A vigilância implacável e a falta de privacidade

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Cássio da Silva Calvete

Zuboff (2019), em sua obra magistral, busca uma nova denominação para o novo modus operandi do capitalismo e propõe Capitalismo de Vigilância. A autora tem como foco principal destacar a forma de funcionamento dos negócios; a nova fonte de matérias-primas, as informações; e o funcionamento do marketing. No entanto, ela não se furta de expandir sua análise para as relações de trabalho e as alterações no gerenciamento dos trabalhadores. A conclusão de que o capitalismo de vigilância e seu modus operandi é um ataque ao direito à privacidade e às liberdades individuais é válida tanto para o cidadão no seu dia a dia quanto para o trabalhador em seu local de trabalho.

As tecnologias atuais permitem o controle e o registro do tempo de trabalho com a mais absoluta precisão. As empresas podem comprar softwares adaptados para suas necessidades ou comprar os serviços de empresas especializadas para essa vigilância constante, como InterGuard, Crossover e FAMA (ADAMS-PRASSL, 2019, DE STEFANO, 2019). Existem softwares que registram todos os movimentos dos trabalhadores, quando ele foi contratado, ou cadastrado; quais os dias e horas que trabalhou; quais tarefas foram executadas; quanto tempo levou em cada tarefa; o valor recebido; o tempo de pausa entre tarefas (ALOISI e GRAMANO, 2019). Muitas empresas de crowdworking utilizam também a captura de imagens do computador pessoal dos seus trabalhadores “autônomos” para monitorar sua dedicação e produtividade.

Os locais de trabalho geridos por algoritmos, IA e softwares aprimoraram os mecanismos de vigilância e se tornaram espaços completamente vigiados. Para Adams-Prassl (2019) existem três fontes de informações dos dados dos trabalhadores que são utilizadas pelos empregadores: informação digital, sensores e o autorrastreamento. As informações digitais são obtidas na captura da interação dos trabalhadores com o computador e da mesma forma em chamadas telefônicas. Os sensores, cada vez mais sofisticados, colocados algumas vezes em crachás, fazem a captura de informações físicas: se o trabalhador está em movimento ou parado, a sua proximidade de outros trabalhadores, se estão falando ou não, e a frequência e a duração que interage com os colegas. O autorrastreamento é a utilização dos dados colocados pelos trabalhadores nas mídias sociais, que é cada vez mais utilizado para contratar, demitir e analisar o desempenho na segunda-feira.

Segundo Abílio (2020), em seu estudo sobre as plataformas digitais, a gestão algorítmica que elas praticam, são uma forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. As plataformas realizam a extração e manipulação de uma dimensão gigantesca de dados que permitem o mapeamento e o controle completo dos tempos de trabalho. Dubal (2023) menciona que o monitoramento e a vigilância do local de trabalho atingiram níveis extremos na atualidade. Sistemas automatizados registram e mensuram movimentos, pausas, os hábitos e também informações biométricas de saúde e nível de estresse do trabalhador.

Para Katsabian (2023) enquanto no passado a gerência monitorava o trabalho, hoje ela monitora o trabalhador. A autora aponta que em muitos casos de trabalhadores manuais como os em Centros de Distribuição, caixas e motoristas, eles são obrigados a usar pulseiras ou programas de rastreio por GPS para terem seus movimentos monitorados constantemente. Essa vigilância constante leva o trabalhador muitas vezes a evitar realizar necessidades básicas como ir ao banheiro, pausa para relaxar ou simplesmente respirar descansadamente, podendo até interferir e “manipular as expressões faciais e a linguagem corporal – como se mover, como falar e até com que frequência sorrir” (KATSABIAN, 2023, P.9).

A falta de privacidade do trabalhador, ocasionada pela vigilância constante e mensuração de todos os seus movimentos, afeta a dignidade humana, leva a humilhação, a insegurança e a desumanização (KATSABIAN, 2023; AIZENBERG, HOVEN, 2020; ADAMS-PRASSL et al., 2023). Apesar da relevância dessas consequências por si mesmas, não podemos perder a perspectiva de que elas também são importantes fatores para o aumento da intensidade do trabalho. Para Katsabian (2023) o recolhimento e mensuração das informações dos trabalhadores no local de trabalho permitem que a empresa manipule a rotina de trabalho dos mesmos. De posse dessas informações a gestão busca o aumento da produtividade do trabalhador interferindo na rotina de trabalho, acelerando o ritmo e diminuindo pausas, em consequência tem-se a diminuição da autonomia do trabalhador para decidir como realizar o seu trabalho, em que ritmo e quando pode fazer uma pausa. Segundo a autora essa interferência nas ações rotineiras do trabalhador, tirando-lhe o poder de escolha de movimentos ordinários, o desumaniza e o trata como um robô.

Ao saber-se vigiado constantemente o trabalhador perde a naturalidade dos movimentos, mesmo os mais ordinários. Procura atender as exigências de ritmo impostas, evita pausas, descansos e mesmo ritmos mais lentos. A vigilância constante e a falta de privacidade, leva à desumanização do trabalhador, ao aumento da intensidade do trabalho, sua instrumentalização e manipulação (KATSABIAN, 2023). 

Bibliografia

ABÍLIO, L. Uberização: a era do trabalhador just-in-time. Estudos Avançados, vol. 34 nº 98. São Paulo, Jan/Abr 2020.

AIZENBERG, E. HOVEN, J. Designing for human rights in AI. Big Data & Society, July-December, 2020.

ADAMS-PRASSL, J. What if Your Boss Was an Algorithm? The Rise of Artificial Intelligence at Work (2019). [2019] 41(1) Comparative Labor Law & Policy Journal 123.

ALOISI, A; GRAMANO, E. Artificial Intelligence is Watching You at Work: Digital Surveillance, Employee Monitoring, and Regulatory Issues in the EU Context. [2019] 41(1) Comparative Labor Law & Policy Journal 123.

DE STEFANO, V. “Negotiating the Algorithm”: Automation, Artificial Intelligence, and Labor Protection. [2019] 41(1) Comparative Labor Law & Policy Journal 123. [2019] 41(1) Comparative Labor Law & Policy Journal 123.

DUBAL, V. On algorithmic wage discrimination.  Early Draft Paper, presented at the study group on artificial intelligence at the Bonavero Institute of Human Rights at Magdalen College, University of Oxford, 2023.

KATSABIAN, T. Privacy as the Basis of Workers’ Dignity in the “Information Workplace”. Early Draft, presented at the study group on artificial intelligence at the Bonavero Institute of Human Rights at Magdalen College, University of Oxford, 2023.

ZUBOFF, S. The age of surveillance capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power: London: Profile Books, 2019.

Cássio da Silva Calvete é Professor associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia Social e do Trabalho pela UNICAMP e com pós-doutorado pela Universidade de Oxford.

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