
Cássio da Silva Calvete
Para entender como ocorre a gestão do tempo de trabalho, nas suas três dimensões, nas plataformas digitais é necessário entender a gameficação¹. No “Game” da vida real as regras são definidas unicamente pelas plataformas, e são frequentemente alteradas de forma discricionária para o seu máximo favorecimento. A subjetividade do trabalhador é capturada pelo sistema algorítmico que simulando um jogo, tal qual um videogame, utiliza metas e prêmios para induzir os trabalhadores a intensificarem seu ritmo de trabalho, aumentarem o tempo de trabalho e trabalharem em dias e horários que a princípio eles não tem interesse. Chegando ao paradoxo da programação algorítmica exercer um poder elevado de controle sobre o trabalhador enquanto esse não tem a percepção de estar sendo controlado (LEME, 2020). Dessa forma a gestão do tempo de trabalho através da gameficação interfere nas suas três dimensões: extensão, intensidade e distribuição.
As estratégias para que os trabalhadores realizem jornadas extensas são as que mais se apoiam nas psicologias dos jogos. Estimular uma meta de tarefas para que o trabalhador ganhe um prêmio (um adicional de valor) ou exigir que os trabalhadores executem inicialmente as tarefas com menor remuneração para que gradualmente eles passem a receber a tarefas que remuneram melhor. Outro expediente que acompanha esses citados, é a oferta de novas tarefa quando a que está sendo executada se aproxima do fim e justamente em momentos que o trabalhador estaria deixando de trabalhar, induzindo o trabalhador a estender a sua jornada.
Conjuntamente com estas estratégias está a baixa remuneração, que as plataformas pagam, que obriga os trabalhadores a terem extensas jornadas para auferir ganhos que permitam uma vida minimamente digna. Lembrando que esses trabalhadores não auferem uma renda mensal fixa, toda sua remuneração é variável e, portanto, o montante percebido dependerá do número de tarefas que ele irá realizar. Ademais, a remuneração auferida não será totalmente destinada à sua sobrevivência, pois parte dela terá que obrigatoriamente ser destinada ao custeio, à aquisição e manutenção dos bens de capital, sejam computadores, celulares, softwares, mobiliários, energia elétrica, e nos casos mais dramáticos, de motoristas e entregadores, na manutenção dos veículos, seguros, IPVA, gasolina, pagamento de parcelas do financiamento ou aluguel do veículo.
Para uma visão de médio e longo prazo a remuneração auferida tem que dar conta também de propiciar umas férias restauradoras, criar um fundo para segurar acidentes de trabalho e problemas de saúde que o impeçam de exercer suas atividades e por fim, mas não menos importante, gerar recursos que permitam uma aposentadoria digna.
A extensão da tarefa também se coloca porque a remuneração é realizada única e exclusivamente pela execução mais restrita da tarefa ou mediante entrega do produto final. O pagamento não comtempla todo o tempo dedicado ao deslocamento para ir até o local da chamada, espera, recepção, troca de roupa, embarque e desembargue dos clientes, entrega das mercadorias, no caso dos motoristas e entregadores. Para os trabalhadores crowdworking a remuneração não contempla o tempo de procura das tarefas, prova de qualificação, treinamento e qualificação, intervalo para descanso e lanche, limpeza e organização do local de trabalho, orientação para execução da tarefa, planejamento da execução e do método e tempo para ligar os equipamentos. Em pesquisa da OIT realizada por Berg at. all (2018) os entrevistados crowdworking, relataram que cerca de um quarto (25,31%) do seu tempo de trabalho é destinado a atividades não remuneradas O pagamento só leva em consideração para o cálculo da remuneração o tempo de trabalho efetivamente incorporado a mercadoria ou serviço, ou seja, o pagamento apenas dos movimentos que diretamente incorporam valor, portanto remuneram o suprassumo do trabalho. Não é demais lembrar que as regras da extração da mais-valia desveladas por Marx continuam sendo válidas, mas agora não consideram toda a jornada de trabalho, mas apenas o suprassumo do tempo de trabalho.
No caso dos trabalhadores crowdworking existe ainda outro problema que é o fato de que na maioria das vezes o trabalho é realizado em sua própria residência. É verdade que existe um ganho de tempo para o trabalhador que é o seu não deslocamento até o local de trabalho e em alguns casos o conforto de trabalhar em casa. No entanto, não existem só vantagens, existem também muitos problemas derivados dessa situação. A invasão do trabalho ao local de moradia (lazer, bem-estar, sociabilidade, enfim, lar) traz uma série de problemas sociais e mesmo de saúde (KAPPEL e MERLO, 2020). Dificuldade de dormir, isolamento, depressão, a não desconexão, entre outros e em muitos casos aumento da jornada de trabalho, pois o trabalhador está sempre no seu local de trabalho.
