
Novo relatório de pesquisa da Fairwork observa avanço da degradação das condições de trabalho nas plataformas digitais no Brasil.
Julice Salvagni, Ricardo Festi, Rodrigo Carelli e Maria Aparecida Bridi
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 23/09/2025
O projeto Fairwork lança seu terceiro relatório da pesquisa-ação realizada no Brasil, voltado à análise das principais plataformas digitais no país sob a perspectiva do trabalho decente. Com base em uma ampla pesquisa qualitativa, que integra dados de diferentes fontes, inclusive informações fornecidas pelas próprias plataformas, a avaliação das empresas varia de 0 a 10.
Os princípios de trabalho decente que orientam essa avaliação são: remuneração, condições de trabalho, contratos, gestão e representação. Cada princípio é subdividido em dois aspectos, resultando em 10 pontos possíveis na pontuação final. Essa pontuação reflete o grau de compromisso das empresas com a garantia de condições mínimas para um trabalho decente.
O objetivo é apresentar um panorama da realidade do trabalho em plataformas digitais no Brasil, considerando também o contexto nacional e internacional em que essas questões vêm evoluindo.
O Fairwork é sediado centralmente pela Oxford Internet Institute e pelo Social Science Research Centre de Berlin (WZB), mas está presente em mais de 40 países. No Brasil, a pesquisa é ancorada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas comporta ainda a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nesta rodada a pesquisa também integrou um projeto latino-americano coordenado pelo TEDIC, Tecnoloía y Comunidad – Paraguay, com financiamento da Internet Society Fundantion. Em todas as instituições, há um conjunto de docentes e discentes envolvidos com diferentes etapas desta pesquisa-ação. A metodologia envolveu entrevistas com trabalhadores, pesquisa documental e reuniões com gestores de plataformas digitais. Publicizando-se os resultados, espera-se que as empresas possam intervir de forma direta na melhoria das condições no trabalho em suas plataformas.
Este ano, o relatório recebeu o título Endividamento e precariedade: o retrato do trabalho em plataformas no Brasil. A íntegra de seu resultado, sobretudo a tabela de pontuações das empresas, poderá ser encontrada no próprio site do projeto, a partir das 12h de 23 de setembro de 2025, horário em que será realizado seu lançamento virtual. Quem tiver interesse em assistir o evento, poderá se inscrever no link.
Neste artigo, destacamos alguns aspectos que chamaram nossa atenção este ano sobre o trabalho nas plataformas digitais no Brasil.
Os princípios do Fairwork e a persistência dos velhos problemas
Apresentaremos de forma detalhada os cinco princípios que o Fairwork utiliza para analisar e classificar as condições de trabalho nas plataformas digitais e, em seguida, destacaremos alguns dos resultados mais relevantes. Vale ressaltar que, na edição de 2025, a pesquisa concentrou-se nas seguintes empresas: Uber, 99 e InDrive, no transporte individual de passageiros; iFood, AmeFlash, Lalamove, Loggi e Rappi, no ramo de entrega de mercadorias; Superprof, plataforma de ensino que oferece aulas particulares; e, por fim, Parafuzo, empresa de serviços de faxina doméstica.
No critério de remuneração, o Fairwork avalia se a plataforma garante aos trabalhadores um rendimento líquido equivalente, no mínimo, ao salário mínimo local, descontados todos os custos necessários à execução das atividades. Na prática do trabalho por plataforma, observa-se que os trabalhadores frequentemente enfrentam dificuldades para mensurar sua remuneração real, devido à variabilidade dos ganhos, aos múltiplos descontos e à falta de transparência nos critérios de pagamento. Nesse contexto, os profissionais arcam com despesas relacionadas à prestação dos serviços, como compra e manutenção de equipamentos e instrumentos de trabalho – um ônus que deveria ser assumido pelas empresas. Apesar de relatos pontuais indicarem ganhos relativamente expressivos em determinados períodos, essas quantias normalmente resultam de jornadas extenuantes, nas quais se exige que os trabalhadores permaneçam constantemente disponíveis.
Sobre as condições de trabalho, são averiguados os múltiplos riscos a que os trabalhadores estão expostos, buscando identificar se as plataformas disponibilizam equipamentos, treinamentos e apresentam programas de compensação em caso de acidentes, furtos ou doenças. Mais do que isso, busca-se identificar se tais programas são efetivos.
Em relação aos contratos, o estudo examina diferentes dimensões dos termos que são colocados aos trabalhadores, que na maior parte das vezes aceitam sem ler atentamente. A pesquisa destaca a existência ou não de cláusulas abusivas, se a linguagem é clara e acessível, além de verificar se há garantia de acesso aos documentos pelos trabalhadores.
No que diz respeito ao modelo de gestão das plataformas, verifica-se se existem políticas claras em relação aos processos de desativação ou bloqueio nas plataformas. Na prática, são recorrentes os relatos de trabalhadores que dizem ter sido bloqueados injustamente e que não conseguem recorrer às decisões das plataformas. Neste caso, eles simplesmente são impedidos repentinamente de acessar a plataforma e sequer conseguem acesso a uma justificativa acerca do motivo que levou ao bloqueio. Mais do que isso, há a presença do gerenciamento algorítmico, que normalmente tende a acentuar opacidades na relação com os trabalhadores. Tal sistema cria uma lógica de competição e aceleração do trabalho, distribuindo as tarefas de acordo com essa ordem de classificação.
Por fim, em relação à representação, busca-se a verificação do cumprimento de princípios de liberdade de associação e garantia de voz dos trabalhadores – inexistindo a censura ou punição por críticas às condições de trabalho ou bloqueios contra aqueles que participam de manifestações. Na grande maioria das empresas, há uma dificuldade dos coletivos, associações e sindicatos serem conhecidos como representantes dos trabalhadores.
