A sociedade da terceirização total

Ricardo Antunes

Fonte: Revista da ABET, v. 14, n. 1, p. 6-14, jan./jun. 2015.

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma formulação crítica acerca dos significados mais profundos do Projeto de Lei 4330 (depois modificado para PLC 30/2015) que, ao propugnar a eliminação da disjuntiva existente entre atividades-meio e atividades-fim, permitirá a ampliação do processo de terceirização para o conjunto das atividades produtivas (em sentido amplo). Ao fazer isso, além de romper com elementos centrais da CLT, em tese, todas as modalidades de trabalho poderão ser terceirizadas, o que ampliará ainda mais os processos de precarização, informalização e flexibilização da força de trabalho no Brasil. Ao permitir que a maioria da classe trabalhadora assalariada, hoje regida pela CLT, possa converter-se em assalariados terceirizados, abre-se o caminho para a sociedade da terceirização total, que perpetuará ainda mais o trabalho desprovido de sentido humano-societal. Tal movimento, impulsionado pela lógica presente no capital financeiro, ampliará exponencialmente, nas cadeias produtivas de valor, as formas contemporâneas de trabalho escravo, semiescravo, precarizado, informalizado, terceirizado, flexibilizado, dentre tantas outras modalidades já vigentes em ramos produtivos onde a terceirização é forte. Ela corrobora nossa hipótese de que estas modalidades de trabalho tendem a deixar de ser a exceção para tendencialmente tornarem-se a regra vigente no capitalismo de nosso tempo, convertendo-se em mecanismos centrais da estratégia patronal. Por fim, sua ampliação beneficiará expressivamente a produção da mais-valia em diversos ramos produtivos e, em particular, no setor de serviços.

Na história da humanidade, o trabalho assumiu desde logo uma dimensão decisiva e central, sendo que em nenhuma das suas distintas fases se pode prescindir desta atividade vital. Produzir os bens materiais e simbólicos tem sido, desde os primórdios até os dias atuais, resultado ineliminável do fazer humano. Oscilando entre criação e sujeição, atividade catártica e servidão, o mundo do labor vivenciou um pouco de tudo: trabalho compulsório, escravidão, fruição, trabalho livre, servidão, etc. Poiésis e tripalium, ergon e ponos, ato e punição, assim caminhou a dialética do trabalho.

Desde a Grécia antiga (para não falar da Antiguidade egípcia), passando pelo suspiro omnilateral do Renascimento, a luta pela dignidade e pela vida dotada de sentido no trabalho tem sido prometeica. Isso porque a boa vida fora do trabalho tem se resumido aos estratos sociais dominantes, restando às multidões perambular em busca de qualquer trabalho ou amargar o desemprego, os carecimentos e a penúria.

Se é tão verdade que a sociabilidade humana não pode prescindir do trabalho, também é demasiado triste saber que parcelas imensas, que se contam aos bilhões, vivem exclusivamente do labor, do trabalho manual pesado e da fadiga, não dispondo de um mínimo de tempo verdadeiramente livre e dotado de sentido, mesmo que seja para a pura e bela fruição.

No Brasil, se o trabalho primevo fora um exercício comunal e autônomo realizado pelos indígenas, a saga europeia do colonizador introduziu desde cedo o trabalho compulsório dos aborígenes e, em seguida, a ainda mais brutal escravização dos africanos. Em nome da modernidade mercantil nascente, o vilipêndio vicejou na jovem colônia tropical.

Mais tarde, com a abolição da escravidão, o imigrante branco europeu foi o escolhido para o assalariamento urbano-industrial como alternativa principal em relação aos trabalhadores negros que povoavam a nossa produção rural. Senhorial, escravista e elitista, nossa aristocracia rural converteu o trabalho escravo negro, especialmente as mulheres, em assalariadas domésticas, uma forma de perpetuar a herança servil da nova casa grande nas cidades.

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Ricardo Antunes é Professor do IFCH/UNICAMP.

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