A greve, um crime no século XXI?

Fotografia: Reprodução/Twitter

A crise política e social desencadeada em Jujuy, Argentina, torna obrigatório um olhar sobre os direitos constitucionais, como foram alcançados e como procura-se suprimi-los agora.

Álvaro Ruiz

Fonte: El Destape
Tradução: Equipe DMT em Debate
Data original da publicação: 19/06/2023

Os fundamentos das democracias populares e a construção dos direitos sociais resultaram tanto das lutas dos trabalhadores, quanto de políticas elaboradas em consonância com as ações reivindicativas impulsionadas e realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores. A greve tem sido um instrumento fundamental e sua consagração universal como direito humano exige, hoje mais do que nunca, sua plena validade.

Rios de sangue e tinta correram

A história do Movimento Trabalhista está indissoluvelmente ligada à luta das trabalhadoras e trabalhadores junto aos seus sindicatos. Sem sua ação determinada, não teríamos uma Disciplina Jurídica Especial que conhecemos como Direito do Trabalho.

Tampouco teríamos constituições sociais como as forjadas no século XX, que foram erguidas após o marco inicial da Constituição do México em 1917, nem o reconhecimento como direitos humanos fundamentais aqueles consagrados individual e coletivamente no mundo do trabalho.

O papel do Estado tem sido relevante ao acompanhar essa corrente fundadora, sancionando leis que foram formando essa estrutura orgânica e funcional que culminou em um corpo normativo vasto e protetor para mitigar as assimetrias próprias do sistema de relações trabalhistas. Mas, por mais proativos que tenham sido os governos que levaram adiante essa tarefa, não se pode pensar que ali se encontre a origem do Direito Social, nem nas Igrejas nem em qualquer outra instituição, mas no povo trabalhador mobilizado e no sujeito social que o representa por excelência: o sindicato.

A oferta distributiva entre Trabalho e Capital, qualquer que seja o contexto em que se registre, importa um conflito subjacente e inevitável que pode ocorrer através de canais de negociação não isentos de asperezas ou emergir bruscamente como um conflito aberto e no qual a greve é sua expressão por excelência.

Ninguém pode considerar seriamente que a classe empresarial cederá calmamente suas margens de lucro, por mais alta que seja a lucratividade obtida – a Argentina e o mundo inteiro hoje, além da pandemia nesse contexto, demonstram claramente isso -; e então, o que a classe trabalhadora obterá será apenas com base na força que reunirá e demonstrará na mesa de negociação, assim como nas ruas e fábricas, quando necessário.

As grandes bibliotecas com textos sobre Direito, Sociologia, Filosofia, Economia e uma literatura tanto variada quanto universal, denotam quanta tinta tem corrido ensaiando explicações e interpretações sobre a natureza, origem e formas de abordar o conflito do trabalho, sua apropriação e a dignidade que é exigida daqueles que só têm esse recurso para acessar bens vitais e se perceberem como pessoas.

Entretanto, são muito mais caudalosos os rios de sangue derramados na luta pelo reconhecimento dos direitos elementares: limitação da jornada de trabalho, salários suficientes, descansos e férias remuneradas, proibição do trabalho infantil, participação crescente na distribuição da riqueza que geram com seu trabalho diário, equidade de gênero e de oportunidades, formação de associações em defesa dos direitos obtidos e pela conquista de outros novos, exercício da negociação coletiva e de ações legítimas de autotutela.

O 1º de maio, comemoração celebrativa em todo o Ocidente que, como tal, é um feriado público – exceto nos Estados Unidos -, representa uma data por si mesma emblemática do sentido, razão e valor da greve nas disputas trabalhistas-patronais.

Também é significativo ao dar destaque aos custos em vidas, liberdades e perseguições arbitrárias enfrentadas  por aqueles que embarcam em ações para humanizar as condições de trabalho, para alcançar maiores níveis de equidade e por um progresso com justiça social.

No entanto, não é necessário remeter à Chicago de 1886, já que, infelizmente, temos em nosso país tantos outros exemplos de iniquidades semelhantes que vêm cimentando o duro caminho percorrido para a consagração dos direitos sociais e trabalhistas, nos quais a greve foi a principal ferramenta do Movimento Trabalhista.

Que fácil parece suprimir direitos neste século

A demonização dos protestos populares, em particular os promovidos por sindicatos e organizações sociais, recriada e aprofundada pela imprensa hegemônica, é o passo prévio à criminalização e o modo de esconder suas causas e de transformar direitos em crimes.

O notório caráter regressivo que as políticas neoliberais implicam vem se intensificando no mundo, ao ritmo sem precedentes de uma crescente desigualdade e que, como consequência lógica, requer o corte de direitos e a repressão de qualquer indício de resistência popular.

O Capital concentrado reclama “segurança jurídica” para seus negócios e uma Justiça a seu serviço exclusivo, “independente” de sua missão republicana, uma combinação que em países como o nosso pretende fechar um círculo vicioso perfeito que mina todas as instituições democráticas.

Necessidades- que por assim serem são direitos (ao trabalho e a um salário digno, a uma alimentação adequada, à educação, à saúde, à moradia),   não como dogma social inexorável, mas por consagração constitucional- que aparecem insatisfeitas e exigem atenção urgente, permaneceriam invisíveis sem ganhar as ruas e instalar ali reivindicações legítimas.

