A defesa da renda dos capitalistas combinou-se com os efeitos da crise de pandemia, acelerando a deterioração das condições salariais dos trabalhadores.
Adalmir Antonio Marquetti e Alessandro Donadio Miebach
Fonte: GGN
Data original da publicação: 07/12/2021
Os efeitos da crise sanitária provocada pela Covid-19 intensificaram o debate sobre a desigualdade de renda. Há duas perspectivas para medir a desigualdade de renda. A primeira são as medidas relacionadas a distribuição pessoal da renda, como o índice de Gini e a renda por estratos da população. A segunda é a da distribuição funcional da renda que mostra as remunerações do capital e do trabalho. O principal indicador da distribuição funcional da renda é a parcela salarial, a qual mede a remuneração do trabalho. Uma parcela salarial de 50% indica que a metade do PIB é apropriada pelos trabalhadores. A distribuição funcional da renda é fundamental para compreendermos os presentes dilemas da economia e da sociedade brasileira. Desde 2016, há uma política de redução da parcela salarial, o que reduziu a renda do trabalho e aumentou a pobreza.
A Figura mostra a evolução da parcela salarial entre 2000 e 2021. A combinação entre os dados das Contas Nacionais e da PNAD Contínua permitem calcular a parcela salarial até 2020 e investigar o efeito da pandemia sobre a distribuição funcional da renda. Para 2021 fizemos uma estimativa a partir dos dados disponíveis para o primeiro semestre do ano. Há três fases na evolução da parcela salarial no Brasil: queda entre 2000 e 2004; aumento entre 2004 e 2015; queda entre 2015 e 2021 que se acelerou com a Covid-19.
Em períodos de crescimento há uma maior capacidade dos trabalhadores obterem ganhos salariais acima da produtividade do trabalho, na crise ocorre o contrário. O crescimento econômico e as políticas relacionadas ao trabalho, em especial, a valorização do salário mínimo favoreceram o aumento da parcela salarial nos governos do PT. A expansão da parcela salarial aumentou em 335,6 bilhões de reais (em valores nominais) a remuneração do trabalho em 2015 em relação a 2004.
A crise a partir do final de 2014, combinada com a agenda da econômica do soft coup de 2016 e a “flexibilização” da legislação trabalhista com a reforma da CLT reduziram fortemente o poder de negociação dos trabalhadores. O resultado foi a queda da parcela salarial. A redução foi relativamente lenta devido à manutenção da política do salário mínimo e da queda da produtividade do trabalho após 2014. Contudo, os efeitos econômicos da Covid-19, o abandono da política de valorização do salário mínimo e a política econômica do Governo Bolsonaro provocaram uma forte queda da parcela salarial.
Uma das características fundamentais da economia brasileira na etapa iniciada em 2016 é de uma distribuição de renda do trabalho para o capital. A redução da parcela salarial entre 2015 e 2021 significará uma transferência do trabalho para o capital na ordem de R$ 560 bilhões de reais (em valores nominais). Os trabalhadores que possuem maior “flexibilidade” no mercado de trabalho, sem carteira de trabalho e menores salários, foram os mais duramente atingidos pela queda da renda do trabalho. A ofensiva a favor do capital se intensificou a partir de 2019, sob o governo Bolsonaro. O Ministério da Economia seguiu a estratégia conhecida como “Trickle-Down Economics”, que implica na adoção de políticas que beneficiem as empresas e os mais ricos. O aumento dos lucros iria supostamente disseminar o crescimento econômico pela sociedade via aumento da poupança e investimento. A adoção da agenda econômica que fracassou nas últimas décadas nos EUA, na Europa e na América Latina resultou obviamente em novo fracasso; não houve investimento produtivo e crescimento.
A defesa da renda dos capitalistas combinou-se com os efeitos da crise de pandemia, acelerando a deterioração das condições salariais dos trabalhadores. O governo assistiu passivamente, em meio a maior crise sanitária em um século, a aceleração dos preços dos alimentos. Como fartamente documentado na CPI da Covid-19, a desastrosa condução da pandemia por parte da União colaborou para a piora das condições econômicas dos trabalhadores, aumentando a magnitude da crise econômica e as instabilidades que contribuíram para a depreciação do real e a aceleração inflacionária. A política de preços dos combustíveis e a elevação dos preços da energia elétrica são responsáveis pela aceleração recente da inflação. O aumento da inflação acelerou a queda da parcela salarial, dada a incapacidade dos trabalhadores em recomporem o valor real de seus salários. A combinação entre a crença no neoliberalismo, efeitos econômicos da pandemia e incapacidade do governo gerir a economia resultou nas piores condições imagináveis para os trabalhadores: inflação acelerada e elevado desemprego. O resultado é o rápido declínio da parcela salarial, a redução da renda do trabalho e o aumento da pobreza.
