Em 8 de março de 2018, milhões de mulheres em toda a Espanha entraram em greve pelo Dia Internacional da Mulher. A paralisação nacional mostrou como podemos transformar nossas dificuldades pessoais em uma poderosa resistência coletiva.
Rebeca Martínez
Fonte: Jacobin
Tradução: DMT
Data original da publicação: 08/03/2019
Em 8 de março de 2018, milhões de mulheres em toda a Espanha foram às ruas para o Dia Internacional da Mulher. Piquetes formados ao amanhecer, desde escritórios a bancos e supermercados.
O tráfego foi cortado nas principais vias de comunicação, cartazes foram afixados em todos os lugares e, à noite, uma enxurrada de feministas encheu as ruas em várias cidades. Havia 500 mil manifestantes em Madri, números semelhantes em Barcelona e centenas de milhares de pessoas em cidades menores como Vigo e Sevilha.
Os milhões de pessoas assim mobilizadas estavam protestando contra a violência patriarcal generalizada em todas as partes da sociedade, das relações interpessoais à esfera do emprego remunerado (e do trabalho doméstico), da economia e da política. Essa foi uma das maiores mobilizações que o país havia visto nos últimos anos e, de fato, a greve do Dia da Mulher na Espanha teve ressonância internacional real.
O objetivo era fazer com que tudo parasse – não apenas empresas, mas também o trabalho de cuidados e consumo. Isso permitiu aos participantes dar uma expressão coletiva ao que de outro modo pareceria apenas problemas pessoais, levando o chamado das feministas para todos os cantos da Espanha. Isso também gerou outro efeito-chave ao libertar a luta das mulheres das conotações negativas que os conservadores lhes impuseram e ao dar-lhe a força invencível que se origina na vontade de fazer com que nossas reivindicações se tornem “senso comum”.
O trabalho para essa greve havia começado muito antes de 8 de março de 2018: já no Dia Internacional da Mulher de 2017, as feministas espanholas haviam respondido ao chamado lançado por suas camaradas argentinas, montando várias ações de greve parciais. Já naquela época a ideia da greve geral das mulheres se enraizou no imaginário coletivo e as mulheres logo começaram a trabalhar organizando a greve maciça do ano passado.
Neste 8 de março, as mulheres em todo o território espanhol estão novamente se unindo para uma greve semelhante à do ano passado. Tudo aponta para outro ponto alto histórico para a luta das mulheres. No entanto, o feminismo também enfrenta novos desafios em meio ao contexto político problemático mais amplo da Espanha.
As envolvidas devem pensar taticamente não apenas sobre como manter nossa força, mas também como tornar as demandas da greve das mulheres em realidade.
Capital contra a vida humana
No nível do discurso político, a greve de 8 de março de 2018 parecia ter vencido o argumento: forçou os partidos na arena parlamentar a responder. E, no entanto, se as demandas feministas se tornaram hegemônicas, sua substância real permaneceu em disputa. De fato, há contínuas tentativas da direita para se apropriar da luta. No domingo passado, a líder do partido de centro-direita Ciudadanos na Catalunha, Inés Arrimadas, invocou seu apoio a um “feminismo liberal” baseado na defesa da liberdade individual das mulheres. Ela não hesitou em apresentar-se como um exemplo da luta pela igualdade, simplesmente com base no fato de ela ser a única mulher candidata a presidente do governo catalão.
Esta foi uma bela expressão da ideia de feminismo dos liberais: se focou apenas nas cotas para a representação das mulheres nos parlamentos e nos conselhos de administração. Tal feminismo beneficia apenas 1% das mulheres, ignorando a grande maioria. Nada novo nisso. Mas as tentativas liberais de se apropriar da luta também estão buscando minar uma das realizações mais importantes de 8 de março de 2018: a saber, seu sucesso em promover um feminismo que representa os 99%, contra outro que representa apenas uma pequena minoria.
