No Brasil, 80% das famílias estão endividadas. Bancos já sugam 20% da renda mensal das massas empobrecidas.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 20/06/2022
Há mais de quatro décadas, a lógica de financeirização da riqueza tem exercido intensa dominância sobre a dinâmica do capitalismo mundial. Ao se introjetar na totalidade do sistema econômico, a esfera da intermediação financeira, até então subordinada ao antigo processo produtivo de geração de riqueza, autonomizou-se, assumindo a condição sistêmica de promover, gerir e realizar a riqueza.
Diversos desdobramentos disso fizeram com que a desigualdade, novamente, assumisse maior relevância, com a primazia da gestão dos ativos financeiros e a transformação do Estado em sancionador da riqueza privada e o seu garantidor em última instância. O receituário neoliberal se mostrou fundamental para que isso pudesse ocorrer, e o resultado passou a ser a maior disparidade de renda e patrimônio entre os indivíduos, classes e frações de classes sociais.
Para um país marcado historicamente pela desigualdade – como o Brasil, o receituário neoliberal terminou por agilizar mais acentuadamente a concentração e centralização da riqueza em cada vez menos indivíduos e clãs da sociedade. A sofisticação tecnológica e a contabilidade criativa, intrínsecas nos mecanismos de financeirização, contribuíram tanto para a diferenciação social como para a subordinação da política aos interesses econômicos dominantes.
Com isso, a pirâmide populacional, segundo a posse de renda e riqueza, se alargou na base e afinou no topo, crescentemente circunscrita ao modo de vida do rico, do mundo do dinheiro, dos serviços e das relações de interesses próprias de restrito trânsito social. A própria concepção de riqueza se ampliou da posse de dinheiro e ativos financeiros para o mercado de luxo, dos eventos de afortunados vinculados às interligações educacionais, culturais, políticas e sociais.
Tudo isso e mais têm sido objeto de descrição e estudos a respeito da realidade de novos e tradicionais ricos submetidos à lógica de financeirização da riqueza no Brasil. O que parece se diferenciar das abordagens até então difundidas são as constatações a respeito de como as massas sociais empobrecidas têm sido capturadas pelo processo de financeirização.
Enquanto subproduto próprio do aprofundamento do subdesenvolvimento, parcela da classe trabalhadora tem sido deslocada da relação salarial tradicional para o sistema crédito/débito da financeirização capitalista. Diante da profusão das políticas neoliberais de mercantilização da vida, quase tudo foi se tornando mercadoria de consumo com acesso exclusivo pela posse do dinheiro, como nos mercados da saúde (planos de saúde privados), educação e cultura privadas, assistência social paga; ademais das necessidades de alimentação, habitação, transporte etc.
Assim, a estratégia de ampliação do poder de compra contempla a recorrente exigência de ganhos em dinheiro (crédito) decorrentes do cardápio com diferentes origens: salário, aluguel, pagamento por atividade eventual, benefícios sociais (transferência condicionada de renda, pensão e aposentadoria), endividamento, microfinanças, entre outras. Nesse contexto de enorme insegurança de renda, o endividamento tem sido crescente, sobretudo entre os pobres.
Em outras palavras, o processo de financeirização entre os pobres, ao contrário do que acontece com os ricos, significa a captura de parte crescente do rendimento (crédito) dos que menos têm na forma de juros sobre a dívida contraída (débito). Para os pobres, a interpenetração financeira, com a bancarização e a ampliação das operações de crédito às famílias e do endividamento, permitiu trazer para o valor presente recursos adicionais ao consumo, tornando o futuro, porém, cada vez mais associado à dependência da própria lógica da financeirização.
Em função disso, as famílias passaram a comprometer parte crescente dos seus orçamentos com o pagamento dos serviços decorrentes do endividamento financeiro. No Brasil, com mais de 4/5 das famílias atualmente endividadas, cuja transferência financeira absorve, em média, mais de 1/5 da renda mensal, constata-se que o processo de financeirização incorporou destrutivamente os pobres.
Não bastasse a inflação e o sistema tributário regressivo, cuja carga se assenta proporcionalmente muito mais nos rendimentos dos mais pobres, emerge a financeirização pró-pobre. Mais recentemente, o governo Bolsonaro adicionou mais um artifício no processo de financeirização, através da aprovação do projeto de lei na Câmara dos Deputados que permite que devedores tenham o imóvel penhorado se tiver sido usado como garantia em empréstimo.
Esse processo perverso revela o quanto se encontra avançada e disseminada a financeirização, pois ao incorporar as massas empobrecidas, permite reproduzir a centralidade sistêmica da dinâmica capitalista no Brasil. Ao invés do passado de expansão produtiva, com o alargamento do mercado interno sustentado pelo projeto de industrialização nacional e estruturação do assalariamento formal, a financeirização tem sido alargada em meio ao empobrecimento social e ocupações precárias e informais, compatíveis com o modelo econômico primário-exportador.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.