Na era digital, com empresas startups e “novos modelos de negócios”, plataformas, aplicativos e seus complexos algoritmos assumem o primeiro plano numa relação que, no fundo, mantém a essência da exploração capitalista de mão de obra.
Tarso de Melo
Fonte: Revista Cult
Data original da publicação: 08/10/2020
Você conhece alguma pessoa que possa dizer que, nos últimos anos, não teve sua vida e seu trabalho afetados pelas tecnologias digitais? Bem difícil. Se conversarmos com as pessoas próximas a cada um de nós, o que pode mudar é a percepção que têm a respeito dessa mudança: algumas vão dar mais destaque aos aspectos positivos e outras, aos aspectos negativos; algumas talvez não tenham percebido como o celular, o computador, as redes, as plataformas entraram em suas vidas, ao passo que outras (poucas) podem se gabar de viver (quase) offline. Mas é unânime o reconhecimento de que vivemos num mundo bem diferente depois que grande parte dos nossos dias passou a ser dedicada a interagir com clientes, patrões, colegas, bancos, lojas, instituições, e também amigos, familiares, desconhecidos, utilizando as chamadas TICs (tecnologias da informação e comunicação). Rapidamente, a separação entre mundo real e mundo virtual perdeu o sentido, ainda mais quando falamos do mundo do trabalho.
A coletânea de artigos Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (Boitempo), organizada por Ricardo Antunes, professor da Universidade de Campinas, enfrenta exatamente esse entroncamento entre real e virtual no mundo do trabalho. O livro começou a ser elaborado em 2019, como resultado de um convênio de cooperação entre o Ministério Público do Trabalho (PRT 15ª região) e a Unicamp, e este é, sem dúvida, um traço a ser destacado, porque aponta para a preocupação comum entre procuradores, professores e pesquisadores com os novos e perigosos rumos que as relações de trabalho estão tomando em nossa época, com a crescente utilização dessas tecnologias e das novas formas de contratação, organização, gestão e controle do trabalho que elas trazem.
O livro reúne 19 artigos escritos por 21 dos principais pesquisadores nacionais e internacionais sobre esses temas. Entre os estrangeiros, destacam-se nomes como Jamie Woodcock (autor de Marx no fliperama: videogames e luta de classes, outro livro importante que está sendo lançado pela Autonomia Literária) e Mark Graham (um dos fundadores do projeto Fairwork, que desenvolve pesquisa e ações para exigir que os princípios do trabalho digno sejam respeitados pelas plataformas). Entre os brasileiros, além do próprio organizador da obra, figura central nos estudos e debates sobre as transformações no mundo do trabalho entre nós há décadas, destacam-se Ludmila Costhek Abilio (que, a partir de sua pesquisa sobre revendedoras de cosméticos, Sem maquiagem [Boitempo, 2014], tem desvendado as formas que a uberização assume no Brasil) e Rafael Grohmann (editor do site/newsletter Digilabour, fundamental para quem se interessa pelas relações atuais entre trabalho e tecnologia).
Esta nova coletânea vem se somar ao esforço de Ricardo Antunes para fazer circular em português textos importantes sobre os desafios do mundo do trabalho na era da “degradação real do trabalho virtual” (como diz o subtítulo de Infoproletários [Boitempo, 2009], que ele organizou com Ruy Braga há mais de 10 anos), lado a lado com o resultado de pesquisas desenvolvidas no Brasil, que enfrentam as especificidades de nossos problemas e, a partir delas, tentam pensar formas de luta. Entre os frutos mais recentes de sua atuação, estão publicações como o quarto volume da série Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (Boitempo, 2019), que reúne 26 artigos dedicados a pensar sobre “trabalho digital, autogestão e expropriação da vida”, e o livro O privilégio da servidão (Boitempo, 2020), em que investiga por várias perspectivas as condições de trabalho e de resistência do “novo proletariado de serviços na era digital”.
Atravessando novamente esses livros, em 2020, é terrível ver o sentido que a palavra degradação assumiu.
Degradação das condições de trabalho, dos direitos sociais, das organizações sindicais, enfim, da vida dos trabalhadores e da sociedade por completo. Aquilo que era ainda embrião ou tendência, que o olho agudo dos estudiosos conseguia captar nos seus primeiros movimentos e alguns leitores poderiam tratar como simples conjecturas e previsões para um futuro distante, foi não apenas se confirmando, mas também revelando facetas ainda mais assustadoras e degradantes.
Numa fórmula simples, podemos dizer que esses estudos, de Infoproletários até Uberização, demonstram que, ano após ano, em todo o mundo, ao incremento de novas tecnologias correspondem condições ainda piores de trabalho e vida, impondo uma rotina doentia aos trabalhadores, que só é possível com a destruição sistemática dos direitos conquistados historicamente (de que nossa ardilosa “reforma trabalhista” é exemplo preciso), para submeter a vida dos trabalhadores à completa insegurança.
Entre os operadores de telemarketing e programadores de software, estudados no livro de 2009, e os motoristas, entregadores e outros “plataformizados” de 2020, passando pelas revendedoras de cosméticos de 2014 e pelas transformações sofridas por diversos setores nesse período, chama atenção a forma como o capital vai encontrando, impondo e aperfeiçoando suas soluções lucrativas (para poucos, sempre) na mesma velocidade com que novos aplicativos saltam nas telas dos mais de cinco bilhões de aparelhos celulares que estão ligados neste momento em todo o mundo. Impossível não lembrar da formulação de Marx: “A autovalorização do capital por meio da máquina é diretamente proporcional ao número de trabalhadores cujas condições de existência ela aniquila”.
Novas máquinas, novas formas de aniquilação – este é justamente o nó que os textos reunidos em ‘Uberização, trabalho digital e indústria 4.0′ tentam
(des)atar.
Na era digital, com empresas startups e “novos modelos de negócios”, plataformas, aplicativos e seus complexos algoritmos assumem o primeiro plano numa relação que, no fundo, mantém a essência da exploração capitalista de mão de obra. Não apenas mantém, mas intensifica e radicaliza seus mecanismos de exploração. Se o autor de O capital, olhando para as fábricas do século 19, pode dizer que “o meio de trabalho liquida o trabalhador”, o que ele diria agora que a tecnologia permite extrair valor até mesmo das “ferramentas” (carros, motos etc.) que pertencem ao próprio trabalhador, que é “patrão de si mesmo” e, assim, não tem nem mesmo direitos básicos, como salário mínimo, limitação de jornada, seguro contra acidentes, licenças, repousos, férias, aposentadoria?
De certo modo, os textos reunidos em Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 formam uma resposta para essa longa e angustiante questão, que já chama a atenção de grande parte da classe trabalhadora, e alertam para o movimento atual de expansão dessa lógica destrutiva aos mais diferentes trabalhos, do setor bancário à educação, da indústria automobilística ao serviço público, que rapidamente vão sendo também colocados nos moldes intermitentes da “prestação de serviços”, dos “bicos”, dos “frilas” e de outras formas de precarização. O que os textos deixam claro e temos o dever de frisar é que esse processo de uberização – ou plataformização, como alguns preferem – está longe de ser uma ameaça apenas para algumas funções ou a criação de novas atividades. É, na verdade, um ataque em bloco ao que conhecemos como regulação do trabalho: se a lógica da uberização vencer (como tem vencido), nenhum trabalhador, público ou privado, pode imaginar que sairá ileso. É um novo “modelo” que se impõe a todos e, por isso, a reflexão sobre formas de resistência, também enfrentada no livro, é urgente.
É importante ainda anotar que os textos foram escritos antes da pandemia e apenas em notas pontuais incorporam a reflexão sobre o que aconteceu de novo em 2020, mas suas ferramentas certamente ajudam muito a pensar sobre o que os trabalhadores enfrentarão a partir de agora. Podemos dizer que a pandemia – seja pelo agravamento da crise econômica, seja pela urgência de encontrar soluções para a continuidade dos negócios em tempos de quarentena – acelerou tendências indicadas no livro, agindo como um gatilho para a utilização de novos mecanismos de controle (monitoramento e gerenciamento visando a intensificação) do trabalho e da vida. Isolados, assistimos em poucos meses à implantação de mudanças que os pesquisadores previam para anos, até mesmo décadas. Ou seja, se tornou ainda mais urgente para a classe trabalhadora entender e enfrentar um “modelo” que rejeita seus direitos e aniquila suas condições dignas de vida – e isso dá ainda mais importância ao lançamento desse livro precioso.
Tarso de Melo é poeta e ensaísta, doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Autor de Rastros (martelo casa editorial, 2019), entre diversos livros.