As mulheres nas plataformas digitais: a farsa do trabalho flexível

Não há condições de arguir sobre os rumos do movimento feminista sem levar em conta as múltiplas facetas criadas pela economia de plataforma, nova etapa de um modo de produção em crise.

Julice Salvagni

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 23/08/2021

Alienação, exploração e dominação são as premissas basilares dos modos de produção capitalista. Neste sentido, a precarização da atividade produtiva operacionalizada pelas plataformas digitais não apresenta, em si, uma novidade. O que se altera agora, ao aliar a dinâmica da uberização com a das plataformas digitais, é a execução de formatos absolutamente sutis e despersonificados do controle em dimensões exponenciais. Às mulheres, em face a isso, é atribuída a nada nobre “oportunidade” de renunciar a um emprego protegido (ou ser forçosamente “renunciada dele”) em nome de certa flexibilidade. Assim, a força de trabalho, sobretudo das mulheres, é historicamente excluída de um mercado que constitui marcas estruturais de hierarquização social.

Silvia Federici (2019), ao descrever os processos históricos de acumulação primitiva, comprova que a constituição do capitalismo moderno só foi possível dada a não remuneração do trabalho doméstico, consagrado especialmente após o sangrento episódio da caça às bruxas dos séculos XVI e XVII. Isto é, a consolidação de uma premissa de subordinação aos homens é condição sine qua non a um modelo de exploração capitalista que segregou a sociedade em classes, naturalizando a miséria humana sob a farsa de um discurso liberal.

Já na sociedade industrial das décadas de 1960 e 1970, acompanhando o desenvolvimento da época, um expressivo movimento feminista apoiado pela Onu impulsionou a formalização parcial das mulheres no mercado de trabalho. Tal movimento permitiu à parte delas – especialmente às brancas e de classe média – conquistar a emancipação econômica e uma consequente saída do confinamento doméstico. Contudo, obras como a Woman’s Role in Economic Development, da dinamarquesa Ester Boserup e A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, da socióloga brasileira Heleieth Saffioti, já demarcavam a ascensão de uma relação deletéria, caracterizada pela intensificação das desigualdades de gênero, discriminação e opressão das mulheres, dando ao capital corporativo o controle completo sobre o trabalho.

Nancy Fraser (2011) também tece críticas aos movimentos feministas que, paradoxalmente, especialmente durante o século XX, acabaram alinhando-se às mudanças sociais provocadas pelo neoliberalismo, que se apropriou dessa agenda para incorporar as mulheres aos modos de produção mercantis. Com isso, o novo ideal de família cooptado pelo neoliberalismo é marcado por níveis salariais decrescidos, diminuição da segurança no emprego, padrões de vida em declínio, um aumento abrupto no número de horas trabalhadas, exacerbação da dupla jornada, entre outros.

Por sua vez, a questão do trabalho doméstico, reprodutivo ou relativo ao cuidado seguiu silenciado, enquanto as mulheres passam a acumular ainda mais tarefas, vendo submergir paulatinamente qualquer possibilidade de tempo livre. Segundo relatório da Oxfam de 2020, as mulheres são responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado. Para o mesmo documento, o valor monetário global do trabalho de cuidado não remunerado é de pelo menos US$10,8 trilhões por ano, um montante três vezes mais alto que o estimado para o setor de tecnologia do mundo. Quer dizer, há muito valor no trabalho do cuidado que não tem reconhecimento nem monetário nem social, na maior parte das vezes.