Novos problemas que agravam as condições de trabalho
Os relatórios anteriores da pesquisa-ação Fairwork no Brasil já apresentavam dados suficientes para atestar o aumento da exploração do trabalho pelas plataformas digitais. De modo geral, há a naturalização da ampla e irrestrita desresponsabilização das empresas em relação a qualquer dano que venha a ocorrer com o trabalhador na realização da tarefa. Verificou-se o alijamento completo dos direitos trabalhistas e sociais. Ainda, há formas de intensificação do controle do trabalho por meio de programações algorítmicas, gamificadas e classificatórias, que aceleram e aumentam os riscos relacionados à atividade. Apesar de tudo que já foi evidenciado, o relatório deste ano evidencia o aprofundamento do fenômeno em outros aspectos até então pouco tratados. Sumariando, é possível dizer que a realidade do trabalho por plataforma digital tem se transformado sobretudo no sentido das suas interrelações com o debate de gênero, com as dimensões da informalidade e com o que se refere à lógica do endividamento.
No que tange à gênero, essa rodada da pesquisa revelou um agravamento significativo dos relatos de violência, especialmente contra as mulheres. Foram encontrados relatos de episódios de assédio sexual frequentes sofridos por mulheres no seu cotidiano laboral, como afirmou uma trabalhadora: “Assédio tem muito. Já presenciei bastante isso, reporto e aí a plataforma simplesmente diz que vai notificar o usuário e eu depois não tenho retorno disso”.
Sobre as dimensões da informalidade, foi possível identificar um fato novo que é a opção pela multiplataforma. Quer dizer, os trabalhadores que antes se dividiam em motoristas ou entregadores, por exemplo, têm usado da estratégia de atuar em várias plataformas, mesmo alternando entre uso de carro ou moto. Isso acontece por várias razões. A primeira delas é uma tentativa de contornar o algorítmico e a baixíssima remuneração oferecida pelas empresas. Outro sentido deste uso das multiplataformas também foi descrito como uma possibilidade de seguir trabalhando enquanto recupera-se de um acidente ou no período da gravidez, no caso das mulheres. Explicando melhor, há relatos de que o trabalhador quando não se sente bem para dirigir uma moto, por ter se acidentado ou por acumular dores no corpo devido à posição ou o peso da bolsa térmica na moto, decide alternar seu uso com o do carro. Isso revela, de fato, uma busca desesperada por alternativa de quem não está conseguindo aguentar as demandas deste trabalho. Além de evidenciar os danos que esse trabalho traz para a sua saúde a médio e longo prazo.
Por fim, destacamos uma estratégia que tem sido cada vez mais usada pelas empresas-plataformas, que é de colocar-se como uma agência financeira, oferecendo empréstimos aos trabalhadores, enredando-os em uma lógica de endividamento e consequentemente dependência crescente em relação a essas empresas, prendendo-os a esse trabalho. Também foi possível constatar a utilização de empresas terceiras por parte das plataformas para gerir o pagamento dos trabalhadores. Em alguns casos, estes precisam pagar uma taxa para ter acesso à sua remuneração por direito. Esta complexificação nos pagamentos não tem diminuído os problemas relativos aos atrasos ou à pagamentos indevidos. Assim, tem-se visto a ampliação de redes de empresas que se apropriam de uma parte da renda gerada pelos entregadores e motoristas de plataformas digitais. Isto fica bastante evidente no caso dos bikers, entregadores e motoristas, por exemplo. Em vários grandes centros urbanos, esses trabalhadores são levados a alugar bicicletas, carros ou motos, criando-se uma nova dependência financeira durante o trabalho com a locadora.
Conclusão
Infelizmente, ao comparar os resultados obtidos nas edições anteriores desta pesquisa, o relatório de 2025 atesta um avanço na degradação das condições de trabalho nas plataformas digitais no Brasil. Este quadro expressa duas situações que se combinam: 1) a falta de compromisso das empresas-plataformas em garantir direitos mínimos relativos ao trabalho e 2) a falta de avanços no campo regulatório e jurídico, seja no Congresso Nacional, por meio de novas legislações, seja na justiça do trabalho. O resultado desse quadro é que o Brasil se coloca hoje na retaguarda do debate legislativo e protetivo que vem avançando no mundo, em especial na União Europeia, mas também em países como a China.
Apesar disso, um notável avanço em relação aos anos anteriores foi verificado na organização dos próprios trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos. Nos últimos anos, principalmente a partir de 2023 com a criação do Grupo de Trabalho sobre a regulação pelo governo federal, proliferou-se por todo país coletivos, associações e até sindicatos destas categorias. Nesse processo, surgiram também diversos coletivos de mulheres entregadoras, o que contraria o fato deste segmento ser masculinizado, evidenciando o quanto as condições de trabalho atingem de maneira particular e pior elas, sobretudo as jornadas extenuantes e o endividamento. Estes movimentos permitem uma melhor representação das categorias frente às empresas e aos governos locais e federal.
Convidamos a todas e todos a lerem o relatório do Fairwork-Brasil em sua versão de 2025 e a contribuírem com os debates sobre o trabalho em plataformas digitais no Brasil, apoiando iniciativas em busca de um trabalho decente. Em meio a poucos avanços e muitos retrocessos, o Fairwork está do lado dos trabalhadores na luta constante por melhores condições de trabalho.
Julice Salvagni é professora da Escola de Administração e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Ricardo Festi é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e pesquisador convidado do Institut de recherches interdisciplinar en sciences sociales (Irisso) da Université Paris Dauphine
Rodrigo Carelli é professor de Direito do Trabalho na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Procurador do Ministério Público do Trabalho
Maria Aparecida Bridi faz parte do programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná.