e das novas modalidades de trabalho referidas, além da revolução atual vivida pelo avanço da tecnologia e do direito disruptivo, e sem o intuito de colocar fim a presente discussão, impõe-se a necessidade de regulamentação dos novos modelos trazidos sob a justificativa de flexibilização das relações de emprego.
Em arremate, não se está a discutir aqui a simples natureza da relação entre “parceiros” e plataforma, mas, sim, a necessidade de se impor efetivas responsabilidades, para que sejam assegurados os direitos à saúde, à segurança e à vida digna do trabalhador, bem como seja elaborada uma legislação específica para essa categoria particular de trabalhadores.
Notas
[1] Fonte: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/03/16/uber-vai-conceder-beneficios-de-funcionarios-a-70-mil-motoristas-no-reino-unido.ghtml.Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC-SP; professor de Direito do Trabalho da FMU; especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais; organizador do e-book digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhista” (Editora JH Mizuno); coordenador do e-book “Nova Reforma Trabalhista” (Editora ESA OAB/SP, 2020); organizador das obras coletivas “Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista” (Editora LTr, 2019) e “Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada” (Editora JH Mizuno, 2019); coordenador do livro digital “Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões” (Editora Eduepb, 2018); palestrante e instrutor de eventos corporativos “in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.
Felipe Augusto Oliveira Lepper é advogado trabalhista, pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus, membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB-SP, Subseção de Santo Amaro, e sócio do escritório Lepper e Cotrin Advogados.