Nesse sentido, um dos aspectos mais interessantes da mobilização do ano passado foi a reapropriação da greve como instrumento de luta pelas demandas feministas. É claro que essa não foi a primeira vez que as mulheres usaram essa arma; elas fizeram isso ao longo da história do capitalismo. Mas o poder do 8 de março foi haver conseguido conectar o trabalho produtivo ao trabalho reprodutivo, exigindo uma ação grevista que abrangesse ambos os domínios.
Ao longo da história, greves centradas na esfera produtiva sempre tiveram uma estreita dependência do trabalho de cuidados, mesmo que essa relação tenha sido muitas vezes negligenciada. Greves organizadas em áreas de trabalho “feminizadas” sempre envolveram reividincações dirigidas à conciliação entre emprego e cuidado infantil, seja através da redução da jornada de trabalho ou da criação de mais creches.
E não somente isso. Historicamente, quando os trabalhadores do sexo masculino entram em greve, o trabalho realizado pelas mulheres – cozinhar, cuidar das crianças e idosos, limpar, dar apoio emocional aos homens e muitas outras coisas – tem sido decisivo para permitir que os homens continuem a luta. Mais uma vez vimos isso em outra greve recente na Espanha. Quando os trabalhadores da Coca-Cola en Lucha [uma luta de cinco anos contra o fechamento de uma fábrica da Coca-Cola] entraram em greve em 2014, suas famílias (esposas, irmãs, mães) criaram uma organização distinta chamada Las espartanas, precisamente para enfatizar a importância de uma comunidade mais ampla no apoio à ação grevista e o papel que essas mulheres desempenharam nela.
Alargando o foco da luta da produção para também incluir a reprodução e, de fato, abrindo novas possibilidades para a política prática, a mobilização de 8 de março de 2018 focou especificamente no domínio do trabalho de cuidados. Isso ajudou a reconceitualizar a própria noção da greve. As feministas envolvidas na mobilização não apenas enfatizaram mais uma vez a divisão sexual do trabalho na sociedade capitalista e a divisão desigual das tarefas domésticas, mas também destacaram a lógica neoliberal que traduz a mercantilização do domínio da produção para vários aspectos da esfera da atividade privada (incluindo o trabalho de cuidado, lazer, saúde, relações pessoais, etc.).
Ao fazer isso, ajudaram a superar a abordagem liberal que vê a igualdade como simplesmente uma questão de exigir que as mulheres tenham os mesmos salários e oportunidades de emprego que os homens já têm. Em vez disso, visou as raízes estruturais da opressão patriarcal. As feministas insistiram que a ação não visava apenas alcançar melhores condições de trabalho – muito menos se tais melhorias considerassem apenas uma parte limitada da população. Em vez disso, o objetivo era tornar visível a contradição entre capital e vida humana na sociedade atual e, de fato, mostrar que são as classes populares que mais assumem esse fardo.
O sinal mais palpável dessa contradição está na crise do trabalho de cuidados e na cadeia global de cuidados que tem sido interligada para cobrir essas tarefas. Na era neoliberal de hoje, no contexto de uma crise sistêmica e do fim do welfare state, a privatização emerge cada vez mais como a solução. Isso significa terceirizar esse trabalho para outras pessoas, seja colocando as mulheres que têm que fazer o trabalho doméstico depois de um dia no trabalho fora de casa, ou – para aquelas famílias com renda suficiente – empregando mulheres com menos recursos para fazê-lo, em muitos casos significando imigrantes.
Ao mesmo tempo, os protestos de 8 de março apontaram para a importância do trabalho de cuidados como um local para a construção de conflitos políticos, e a ligação entre essa questão e os caminhos para a libertação das mulheres. No dia da greve, os homens tinham que organizar centros de atendimento para cobrir as tarefas fundamentais que as mulheres não estavam fornecendo naquele dia. Inúmeros centros sociais e espaços locais das organizações políticas abriram suas portas para esse fim. Com isso, as feministas alcançaram seu objetivo de fazer com que o cuidado funcionasse como uma questão fundamentalmente política.
