A regulamentação do trabalho em plataformas digitais: o PL 4172/2020

Há dificuldade em regulamentar novas relações de trabalho de forma protetiva e sem contrariar tudo aquilo que se acumulou com anos de lutas. Porém, isso não pode nos afastar do objeto: regulamentar, em favor dos trabalhadores, o serviço prestado em plataformas digitais.

Antonio Escosteguy Castro

Publicado em parceria com DDF

Em 1º de julho de 2020, em plena pandemia, com boa parte da população brasileira confinada em suas casas, estourou uma pioneira greve dos trabalhadores entregadores de mercadorias em plataformas digitais, conhecidos como riders. Eles a chamaram de “ breque dos apps” , tendo sido um movimento bem-sucedido, com enorme repercussão na mídia, trazendo para o grande público a figura do rider Galo, de São Paulo, primeiro líder da categoria.

A combinação de um expressivo nível de desemprego (que superava, na época, 14%) com as necessidades da pandemia levara a que centenas de milhares de brasileiros se dirigissem às plataformas de entrega de mercadorias (iFood e outras) ou às plataformas de transporte de passageiros (Uber e outras) para conseguir alguns parcos reais e sua sobrevivência.

Com aquela greve (que foi seguida por diversos outros movimentos, nacionais ou locais), ficou evidente que o mundo dos serviços por plataformas digitais era um mundo sem lei, sem regulamentação alguma, e as gigantescas empresas que nele operavam (em geral internacionais) disso se valiam para maximizar a exploração do trabalho.

Como consequência, em pouco tempo já haviam sido protocolados mais de 60 projetos de lei no Congresso Nacional, propondo as mais variadas formas de regulamentação destes serviços.

O escritório de advocacia do qual faço parte foi procurado pelo Deputado Federal Henrique Fontana (PT/RS) para colaborar na elaboração de um projeto de lei regulamentador que, após inúmeros estudos, debates e consultas, terminou por se constituir no PL 4172/2020[1].

Esclareça-se preliminarmente que foi uma opção política de seus autores que o PL 4172/20 tenha como objeto regulamentar o trabalho em plataformas digitais de transporte individual privado ou de entrega de mercadorias (os motoristas e os riders) e não todo e qualquer trabalho em plataformas digitais. É fato que hoje se  expande o trabalho via plataformas digitais (na área do ensino, por exemplo, já é uma realidade), mas considerou-se que ainda não havia debate suficiente acumulado para que se propusesse uma regulamentação ampla e geral, ainda que muitos dos institutos jurídicos do PL 4172/20 possam e até devam ser vistos como válidos para outras hipóteses.

O conceito central do projeto é de que se trata de regulamentar um contrato de trabalho. As plataformas digitais são uma inovação tecnológica altamente sofisticada e razoavelmente eficiente, mas isto não transforma aqueles que a elas prestam serviços em empreendedores ou microempresários. E certamente não são autônomos, como assim se entende esta categoria jurídica no Direito do Trabalho.

O primeiro debate, portanto, foi sobre a caracterização ou não da existência de um contrato de emprego. Este é o mais comum dos contratos de trabalho em nosso ordenamento jurídico. É fruto típico da segunda revolução industrial, do taylorismo-fordismo que prevaleceu no mundo do trabalho a partir dos inícios do século XX. Esse período se caracteriza pela produção em massa de produtos homogêneos, padronizados. Os produtos que melhor simbolizam esse tempo são os  bens de consumo durável, como eletrodomésticos e automóveis, fabricados exatamente iguais em longas e tediosas linhas de montagem. Mas as novas tecnologias, oriundas da Revolução Tecnológica Microeletrônica e que se acelerou a partir dos anos 1980, trouxeram consigo novas relações de trabalho, com características que demandam novas formas de regulação.

Optou-se, portanto, pela formatação de um novo tipo de contrato de trabalho. Mas tal não significa que se trata de um contrato necessariamente precário. Nossa Carta Magna estabelece, no art. 7º , toda uma série de direitos que são extensíveis (com suas peculiaridades) a todas as formas de relações de trabalho praticadas no Brasil. Assim também para as garantias advindas das Convenções e tratados internacionais firmados pelo Brasil. E o  vínculo contratual, registre-se por essencial, se dá entre o prestador de serviço e a plataforma, não com o fornecedor, muito menos com o cliente adquirente.

  O projeto, portanto, começa por afirmar os conceitos fundamentais que distinguem este contrato de trabalho dos demais: o trabalhador tem liberdade de escolher seu horário de trabalho, de conectar-se e desconectar-se quando quiser e não sofrer qualquer tipo de penalidade ou consequência remuneratória em face disto. A maior autonomia do trabalhador é base essencial do contrato de trabalho que se cria.

