Henrique Caetano Nardi
Fonte: Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, jan./jun. 2003.
Resumo: Este artigo discute o conceito de propriedade social (Castel, 1998; 2000) como possibilidade de problematização dos modos de subjetivação contemporâneos. A genealogia da sociedade salarial proposta por Robert Castel nos permite pensar a construção da propriedade social como suporte da existência e como garantia do gozo dos direitos de forma igualitária. As transformações dos modos de subjetivação associadas ao novo modelo de acumulação capitalista reinstaurou a desigualdade e a insegurança como forma de revitalizar a competição enquanto valor central da sociedade neoliberal. Propomos aqui utilizar o modelo compreensivo de Castel para pensar os análogos da propriedade social construídos na história brasileira e que marcam a relação entre os modos de subjetivação e o trabalho.
Sumário: A genealogia do indivíduo moderno | Propriedade social, ética, vulnerabilidade e normatização | Os análogos da propriedade social no contexto brasileiro | Trabalho, propriedade social e subjetividade no contexto contemporâneo | Crise e transformação | Notas | Referências
Para compreendermos as questões sociais contemporâneas é necessário problematizar o presente (CASTEL, 2000). Entretanto, o presente não é somente o contemporâneo; ele se configura a partir dos traços do passado. A genealogia é o método que busca encontrar os traços do passado que permitem compreender as questões de hoje. A história do presente é composta de outras regras que aquelas empregadas pela história do passado, pois ela não demanda uma compilação exaustiva de todo o material disponível, mas uma escolha focalizando o objeto de investigação. A dificuldade dessa tarefa está em datar os momentos de ruptura e os acontecimentos que, sob o olhar do passado, permitem interrogar o presente. Tendo como base essa premissa, no decorrer deste artigo, buscar-se-á discutir – a partir das transformações do trabalho – o papel da propriedade social como suporte para a construção dos projetos de vida dos indivíduos, enfatizando as formas possíveis de inserção dos jovens no mercado de trabalho.
Castel (1998), por exemplo, afirma que a situação dos jovens que não conseguem ingressar no mercado de trabalho ou dos desempregados de longa duração não se configurava como um problema durante os chamados “trinta gloriosos” (1945-1975) na França e na Europa Ocidental. A genealogia desse problema – que vem à tona a partir da crise do modelo de acumulação fordista e que resulta, hoje, no surgimento da questão da invalidação social – faz com que se busque a homologia entre os “inempregáveis” e “supranumerários” do presente e os “inúteis para o mundo” e “vagabundos” da sociedade pré-industrial.
Um outro exemplo que nos interessa de perto é a regulamentação das relações de trabalho (que é um elemento central para a compreensão da questão social na sociedade industrial), a qual pode ser problematizada, hoje, a partir da solução encontrada para a questão social do pauperismo na primeira metade do século XIX. A luta dos trabalhadores na busca de proteção social e contra a hiperexploração do trabalho levou mais de um século para protegê-los por meio dos suportes sociais presentes na regulação (pela lei) das relações de trabalho. É dessa forma que podemos compreender como as massas miseráveis do início da industrialização se tornaram integradas sob a forma de assalariados protegidos na Europa Ocidental. A solução proposta para a questão social contemporânea é inversa àquela encontrada na sociedade industrial. Ou seja, hoje, a desfiliação produz-se pela desregulamentação das relações de trabalho. É a re-mercadorização das relações de trabalho dos últimos 30 anos (pela qual o trabalho deixa de ser regulamentado e é re-transformado numa simples relação de compra e venda com um mínimo de proteções contratuais) que enfraquece o laço social construído em torno do trabalho assalariado e torna inválida uma expressiva parte da população ativa. O objetivo central da genealogia concentra-se, portanto, na reconstrução dos principais acontecimentos que marcam a transformação das relações de trabalho não do ponto de vista da produção de riqueza, mas, essencialmente, como matriz principal de integração ou, ao contrário, quando está ausente, de desfiliação social.
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Henrique Caetano Nardi é Doutor em Sociologia, e prof. adjunto do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Curso de Mestrado em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.