O manifesto acordado pelas organizadoras era de uma ambição sem precedentes: tratava-se não apenas de questões econômicas e de cuidados, mas também de outras questões como autonomia corporal, identidade e fronteiras. As feministas compreenderam que as mulheres não são uniformemente caracterizadas em termos de gênero, quando essa opressão é também mediada por outras estabelecidas por fatores como classe, raça, etnia e sexualidade. A questão era como montar uma agenda comum com base nessa diversidade. O capitalismo patriarcal e a violência masculina afetam todas as mulheres, mas em diferentes níveis. Justamente por essa razão a plataforma da greve incluía, entre suas principais exigências, a revogação da lei sobre cidadãos estrangeiros, o fechamento dos Centros de Internação de Estrangeiros (CIES) – prisões definitivas para os migrantes – e outras medidas contra a xenofobia, racismo e transfobia.
Um contexto político em mudança
Eventos como 8 de março de 2018 são frequentemente descritos em termos de “paralisação”: como se isso fosse uma interrupção súbita e inexplicável. No entanto, contra aqueles que retratam esses desenvolvimentos de forma isolada da realidade social geral, devemos estabelecer as greves feministas do ano passado dentro do contexto sociopolítico em que surgiram. Tais mobilizações devem ser entendidas em termos de como elas realmente surgiram: um processo lento de acumular forças, que ocorre em interação com outros fatores sociais.
O movimento feminista da Espanha tem uma rica memória que se estende por décadas e a greve é fruto de longos anos de trabalho de feministas. Para encontrar a fonte dessa mobilização, teríamos que voltar ao período da Transição que se seguiu ao fim da ditadura de Franco em 1975.
Emergindo contra o pano de fundo da agitação social que se desenvolveu na era pós-franquista, o movimento feminista se estabeleceu como um ator político distinto. Naquela época, sua agenda se concentrava em exigir a descriminalização do adultério, a liberdade sexual, os direitos ao aborto e ao divórcio, e a libertação das mulheres presas pelo franquismo. Durante as quatro décadas de ditadura, as mulheres foram tratadas como crianças eternas e o feminismo surgiu como um grito de protesto muito necessário, adequado às lutas da época. Manifestações maciças foram realizadas em Madri (em 1975), Barcelona (1976) e Granada (1979) e foram convocados protestos em massa que não exatamente puderam contar com o apoio da sociedade mais ampla. A manifestação de janeiro de 1976 na qual milhares de mulheres desciam pela Calle Goya atrás de uma faixa dizendo “Mulher, lute pela sua libertação, una-se!”, recebeu aplausos, mas também insultos e alguns abusos.
A partir desse ponto, o feminismo era uma constante na vida política espanhola, embora houvesse momentos de calmaria, bem como outros em que estava mais ligado à mobilização social. Depois do papel transgressor que assumira no período pós-franquista, nos anos 1980 e 1990 houve uma dissolução do aspecto conflituoso do feminismo espanhol. Com sucessivos governos do PSOE (centro-esquerda) e o estabelecimento de estudos de gênero nas universidades, houve uma cooptação de demandas feministas por estruturas parlamentares e universitárias, consolidadas no chamado feminismo “institucional” ou “social-democrata”.
Em 2009, no entanto, houve outro ponto de inflexão na agenda feminista. Isso ficou evidente na conferência realizada em Granada envolvendo cerca de três mil mulheres, o que proporcionou um espaço para a reflexão sobre questões de economia e identidade e, de fato, uma crítica trans e racializada das mulheres à identidade branca hegemônica. Este encontro foi rico não só em ideias, mas também em propostas práticas. Após anos de institucionalização, foi possível implantar um repertório de ações que poderiam ser usadas por um movimento autônomo, preparando o terreno para uma frutífera série de mobilizações.