É claro que tais mobilizações são incômodas, provocam tensões e às vezes colidem com outros direitos ou liberdades que precisam ser devidamente harmonizados, de uma forma que seja proporcional ao devido respeito pelos valores democráticos fundamentais. 

Longe disso estavam as respostas dadas pelos governos de Salta e Jujuy a esse tipo de dilema, estabelecendo fechaduras virtuais para todas as expressões de protesto e abrindo caminho para a perseguição punitiva daqueles que se manifestam em demanda de direitos, bem como das organizações convocantes – com especial referência aos líderes sociais e sindicais.

Em Salta, na calada da noite, sem passar pelas Comissões envolvidas –  primeiro na Câmara dos Deputados e de imediato no Senado – foi sancionada uma lei que veda, na prática, o direito de manifestação, e que foi precedida por um Decreto (fevereiro de 2023) que estabeleceu um “Protocolo” para a atuação das forças de segurança que impuseram sérias restrições aos protestos de rua. A lei sancionada, que é ainda mais restritiva, ignorou um pronunciamento do Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial que, em maio passado, recomendou mudar e anular esse Protocolo.

Em Jujuy, por decreto do governador Morales,  avançou-se na criminalização dos protestos, justamente quando se espalharam as rebeliões populares e as mobilizações associativas que atraem milhares de pessoas as quais se voltam para as ruas para serem ouvidas, buscando respostas a necessidades imperativas e reivindicando direitos trabalhistas básicos ligados aos salários de fome no emprego público.

Com esse decreto, altera-se uma lei em matéria contravencional sobre a ocupação do espaço público, exigindo requisitos ridículos para mobilizações (definição de horários de início e fim de uma marcha de protesto, como também a especificação prévia do trajeto e possíveis locais de parada) e controles com um propósito claro de amedrontamento (identificação das pessoas ou organizações que participarão). Impõe multas pesadas (de até 8 milhões de pesos) aos infratores, o que inclui qualquer um que não cumpra esses requisitos ou não cumpra a ordem policial de dispersão. O infrator também estará sujeito à justiça penal, inclusive chegando a ser desqualificado por dois anos de ocupar cargos públicos, e poderá ser demitido “com justa causa” se for funcionário público.  

A inconstitucionalidade desses regulamentos, e até mesmo sua inconvencionalidade por violar as Convenções e Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos incorporados ao nosso sistema jurídico nacional, é ostensivo e dificilmente seriam – embora não impossível com um Tribunal dos milagres – validadas pela Justiça. Mas a “ajuricidade” (afastamento absoluto do Direito) é o que orienta tais atos de governo e o autoritarismo, com fins de efeito imediato, seu propósito mais significativo.

Sem o direito de greve, não há liberdade sindical

A autotutela das trabalhadoras e trabalhadores é condição necessária para uma efetiva cidadania laboral, bem como para uma verdadeira democracia social, que já deveria estar livre de qualquer objeção ou retrocessos conceituais que impeçam a participação e a livre expressão popular. A vigência plena da liberdade sindical, cuja principal manifestação se projeta em plano coletivo nos direitos de associação, de negociação e de greve, é reconhecida como a chave para o cofre de um sistema democrático de relações de trabalho que, sem negar o conflito, garante uma paz social razoável.

A associação e sua consagração, o sindicato, exibem uma história que reconhece etapas de proibição, tolerância, regulamentação e, por fim, a indispensável incorporação à vida política e social nas democracias modernas, integrando-se institucionalmente à sociedade política.

A greve, por outro lado, percorreu um caminho semelhante, mas mais acidentado e menos estável, registrando idas e vindas durante essa mesma jornada histórica. Com proibições, penalidades, regulamentos, tolerâncias, depois novas proibições, regulamentos e criminalizações – repetindo essa tendência diversas vezes, mas obtendo ao longo do tempo uma consolidação inevitável como um direito. Um direito humano fundamental, um direito constitucional e um direito consagrado no Direito Internacional em inúmeras Convenções e Tratados que, com a reforma de 1994, se tornou parte da Constituição Nacional argentina.

As mentiras que pairam sobre o direito de greve, na verdade, apontam mais longe na desconstrução do que o neoliberalismo propõe, com foco na liberdade sindical e no sindicalismo, que continuam a ser concebidos como o “fato amaldiçoado” do país sonhado para uns poucos com direitos.

Eles não passarão enquanto houver unidade

O Movimento Operário Argentino tem uma longa tradição de luta, que foi testada em inúmeras ocasiões e demonstrou uma enorme capacidade de reação, mesmo diante das ditaduras mais abjetas e criminosas.

A diversidade que existe no mundo associativo não tem sido um obstáculo para encontrar convergências básicas para o confronto com o poder concentrado e os governos que o respondem servilmente, como se manifestou nestes dias no repúdio conjunto que a CGT, a CTA dos Trabalhadores e a CTA Autônoma formularam com respeito às regulamentações sancionadas na Província de Jujuy.

Essa antecipação provincial do que pretende – e projeta – para a Nação toda a atual oposição  no caso de ganhar as eleições, também antecipou a resistência que se gerará à implementação em marcha de políticas antipopulares e antidemocráticas dessa natureza.

O destino eleitoral não está definido, sua resolução em favor de um ou outro modelo de país não é indiferente ao futuro que nos espera como sociedade, mas qualquer que seja o resultado das eleições nacionais, a unidade da classe trabalhadora será determinante e o resseguro indispensável para a defesa dos direitos sociais.

Álvaro Ruiz é advogado trabalhista com experiência na assessoria de sindicatos.

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