‘A tributação não é neutra’: Discussão sobre reforma tributária avança sem recorte de gênero

IIlustração: Themis

A discussão em torno da reforma tributária está em voga nos Ministérios da Economia e do Planejamento e também no Congresso Nacional. Apesar de ser uma oportunidade de redução de desigualdades e de simplificação do sistema de impostos, uma questão importante tem papel minimizado no debate: o recorte de gênero. O Grupo de Trabalho (GT) que discute o tema na Câmara, criado em fevereiro, era constituído somente por parlamentares homens até o dia 28 de março, quando Tabata Amaral (PSB-SP) passou a integrá-lo. Para a deputada federal Denise Pessôa (PT-RS), que organizou um seminário intitulado “Reforma Tributária sob a Perspectiva de Gênero”, como parte da programação do mês da mulher no Congresso, é necessário que o assunto vire pauta na Secretaria da Mulher da Câmara de Deputados e que, assim, mais mulheres possam contribuir para a discussão que antecede a votação do projeto do Executivo.

De acordo com Luiza Machado, integrante do Grupo de Estudos de Tributação e Gênero do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito de São Paulo, o tema não é novo: vem sendo discutido há pelo menos três décadas. A pesquisadora explica que, para abordar o assunto, é necessário reconhecer as discriminações presentes na sociedade, além de levá-las em conta em cálculos e propostas. “A tributação não é neutra e ela afeta de forma diferente homens e mulheres. Trazendo para a realidade brasileira e do sul global, ela também afeta de forma diferente pessoas brancas e negras”, relata. Mesmo que não haja explicitamente a diferenciação entre homens e mulheres na legislação, os diferentes padrões de consumo e a divisão sexual do trabalho é que ditam em que grau o indivíduo será tributado. Para Luiza, há uma intercessão entre a tributação e a sociedade patriarcal.

Constitucionalmente, o Brasil deveria ter uma tributação progressiva, onde quem ganha mais deveria contribuir mais com o custeio do Estado. O que acontece é o contrário. Por terem uma renda menor e pagarem os mesmos impostos daqueles com renda maior, os mais pobres têm maior percentual da renda destinado à tributação. “Infelizmente, no Brasil, devido a uma altíssima tributação sobre o consumo e uma baixíssima tributação sobre a renda, acaba que quem ganha menos é mais tributado por sua condição de pobreza do que quem ganha mais, é uma comparação proporcional”, explica Luiza.

“Só que pouquíssimos estudos econômicos e tributários fazem menção ou buscam investigar quem são esses mais pobres. Quando a gente pega outros estudos econômicos, eles demonstram exatamente que o grupo dos mais pobres é muito mais composto por pessoas negras e, mais ainda, mulheres negras. As mulheres negras são mais afetadas pela tributação do que os homens brancos”, completa.

A reforma proposta pelo governo busca a criação de um imposto com alíquota única, o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que consiste na fusão do PIS, Cofins, ISS, ICMS e IPItributário, visando maior arrecadação e redução da taxação sobre o consumo. Além da redução da carga tributária sobre o consumo, há a sugestão da criação de um cashback como modalidade de devolução de parte do imposto pago por famílias de baixa renda. De acordo com Fernanda Santiago, assessora especial do ministro Fernando Haddad, estudos do Ministério da Fazenda indicam que isso poderia beneficiar até 72 milhões de brasileiros pobres, dentre esses 72% de negros e 57% de mulheres.

Entretanto, a pesquisadora da FGV contrapõe argumentando que o IVA com alíquota única tem potencial de aumentar desigualdades, já que esse modelo equipararia impostos sobre itens essenciais e supérfluos, como remédios e perfumes, por exemplo. Luiza sugere então uma atenção maior ao que é chamado de “princípio da seletividade”, com itens essenciais sendo menos tributados.

“Ficou bem nítido que a questão do imposto único também é uma forma de tratar de forma desigual. A gente ainda entende que alguns itens tem que ter um imposto diferenciado. Se a gente falasse de uma cesta básica, por exemplo, estaríamos, no final, atingindo realmente quem mais precisa”, concorda a deputada Denise Pessôa.

Ainda na tributação sobre produtos, há uma diferença em relação ao que Luiza chama, em sua pesquisa de mestrado na UFMG, de produtos relativos ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina. “A gente tem estudos brasileiros que demonstram como as mulheres gastam o dobro de horas que os homens semanalmente em trabalhos domésticos e de cuidado. Quando a gente vem investigar essa tributação sobre produtos como talco e creme de assadura, ela é geralmente maior do que em itens em categorias mais ‘masculinas’”, pontua.

Para a pesquisadora, é também necessária a diferenciação entre o cuidado e a fisiologia. “O cuidado não é uma responsabilidade natural da mulher, é uma consequência da divisão sexual do trabalho”, explica Luiza. De acordo com dados obtidos pela pesquisa de Luiza, referente aos impostos e IPI, PIS/Confins e ICMS, a tributação sobre preservativos masculinos é de 9,25% e sobre o Citrato de Sildenafila (Viagra) é de 18%, enquanto sobre absorventes menstruais é de 27,25% e sobre pílulas anticoncepcionais é de 30%.

Fonte: Sul 21
Texto: Duda Romagna
Data original da publicação: 02/04/2023

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