Em fevereiro de 2014, milhares de mulheres se organizaram no Freedom Train, que se dirigiu à capital para protestar contra a Lei do Aborto de 2010, que impunha limites à liberdade de escolha das mulheres (por exemplo, obrigando as mulheres a fornecer uma justificativa médica formal). Este protesto conseguiu não apenas a revogação dessa lei, mas também a renúncia do ministro da Justiça conservador Alberto Ruiz Gallardón (de fato, esta foi a primeira vez na era democrática que um movimento social conseguiu forçar a renúncia de um ministro). O dia 7 de novembro de 2015 marcou mais um precedente, com manifestações em massa em várias cidades contra a violência masculina, repetidas no ano seguinte. Em 2017 houve várias ações em resposta ao caso “La Manada”, um estupro em grupo que ocorreu durante as festividades de San Fermines. Essas ações tornaram possível conectar protestos contra a violência sexual e masculina com uma denúncia do sistema de justiça espanhol patriarcal, que acusou os agressores de abuso sexual em vez de estupro.
Essa série de ações centradas no direito das mulheres de tomar decisões sobre nossos próprios corpos e de oposição à violência masculina, foi crucial para o desenvolvimento do feminismo espanhol.
Primeiro, permitiu que uma nova geração de jovens mulheres se juntasse à luta feminista. Em um momento de agitação social na Espanha contra o pano de fundo da profunda crise econômica e política que se consolidou em 2008 e a força do movimento anti-austeridade dos 15M, aqui muitas jovens tiveram uma primeira experiência de ativismo precisamente no movimento feminista. Esse foi também o terreno fértil necessário para o subsequente desenvolvimento do feminismo espanhol, ao se unir à primeira greve feminista convocada pelos argentinos em 2017, que se expandiu ainda mais em 8 de março do ano passado.
Os dias de greve de 2017 e 2018 já entraram na história como experiências fundamentais para o feminismo espanhol. Eles abriram um novo ciclo cujo caráter ainda deve ser concretizado, mas já está mostrando certos traços distintivos. Sem dúvida, entre os mais notáveis está o fato de que eles vincularam a violência masculina – um tema já presente em mobilizações anteriores e muito importante em um país que viu quase mil mulheres assassinadas desde 2013 – com outro terreno de luta enraizado na violência estrutural, econômica e institucional.
Outro dia 8 de março
Na construção do 8 de março de 2019, as feministas da Espanha estão preparando o que parece ser outro dia histórico. E elas não estarão sozinhas: para mulheres em países como o Chile, Bélgica, Alemanha e Portugal já anunciaram que este ano elas também vão atacar. Seu sucesso será medido nas mobilizações de massa em todo o território espanhol.
Mas sua estabilidade a longo prazo dependerá de sua capacidade de enfrentar certos desafios que surgem. Mas depois de duas mobilizações de massa, em um momento em que o panorama político espanhol está em fluxo, as feministas devem refletir sobriamente sobre suas táticas para o próximo período.
De fato, enfrentamos um contexto em que as forças de mudança -representadas principalmente por Podemos (partido de esquerda) – estão em segundo plano e a extrema direita está em ascensão. Quando as forças conservadoras distorcem o feminismo em uma noção liberal que pode ser facilmente tolerada pelo aparato estatal, o desafio do movimento provavelmente se ligará a um conflito social mais amplo que se estenda além das fronteiras desse estado, em um momento de neoliberalismo global. Ao mesmo tempo, a capacidade de organização exposta nessas grandes demonstrações também deve ser posta em prática em outros terrenos de luta com os quais mantém vínculos naturais, como os movimentos em torno da habitação, o ambientalismo ou a luta sindical em setores feminizados da economia.
É importante ressaltar que o feminismo deve organizar sua própria agenda – e uma baseada em demandas concretas capazes de fazer parte de uma estrutura geral. No entanto, a história nos mostrou claramente a capacidade das instituições capitalistas de cooptar a mais superficial das reivindicações e impor uma resolução a partir de cima. Portanto, a tarefa mais urgente do feminismo é provavelmente a de manter sua autonomia como uma força que aspira a uma transformação social radical. Para este fim, deve aguçar a contradição entre a lógica da acumulação capitalista e a manutenção da vida humana, e desafiar as instituições políticas e econômicas com a criação de nossas próprias entidades auto-organizadas.
Rebeca Martínez é ativista feminista e membro do ‘Anticapitalistas‘.