As deliberações sobre a greve e o princípio democrático

Rogério Viola Coelho

Depois de muito resistida pelo direito, a greve foi por ele admitida e regulada. Mas a recepção pelo direito e a elevação ao patamar de direito fundamental não esgotaram as formas abertas ou veladas de resistência ao seu exercício.

Projetando as primeiras greves, as assembleias clandestinas – o gesto inaugural da atividade sindical – fixaram a competência para as deliberações sobre a matéria que se reflete no desenho institucional do sindicato. Nos estatutos dos sindicatos, a assembleia geral, que está na sua gênese, é o órgão máximo e locus da deliberação coletiva.

O cerceamento do exercício do direito de greve é recorrente nos regimes autoritários, ou por ação de governos com a ideologia neoliberal, que postula o controle e a fragilização dos sujeitos sociais em nome do fortalecimento da autonomia da vontade individual, exaltada como expressão única da liberdade. Cumprem este objetivo impondo quóruns exorbitantes nas assembleias, a deliberação através de votações, ou, ainda, deslocando as deliberações para as maiorias ausentes das assembleias, através de plebiscitos ou consultas, habitualmente formuladas para alcançar o resultado desejado. Esta última forma surge também no interior de sindicatos, com as direções buscando deslocar a deliberação para as maiorias ausentes, invocando a ampliação do princípio democrático. É oportuno trazer casos exemplares, examinados criticamente.

Na Inglaterra da era Thatcher, as imunidades dos sindicatos foram condicionadas a votações prévias em caso de greve, com questões obrigatórias redigidas pelo governo, ficando impedido o sindicato de acrescer qualquer anotação. Depois, veio a reclamação judicial contra o sindicato, na ausência destas votações. Segundo Kahn Freund, essa legislação foi concebida para privilegiar a participação de uma maioria silenciosa de tendência moderada ou conservadora – existente em quase todos os sindicatos – que, participando das decisões, serviria de controle das greves.

Após a Constituição de 1978, o Tribunal Constitucional espanhol declarou inconstitucionais as normas do Decreto-Lei 17/1977 que instituíam referendum ou quórum especial e decisão majoritária da categoria através de plebiscitos, justificadas para dar um caráter genuinamente democrático às decisões.

O Tribunal decidiu que o referendum é uma maneira de afogar o nascimento da greve, dizendo que ele somente teria sentido se a vontade da maioria se impusesse necessariamente à vontade da minoria. Mas isto não ocorria porque a legislação garantia, como hoje no Brasil, o direito ao trabalho aos dissidentes, considerando que o direito de greve é individual (ainda que de exercício coletivo). E ao final concluiu que a exigência privilegiava a maioria contrária ou abstencionista.

Recentemente, surge no Brasil, no âmbito do movimento docente, um sindicalismo que se anuncia inovador – o PROIFES –, com a prática de consultas eletrônicas nas deliberações sobre a greve, precedendo ou substituindo as assembleias gerais, com efeito plebiscitário. Promovidas pelas direções dos sindicatos, as consultas são formuladas sem participação de correntes divergentes, e sem abertura de debates.

No discurso dos dirigentes, com a apuração das vontades individuais à distância, as decisões abrangem um universo maior, sendo por isto mais democráticas e dotadas de maior legitimidade. Ademais, alegam que há uma deterioração das assembleias gerais e que o seu método inovador é uma “superação do assembleísmo”. Esse deslocamento das deliberações sobre a greve, operando a “substituição do ‘assembleísmo tradicional’ por um instrumento novo e democrático”, constituiria um grande corte ideológico em relação às outras entidades sindicais.

Como esses métodos invocam o princípio democrático, é conveniente examinar as determinações que este princípio assume na instituição sindical e na lei de greve. O sindicato é reconhecido como uma comunidade de pessoas reunidas sob o impulso da solidariedade. Os seus integrantes não transferem para a pessoa jurídica, que surge do registro, o exercício (por seus órgãos diretivos) das funções da instituição, mas exercem eles mesmos esta liberdade positiva, participando diretamente da formação da vontade coletiva nas assembleias e da atividade sindical a cada passo.

A supremacia da assembleia no ordenamento geral do País e as atribuições a ela reservadas na condução da atividade sindicalatividade que constitui o fim colimado pela consagração da liberdade de associação sindical aos trabalhadores – indicam que a instituição sindical segue o paradigma da democracia direta. O sindicato reproduz no interior do Estado representativo moderno a democracia direta dos antigos.

A democracia direta é associada à assembleia dos cidadãos deliberando sem intermediários. Atenas fundou a assembleia geral dos cidadãos e, nela, todos se reuniam para debater, decidir e fazer efetiva a lei. Além da igualdade perante a lei (isonomia) e da igualdade de acesso aos cargos públicos (isotimia), era assegurada a todos a dissertação livre e sem limitações, garantida por isegoria – o direito de todos de falar por igual na assembleia soberana.

O plebiscito ou as consultas são utilizados para afastar o debate público das ideias divergentes sobre a greve e, pela sua formulação nos casos examinados, visam à obtenção do resultado desejado. A lei de greve, ao conferir competência privativa à assembleia geral para as deliberações sobre a greve, está assumindo a irrelevância da manifestação de vontade majoritária da categoria, pressupondo a inexistência de uma vontade coletiva prévia, identificada com a vontade da maioria, apurável através da captação das vontades individuais dos trabalhadores isolados.

A assembleia geral não recolhe uma vontade geral preexistente; não lhe cabe a apuração do somatório de vontades individuais. Ela cumpre uma função constitutiva da vontade coletiva, que se constrói no debate de opiniões divergentes, ou de correntes ideológicas que nela devem se expressar livremente, em busca de uma síntese transcendente das individualidades. O princípio democrático é concretizado – em nosso ordenamento e na generalidade dos ordenamentos dos países democráticos – no processo deliberativo destinado à formação da vontade coletiva no âmbito da assembleia geral. Nele, não encontram apoio, então, os métodos de deliberação sobre a greve anunciados como inovadores.

Rogério Viola Coelho é advogado trabalhista, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, especializado em temas relativos aos servidores públicos. Ao longo de sua carreira, prestou assessoria jurídica a várias entidades sindicais, tanto regionais – como CPERS e ASSUFRGS – quanto nacionais – FASUBRA, ANDES. Paralelamente, desenvolveu atividades de palestrante, além de publicar vários artigos e o livro A relação de trabalho com o Estado. Dentre seus projetos atuais, destacam-se pesquisas sobre a reforma do Estado, assim como um novo livro sobre o sindicato.

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