A gameficação e muitas das estratégias que levam ao aumento das jornadas de trabalho também influenciam no aumento da intensidade do trabalho. A necessidade de realização de muitas tarefas, seja para fazer jus aos prêmios, seja para aumentar seus ganhos, induz ao aumento do ritmo. Em muitos casos o trabalhador/competidor que realizar mais tarefas receberá melhores atividades ou mesmo de forma direta, aquele que realizá-las mais rapidamente receberá novas, mais rapidamente. A velocidade da realização também influi na avaliação do cliente, quando mais rápido ele executar o serviço, melhor avaliado ele será e, portanto, novamente, prioridade para receber novos serviços. No caso de motoristas e entregadores a velocidade da realização da tarefa está diretamente associado a velocidade imprimida no veículo, aumentando assim os riscos de acidentes.
Outro expediente que eleva a intensidade do trabalho é a oferta de um novo serviço durante a realização de uma tarefa. Pois isso obriga o trabalhador a avaliar, planejar e aceitar ou não a execução de uma nova incumbência enquanto está em atividade.
A gestão das plataformas vai muito além das criticadas técnicas tayloristas de tempos e movimentos que diminuíram muito os tempos mortos dos trabalhadores individuais e das técnicas fordistas que diminuíram os tempos mortos dos trabalhadores coletivos. Através da gameficação e do pagamento por tarefas ela praticamente elimina a remuneração dos tempos mortos. Não é demais lembrar que a expressão “tempos mortos” faz referência apenas aos tempos que não são diretamente incorporados a peça ou a tarefa, mas que, entretanto, são imprescindíveis à produção.
A todas essas técnicas utilizadas para que o trabalhador estenda a sua jornada e, também, trabalhe de forma mais intensa soma-se, talvez a mais conhecida de todas, que é a tarifa dinâmica. Esse expediente é muito utilizado nos transportes de passageiros e de entregas. Ela influi de forma vigorosa na distribuição do tempo de trabalho induzindo o trabalhador a laborar em dias, horários ou locais que a princípio ele não teria interesse. A técnica consiste no aumento do valor da remuneração em dias, horários ou locais que a demanda é maior que a oferta de serviço. O aumento da tarifa induz o aumento da oferta de força de trabalho equilibrando dessa forma a demanda com a oferta. É claro, que na medida que afluem novas ofertas de força de trabalho o valor da remuneração paga diminui.
Desse modo as empresas plataformas garantem que os serviços sejam prestados em locais perigosos e em locais de pouca circulação ou de muita circulação. Igualmente induz o trabalhador a estar disponível em dias chuvosos, que o risco de acidente é maior, em feriados e finais de semana que ele gostaria de estar com a família e a noite e de madrugada que o trabalhador deveria estar dormindo para restaurar suas energias. Levando assim, muitos trabalhadores a laborarem os sete dias da semana e em jornadas bastante extensas. Pela perspectiva da plataforma ela consegue acessar trabalhadores vinte e quatro horas por dia nos sete dias da semana.
Apesar da referência a jogos (games – gameficação) ser bastante difundida e inclusive ser a expressão utilizada nesse texto, Dubal (2023) após entrevistas com trabalhadores da Amazon Mechanical Turk indica que a referência mais adequada seria a jogos de azar (gambling – gamblificação). Como é sabido nos jogos de azar a banca sempre ganha porque tem alguma vantagem prevista nas regras do jogo, pelo expertise e porque se vale da “lei dos grandes números”.
Notas
1. Aloisi, Gramano (2019); Bodie et all (2016); Leme (2020), Teachout (2023).
Bibliografia
ALOISI, A; GRAMANO, E. Artificial Intelligence is Watching You at Work: Digital Surveillance, Employee Monitoring, and Regulatory Issues in the EU Context. [2019] 41(1) Comparative Labor Law & Policy Journal 123.
BERGEN, C. BRESSLER, M. PROCTOR, T. On the Grid 24/7/365 and the Right to Disconnect. Employee Relations Law Journal 1 Vol. 45, No. 2, Autumn, 2019.
BODIE, M; CHERRY M. et al, ‘The law and policy of people analytics’. University of Colorado Law Review 962, 2016.
DUBAL, V. On algorithmic wage discrimination. Early Draft Paper, presented at the study group on artificial intelligence at the Bonavero Institute of Human Rights at Magdalen College, University of Oxford, 2023.
KAPPEL, M; MERLO, A. A desestruturação do viver-junto no trabalho e o aparecimento de comportamento suicida: uma reflexão sobre o teletrabalho. In: CALVETE, C e HORN, C.H. A quarta revolução industrial e a reforma trabalhista: impactos nas relações de trabalho no Brasil: Porto Alegre: Cirkula, 2020.
LEME A.C. Neuromarketing e sedução dos trabalhadores: o caso da Uber. In: CARELLI, R. CAVALCANTI, T. FONSECA, V. Futuro do Trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: EDMPU, 2020.
TEACHOUT, Z. Algorithmic Personalized Wages. POLITICS AND SOCIETY. Eletronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4393843. Forthcoming(2023).
Cássio da Silva Calvete é Professor associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia Social e do Trabalho pela UNICAMP e com pós-doutorado pela Universidade de Oxford.