O projeto estabelecido em 2016, que visava a compressão dos salários dos trabalhadores, continua em pleno curso no Brasil. A compressão salarial foi uma das principais razões econômicas para o golpe nada soft de 2016. Os governos Temer e Bolsonaro, sob o ponto de vista econômico, formam um contínuo de políticas a favor do capital e em detrimento dos salários.
Diversos setores da elite econômica brasileira têm se movimentado para manter o projeto de compressão salarial. Observa-se um intenso movimento da mídia corporativa em articulação com o “mercado”, o eufemismo para os gestores da riqueza financeira privada, para organizar uma alternativa eleitoral ao atual governo que preserve o atual projeto econômico, a chamada “terceira via”. O objetivo, em última análise é o de bloquear qualquer modificação nas estruturas sociais do país. Esse projeto é incapaz de gerar crescimento econômico.
Os setores progressistas têm o desafio de enfrentar a situação a começar pela avaliação das condições sociais, políticas e econômicas e propor alternativas. Sob a perspectiva econômica, é evidente a necessidade de recuperação do crescimento da produtividade do trabalho que permita a recuperação dos salários de maneira articulada com a expansão do crescimento econômico e do investimento produtivo. Para tanto, é necessária a retomada do investimento público e privado. Para a retomada do investimento público é necessário revisar a regra do teto de gastos. Mais ainda, é fundamental a correta identificação de projetos que possuam elevados efeitos multiplicadores na renda, no emprego e que propiciem externalidades positivas no investimento privado. Existem diversos setores industriais com capacidade tecnológica e competitiva capazes de responderem de forma eficaz, caso recebam os adequados incentivos, desde a produção de insumos médicos para uso no sistema único de saúde a atividades associadas ao manejo sustentável do patrimônio ambiental do País. A retomada do investimento privado implica na recuperação do papel do BNDES como agência fomento ao investimento produtivo brasileiro.
Contudo, são enormes os desafios políticos. É necessário recuperar o controle do orçamento federal pelo executivo. A atual peça orçamentária é uma tapeçaria de emendas parlamentares obscuras, nas quais a racionalidade do gasto público como indutor da atividade, do crescimento econômico e dos ganhos de produtividade se perde em prol dos interesses paroquiais com fins eleitorais de curtíssimo prazo. As regras fiscais devem ser completamente reconfiguradas para permitir os investimentos e a provisão de bens públicos. É preciso retomar a atividade diplomática de modo racional, que recupere a imagem do Brasil no concerto das nações. Um programa nesses termos enfrentará enormes dificuldades de caráter político e a sua consecução, mesmo que parcial, requer enorme habilidade tanto na sua formulação concreta, como na construção política necessária à sua implementação.
As propostas aqui sugeridas de forma sucinta representam uma ruptura com a “guerra ao salário” iniciada em 2016. As condições sociais do Brasil no início da terceira década do século XXI são trágicas. A fome e a miséria retornaram com força nas diferentes regiões do País. Mesmo trabalhadores ocupados enfrentam dificuldades no sustento de suas famílias. Vivemos o risco concreto de, em meio aos desafios da superação da pandemia e do enfrentamento da crise ambiental, condenar mais uma geração de nossas crianças a uma vida de pobreza e exclusão social. A continuidade do bolsonarismo ou sua substituição por um projeto que mantenha suas superadas concepções econômicas levarão ao aprofundamento da desigualdade. Somente a retomada do processo de crescimento econômico com recuperação da renda dos trabalhadores pode colocar o Brasil em uma trajetória de desenvolvimento social capaz de construir uma sociedade justa, fraterna e humanizada.
Adalmir Antonio Marquetti é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da PUCRS.
Alessandro Donadio Miebach é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS.