Pandemia e guerra na Ucrânia abalaram projeto que já capengava. Surge novo cenário, em que Brasil tem a chance de se reposicionar se constituir outra maioria política e apostar em nova noção de desenvolvimento.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 28/03/2022
Após ter emitido vários alarmes acerca de sua disfuncionalidade, a globalização parece ter ficado para trás, concomitante com o receituário neoliberal adotado por parte da direita e da esquerda. Para descortinar o novo horizonte, que não seja a repetição do passado, é fundamental constituir uma outra maioria política, sobretudo composta pelos sujeitos sociais emergentes da Era Digital.
Na primeira desglobalização (1914-1980), que sucedeu o final da Ordem Liberal liderada pela Inglaterra (1870-1914), o Brasil formou uma maioria política que superou as forças das antigas oligarquias primário-exportadoras e reposicionou o país. Para tanto, teve que abandonar o padrão ouro-libra vigente até então e se conectou às tecnologias e padrões de financiamento comprometidos com a internalização do sistema produtivo representado à época pelo paradigma mecânico-químico.
A partir daí, o capitalismo brasileiro viveu a sua época de ouro, com um dinamismo econômico superior ao do resto do mundo, constituindo uma nova sociedade urbano-industrial. Mesmo não tendo resolvido os graves problemas socioeconômicos, o padrão mostrou-se superior ao vivido anteriormente, onde predominaram as ideias liberais do Estado mínimo.
O segundo ciclo da globalização, iniciado a partir da década de 1980, foi dominado pela Ordem Neoliberal liderada pelos Estados Unidos. Nele, o Brasil passou a regredir social e materialmente. A desarticulação do seu sistema produtivo avançou substancialmente desde 1990, quando a forma passiva e subordinada de ingresso na globalização prevaleceu no país.
A economia complexa, diversificada e integrada constituída desde a Revolução de 1930 foi substituída pela simplificação da especialização produtiva. E, por estar cada vez mais conectada com o exterior, a reprimarização da pauta de exportação se descolou dos interesses nacionais.
O setor exportador de produtos primários foi privilegiado pelas isenções de tributação, bem como pelos juros subsidiados para financiar o aumento da produção e pelas taxas de câmbio valorizadas, favorecendo a importação de tecnologias e insumos. Este processo requereu formar uma base parlamentar para defender os seus interesses durante o ciclo político da Nova República, de certa forma igual ao que acontecera durante a República Velha (1889-1930).
Por conta disso, o Brasil vem se inserindo na Era Digital como importador de bens e serviços digitais, dependendo crescentemente da especialização primário-exportadora. Atualmente, o país ocupa o posto da 13ª maior economia do mundo, com a sexta maior população do planeta e o quarto mercado consumidor de bens e serviços digitais globais.
Até a década de 1920, por exemplo, o Brasil também esteve subordinado ao modelo primário-exportador. Para poder ter acesso à Era industrial, enquanto um grande mercado consumidor, dependia das receitas da exportação agrícola e mineral para financiar a grande importação de bens manufaturados.
Desde 2001, com a crise das empresas Ponto Com e o ataque às torres gêmeas, os Estados Unidos frearam o rito expansionista da globalização. Depois, com a crise financeira de 2008, a desregulação neoliberal passou a ser questionada e o Estado foi chamado para interceder socializando os prejuízos das grandes corporações transnacionais, ameaçadas de irem à bancarrota.
A globalização foi travada. Houve o declínio da expansão do comércio externo e uma aceleração de aquisições e fusões no interior do setor privado. Ao mesmo tempo, as empresas estatais assumiram maior participação entre as 500 maiores empresas do mundo.
Na pandemia do coronavírus, em 2020, as cadeias globais de valor foram novamente atingidas em diversas partes do mundo. Diante da crescente vulnerabilidade imposta pela enorme interdependência entre economia e finanças, os governos de vários países pisaram no acelerador dos investimentos internos, protegendo e recuperando os seus próprios sistemas produtivos e o emprego e renda nacional.
Neste ano, o conflito armado entre Rússia e Ucrânia e, sobretudo, as punições impostas pelas significativas sanções econômicas definiram o fim da globalização, tal como era conhecida.
Neste cenário complexo e inseguro, o Brasil, depois de muito tempo, tem a oportunidade de se transformar internamente e se reposicionar externamente. Para isso, precisa formar-se outra maioria política munida de uma estratégia nacional e de um planejamento governamental. Neste quadro, pode ser construída uma nova história para um povo criativo, embora empobrecido e sofrido.
“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, conforme a música de Gerado Vandré (Pra não dizer que não falei das flores).
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. .