A empresa deve manter em seu portal as condições gerais do contrato, não pode alterá-las sem prévio aviso e tempo razoável e jamais em desfavor do obreiro. Deve assegurar o direito de defesa do trabalhador previamente a qualquer punição. Outra questão essencial para este contrato de trabalho é o dever da empresa de explicitar previamente todos os elementos do serviço que oferece ao trabalhador (distância a percorrer, o endereço do destino e o valor líquido a ser pago pelo serviço) e o direito do trabalhador de recusar, também sem qualquer penalidade ou consequência remuneratória, o serviço que lhe foi oferecido. A empresa não pode, também, reduzir o valor que ofertou antes da aceitação do serviço nem atribuir a responsabilidade ao trabalhador por viagem ou entrega frustrada por causa de terceiros, muito menos reduzir de qualquer forma a  remuneração devida por promoção ou desconto oferecidos nas entregas ou viagens.

O Projeto prevê  que o contrato se dá por tempo indeterminado, formando-se com a aceitação do cadastro pela empresa, e estabelece as maneiras  de  sua cessação, com o  pagamento das devidas indenizações.

O projeto garante uma renda mínima ao trabalhador, vedando a superexploração que se verifica em muitas plataformas. Ninguém pode ganhar, líquido, menos que o salário mínimo por hora trabalhada, entendida esta como toda hora logada à empresa. Para o cálculo do valor mínimo a pagar incidem os adicionais de horário extraordinário a partir da 8ª hora diária e 44ª semanal.

O projeto assegura, anda, férias remuneradas e 13º salário com um valor acrescido à tarifa básica e liberado ao trabalhador no momento oportuno.

O trabalho em horário noturno ou em domingos e feriados gera um acréscimo na tarifa  de 15%, revertido ao trabalhador.

Assegura-se a redução dos riscos à saúde , inclusive mental, garante-se o fornecimento de EPIs e de um seguro contra acidentes de trabalho, e restringe-se, por medida de segurança, as viagens e entregas a clientes previamente cadastrados na plataforma.

Para o transporte de passageiros, estabelece-se que o valor apropriado pela contratante não poderá exceder de 20% do valor total pago pelo cliente da viagem e o valor da tarifa inicial e o valor do quilômetro rodado não poderá ser inferior a 60% do cobrado pelo táxi comum da cidade onde o serviço for contratado.

O projeto prevê o direito de organização, de greve e de negociação coletiva, estabelecendo diversas regras que incentivam sua efetivação, estabelecendo ainda a competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos trazidos pela nova lei.

O direito à previdência social é uma garantia constitucional que deve alcançar a todos os trabalhadores por força do princípio da universalidade da cobertura, respeitada a equidade na forma de participação no custeio. Nesse sentido, a Constituição autoriza o estabelecimento de modelo especial de inclusão previdenciária destinado a viabilizar a proteção social.

A condição dos trabalhadores em plataformas digitais tem revelado a necessidade de estabelecer-se mecanismo de inclusão que oportunize a obtenção de benefícios futuros, com patamares reduzidos de contribuição e, em contrapartida, limitação na contagem do respectivo período como tempo de contribuição, bem como no respectivo valor dos benefícios.

A filiação previdenciária permanece sendo na condição de contribuinte individual, contudo, observado como salário-de-contribuição os rendimentos recebidos em relação a cada contrato, possuindo como teto valor de dois salários mínimos nacionais. As alíquotas são reduzidas, sendo de 3% (três por cento) a cargo do trabalhador e 8% (oito por cento) do contratante, totalizando 11% (onze por cento), alíquota equivalente à do contribuinte individual de que trata o art. 21, § 2º, inc. I da Lei n° 8.212/91, parcialmente custeada pela empresa.

É assegurado o seguro-desemprego para os trabalhadores, nos termos da legislação específica, bem como se inclui o contrato de trabalho ora criado na legislação do PAT e do vale-alimentação, e se asseguram, ainda, benefícios fiscais para as empresas que concederem auxílios indenizatórios.

Inspirado em legislação do estado norte-americano da Califórnia, o projeto prevê que, se verificadas as condições gerais que a CLT determina para o vínculo de emprego, este deve ser reconhecido, cabendo à empresa provar que estas não se verificam e definindo a caracterização da subordinação nestes novos tempos para o fim do vínculo de emprego. O contrato de trabalho regulado no projeto demanda seu estrito cumprimento, sob pena de caracterizar-se o vínculo de emprego. Assim estabelece seu artigo 13:

Art.13. Se na prestação dos serviços do trabalhador à contratante plataforma digital se verificarem os requisitos previstos no art. 3º do Decreto-lei 5452 de 1º de maio de 1943, Consolidação das Leis do Trabalho, fica caracterizado o vínculo de emprego.