Mesmo ganhando menos que os homens (em média 20,5% a menos no Brasil) no que diz respeito ao trabalho assalariado, tal contexto ainda abre precedente ao alistamento delas às atividades de caráter informal. Com o fenômeno da uberização, caracterizado pelo aumento da precarização e da flexibilização do trabalho, os problemas relacionados diretamente ao neoliberalismo tornam-se ainda mais graves. A saber, tal modalidade de trabalho flexível chegou afamada como uma alternativa ao emprego tradicional por permitir uma aparente conciliação com as atividades familiares, especialmente às mulheres. Seja em busca da flexibilidade de horários ou pela dificuldade de ascensão na carreira dentro de empresas, muitas renderam-se à pejotização via empresas individuais ou aos trabalhos autônomos. Assim, o invento gerencialista do “empreendedor de si mesmo” opera como uma peça ilusionista na qual a liberdade aparece de relapso ocupando um espaço em que nunca esteve.

Em suma, a dinâmica de gênero no modelo econômico emergente de produção não indica que a tecnologia possa contribuir para a redução da desigualdade, ainda que a flexibilização seja posta como algo conveniente. Os efeitos da informalidade, analisados sob um recorte de gênero, assumem um caráter ainda mais predatório: nenhuma mulher do mundo deveria ser privada do direito de licença maternidade. Isso não só considerando o próprio tempo da puérpera, mas também as demandas de cuidado dos recém-nascidos que são específicas da mãe, como a amamentação, por exemplo. O Brasil, apesar de haver alguma reserva de garantias nos vínculos de trabalho, expõe ao completo desalento mulheres cuja renda advém da informalidade, o que inclui as atividades exercidas via plataformas digitais.

Considerando a produção teórica brasileira, Ludmila Abílio (2015) já defende a uberização enquanto um fenômeno que antecede as mídias digitais, antes protagonizado pelas vendedoras de Avon, por exemplo. São mulheres que, tendo o tempo tomado pelo cuidado com as tarefas domésticas e dos filhos, veem na venda dos produtos por revistinhas uma única possibilidade de renda. Sendo essa prática ainda muito comum no Brasil, é possível inferir que, apesar de as plataformas terem as suas especificidades, há mais uma mudança em termos do alcance do que propriamente das condições laborais das mulheres, o que contrapõe os triviais discursos de empreendedorismo ou inovação. Alijadas dos direitos trabalhistas e da consagração profissional de uma atividade pública, elas parecem ter inaugurado uma lógica que hoje promete se ampliar nas previsões em relação ao futuro do trabalho.

Estudos sobre gênero e plataformas digitais tem se ampliado ao redor do mundo, como é o caso das pesquisas da antropóloga Gabriella Lukács (2010). Em que pese considerar uma aproximação com o conceito de trabalho emocional de Arlie Russell Hochschild (2012), ela infere que a economia digital adotou um modo particular de acumulação – a fábrica social – que acentua a confusão das fronteiras entre trabalho produtivo e reprodutivo, tornando a ideia do trabalho não remunerado mais aceitável. Validando essa premissa, as diferentes maneiras das mulheres se inserirem no mercado das plataformas costuma ser majoritariamente via trabalho doméstico, nas fazendas de clique e outras plataformas para trabalhar a partir de casa.

Tendo em vista os níveis abissais de desemprego no país – 14,8 milhões de desempregados em junho de 2021 – associado à ascensão das plataformas digitais como alternativa imediata de renda, o crescimento da uberização (ABÍLIO, 2020) representa, ao mesmo tempo, uma opção e um risco para as mulheres. Isso ocorre por esse tipo de trabalho estar frequentemente ligado a jornadas diárias exaustivas, ao controle exacerbado por parte das empresas e à ausência de qualquer tipo de garantia ou direito trabalhistas. Para as mulheres, a impossibilidade de conciliar os trabalhos públicos e privados se mantém desafiadora, isso porque a chamada economia colaborativa impõe demandas extenuantes aos que queiram alcançar uma remuneração adequada. A redução das jornadas provocada pela flexibilização, seja voluntária ou dada a demanda, implica, necessariamente, em salários mais baixos. Esse formato, portanto, está longe de oferecer qualquer perspectiva que não seja meramente ilusória de autonomia e equidade no trabalho.

Com isso, um debate em prol das mulheres que se posicione alheio à concepção da luta de classes não passa de um leviano engano. Não há condições de arguir sobre os rumos do movimento feminista sem levar em conta as múltiplas facetas criadas pela economia de plataforma, nova etapa de um modo de produção em crise. As bases marxistas que desvelam a exploração do trabalho se mantêm inalteradas em uma análise das plataformas digitais, com o adendo de os mecanismos de controle agora estarem camuflados em territórios virtuais, sob novo arranjo. Tal conjuntura sugere, portanto, a urgente demanda por ações coletivas capazes de garantir condições dignas aos que vivem do trabalho. Ao considerar que o que o atual momento da plataformização não se define enquanto um fato irremediável, cabe debruçar-se em torno de práticas reflexivas de transformação social.

Indicando algumas diretrizes para intervenções em âmbito global, Fairwork é um projeto de pesquisa que já está em mais de 20 países e sinaliza pistas para a regulamentação do trabalho nas plataformas digitais. A busca pelo trabalho decente perpassa cinco princípios: pagamento, condições, contratos, gestão e representação justa. Dentre o que se entende por “gestão”, há no projeto o desdobramento de uma política que garante que a plataforma não discriminará pessoas com base em raça, gênero, sexo, orientação sexual, entre outros. No Brasil, em razão das recentes reformas trabalhistas e da ausência de regulamentação do trabalho nas plataformas digitais, o acesso ao trabalho decente é algo ainda mais restrito se em comparado a outros países, como Alemanha e África do Sul, por exemplo. Esse dado volta a indicar que regulamentação do trabalho é um fator mais determinante que a própria tecnologia. Ou seja, esse não é um fenômeno inevitável que decorre das invenções contemporâneas, pelo ao contrário, se trata de um projeto intencional de degradação do trabalho em nome do lucro exponencial.

Cabe salientar que, apesar de se ter um conjunto de diretrizes, a operacionalização do trabalho decente nas plataformas digitais pode não encontrar uma normativa exatamente homogênea. Cada grupo, em cada contexto socioeconômico e cultural pode chegar a um consenso de proposições que visem romper com as tradicionais hierarquias para a promoção de organizações de trabalho factualmente inclusivas. Levando em conta os aspectos da autogestão, tal dinamismo expõe a complexidade de uma prática linear, justa e respeitosa. Todavia, há iniciativas proeminentes direcionadas a impulsionar o cooperativismo de plataforma a partir da economia feminista que merecem destaque. O MatchImpulsa, por exemplo, é um centro transversalmente feminista de programas para a plataforma digital da Economia Social e Solidária (ESS) e Economia Colaborativa. Outro projeto relevante é o DisCOs, que propaga os princípios do cooperativismo na economia feminista para Organizações Autônomas Descentralizadas (ou DAOs). Assim, as formas colaborativas de organização também aparecem como uma perspectiva de resistir aos efeitos da atual restruturação produtiva. Ainda que se deva ter cautela com análises muito otimistas, empreendimentos efetivamente democráticos, autogeridos e feministas, já são uma realidade. 

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2015.

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos avançados, v.34, p.111-126, 2020.

BOSERUP, Ester. Woman’s Role in Economic Development. London: Routledge, 2007.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2019.

FRASER, Nancy. Mercantilização, proteção social e emancipação: as ambivalências do feminismo na crise do capitalismoRevista Direito GV, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 617-634, jul-dez. 2011.

HOCHSCHILD, Arlie Russell. The managed heart: commercialization of human feeling. Berkeley: University of California Press, 2012.

LUKACS, Gabriella. Iron Chef around the world: Japanese food television, soft power, and cultural globalizationInternational Journal of Cultural Studies, v.13, n. 4, p.409-426, 2010.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A Mulher na sociedade de classesmito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.

Julice Salvagni é doutora em Sociologia e professora do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS. Escreve hoje no Blog a convite de Rafael Grohmann, organizador de Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas (Boitempo, 2021) e colunista mensal do Blog da Boitempo.

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