Lei que achata direitos laborais acaba de ser aprovada, mesmo enfrentando 70% de rejeição popular e sem maioria no Parlamento. Como isso foi possível?
Antonio Martins
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 21/07/2016
Em 1930, John Maynard Keynes, o economista que mais intensamente lutou por um capitalismo reformado previu que seus netos trabalhariam 15 horas por semana. O sistema, imaginou ele, promoveria incessantes avanços tecnológicos e aumento da produtividade do trabalho; também seria suficientemente sábio e generoso para distribuir estes ganhos com o conjunto da sociedade.
Há poucas horas, a França, somou-se ao conjuntos dos países do capitalismo “desenvolvido” e aprovou a chamada Lei El Khomri. Na contramão do que previa Keynes, ela permite estender a jornada a 46 horas semanais, além de eliminar inúmeros direitos trabalhistas relacionados à irredutibilidade dos salários, descanso entre as jornadas, indenizações em caso de demissão, gozo das férias e proteção dos que sofrem acidentes laborais.
O retrocesso atinge, além dos direitos sociais, a própria democracia. Desde que apresentada, há cinco meses, a lei foi alvo constante de protestos. Os sindicatos promoveram seguidas jornadas de luta contra ela — algumas vezes reprimidas pela polícia com ferocidade. A juventude ergueu-se no movimento Noites Despertas (“Nuits Debout”). Além disso, todas as sondagens de opinião feitas no período revelaram: ao menos sete, em cada dez franceses, eram contrários às mudanças propostas.
Além de praticar a democracia sem povo, a França capitalista estabelece que, em certas situações, as leis podem ser aprovadas também sem maioria parlamentar. O estranho artifício está previsto no Artigo 49, alínea 3, da Constituição.
O Poder Executivo tem a faculdade de invocar o chamado “compromisso de responsabilidade” e impor a adoção de um projeto mesmo quando percebe que não contará com os votos da maior parte da Assembleia Nacional. Neste caso, a única forma de derrubar a lei é aprovar, na própria Assembleia, uma moção de censura ao gabinete de ministros, provocando sua queda.
Manuel Valls, o primeiro-ministro, apelou para o Artigo 49.3 ontem à tarde, ao discursar na Assembleia. Foi a terceira vez em que adotou tal expediente. Nas ocasiões anteriores, fracassou, devido ao repúdio da opinião pública. Mas agora, pôde contar com o inesperado auxílio do terror.
Na semana passada, o país foi abalado por atentado cometido por um motorista de caminhão em Nice, que matou 84 pessoas por atropelamento ou a tiros. As ondas de choque que se seguiram monopolizaram as atenções da opinião pública. Também ontem, o Parlamento estendeu até janeiro de 2017 o Estado de Emergência, que restringe os direitos constitucionais — entre eles, o de manifestação. Esta tarde, 24 horas depois, a Lei El Khomri entrou em vigor.
Uma situação particular permitiu tal desfecho. O governo é exercido por um Partido Socialista que aderiu sem pudores ao neoliberalismo. Há dez anos, ainda distante do poder, o atual presidente, François Hollande, declarava, sobre o Artigo 49.3: “é uma brutalidade, uma negação da democracia”. Eleito chefe de Estado em 2012, graças às críticas que fez à hegemonia da Alemanha sobre a União Europeia, o “socialista” passou a praticar exatamente o contrário do que propusera aos eleitores.
Hollande é acossado por uma oposição de direita, expressa tanto por Les Republicains(LR), mais tradicionais, quanto por Marine Le Pen, da Frente Nacional, xenófoba e semi-fascista. Mas a tática habitual do Executivo tem sido ceder a estas direitas, ao invés de enfrentá-las. Na sessão em que o Estado de Emergência foi estendido até janeiro, o jogo ficou claro. Les Republicains e a Frente Nacional apoiaram a restrição aos direitos e liberdades.
Mas, ao discursar, os representantes destes dois partidos afastaram-se do governo, defendendo medidas ainda mais autoritárias. O deputado Laurent Wauquiez, favorável ao Estado de Emergência, pediu que ele incluísse a criação de campos de internamento, onde ficariam concentrados os suspeitos de atividades terroristas. As eleições presidenciais estão marcadas para 2017. Se ocorressem hoje, indicam todas as sondagens, o segundo turno seria disputado por um candidato de direita contra outro, de extrema direita.
Oitenta e seis anos após o sonho nunca realizado de Keynes, é assim que caminha o capitalismo. Será possível detê-lo? Como?