 §1º. Caracteriza-se a ocorrência da subordinação ensejadora do reconhecimento do vínculo de emprego quando verificadas uma ou mais das seguintes situações, dentre outras que demonstrem a direção do trabalho pela contratante: 

a)a prática reiterada ou abusiva de bloqueios sem efetiva justificativa, bem como a punição da recusa ou desconexão; 

b)a discriminação na distribuição e oferta de serviços com base na prestação de horário anterior de trabalho; 

c)a discriminação na distribuição e oferta de serviços com base em pontuação ou outro sistema de reputação; 

d)a não informação prévia ao trabalhador do valor, distância a percorrer e endereço de destino do serviço proposto. 

§2º. Cabe à contratante o ônus da prova da inocorrência das situações definidas no §1º.

Este artigo é central no PL 4172/2020. Entendemos que a forma como hoje é efetivado o trabalho nas grandes plataformas digitais caracteriza a relação de emprego. Neste sentido, absolutamente correto o voto do Ministro Mauricio Coutinho Delgado no processo 100353-02.2017.5.01.0066, na sessão da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho de 15/12/2021, amplamente divulgado na imprensa à época[2]. Foram verificadas, a partir da prova produzida nos autos (um motorista de transporte de passageiros) que estão presentes as características da pessoalidade (pela inscrição no cadastro do aplicativo) da onerosidade (que leva em conta que a maior parte dos custos cabe ao motorista) e, principalmente, da chamada subordinação algorítmica.

O Min. Godinho demonstra que existe uma subordinação profunda na forma como é prestado este trabalho não só pelos instrumentos tecnológicos à disposição da plataforma, que controla minuto a minuto, segundo a segundo, o que faz e onde está o motorista, como pela relação direta entre o cliente e a plataforma, com as avaliações e comunicados.

Desta forma, para que se caracterize este novo contrato de trabalho regulado no projeto, há de assegurar-se um maior grau de autonomia do trabalhador na sua prestação de serviços. Como já dito supra, há de ser assegurado que o trabalhador: a) trabalhe quando quiser, b) desconecte-se quando quiser e c) não sofra qualquer prejuízo por estas decisões.

Exemplificando, é muito comum que as plataformas programem seus algoritmos para  vincular o oferecimento de boas viagens apenas aos trabalhadores que no dia anterior tenham ficado conectados X horas. Assim, quem não trabalhou todo o dia anterior, no dia seguinte sequer recebe a proposta de uma corrida ao aeroporto, por exemplo, em geral distante e bem paga. O conteúdo do projeto é claro: se isto acontecer, é uma relação de emprego e não um contrato de trabalho de plataformas.

Temos ciência da dificuldade de regulamentar novas relações de trabalho de forma protetiva e sem contrariar ou desconstituir tudo aquilo que se acumulou com dezenas de anos de lutas. Por isso sabemos que o PL 4172/2020 deve ter vários problemas e defeitos. Mas a dificuldade da tarefa não pode nos afastar do objeto: regulamentar, em favor dos trabalhadores, o serviço prestado em plataformas digitais.

Nota

[1] O grupo de trabalho da sociedade Castro, Osório, Pedrassani & Advogados Associados que dedicou-se ao tema foi constituído por Antonio Escosteguy Castro, Pedro Luiz Corrêa Osório, Luiz Gustavo Capitani Reimann, Fábio Mattei , Ramiro Crochemore Castro e Clarissa Mássia Osório.

[2] Em face de pedido de vistas do Min.Alexandre Belmonte , não foi publicado o voto do Min.Maurício Delgado. Seu resumo pode ser assistido no canal do TST no Youtube, sessão da 3ª Turma de 15/12/2021.

Bibliografia

LE ROUX,Serge. Desemprego estrutural, desemprego tecnológico: categorias a revisitar à luz da imaterialização da atividade econômica. In: DIEESE (org.), Emprego e Desenvolvimento Tecnológico: Brasil e contexto internacional. DIEESE, São Paulo , 1998,vol.I.

MELMAN , Seymour . Depois do capitalismo. Futura, São Paulo, 2002.

MORAES NETO, Benedito de . Século XX e trabalho industrial- taylorismo/fordismo ,ohnoísmo e automação em debate. Xamã, São Paulo, 2003.

STIGLITZ, Joseph E.. Os exuberantes anos 90 .Cia das Letras, São Paulo, 2003.

Alguns trechos do artigo foram retirados da obra do autor : Trabalho , Tecnologia e Globalização, Ltr, São Paulo, 2006.

Antonio Escosteguy Castro é formado em Direito pela UFRGS em 1981, assessor de entidades sindicais, membro do Coletivo Jurídico da CUT/RS, diretor da AGETRA-Associação Gaúcha de Advogados Trabalhistas  e autor do livro Trabalho,Tecnologia e Globalização,Ltr, São Paulo,2006.

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