“Estamos diante de um brutal processo acelerado de erosão do trabalho regulado, com acentuada precarização de todas as suas condições”. Esta é a conclusão das pesquisas realizadas pelo sociólogo Ricardo Festi sobre como as plataformas digitais têm modificado o trabalho de determinadas categorias, como motoristas e entregadores de aplicativos e qual é o papel da sociologia do trabalho na compreensão desse processo. “No Distrito Federal – DF, diferente dos dados nacionais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD Contínua, há uma porcentagem alta de entregadores com ensino superior incompleto e completo (41% da amostra), refletindo a falta de oportunidades de emprego em uma região metropolitana com altíssimo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH e, ao mesmo tempo, com um dos maiores índices de desigualdade social do país”, resume na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ele, as pesquisas sociológicas mostram que “o contingente que compõe hoje os/as trabalhadores/as de aplicativos é de pessoas instruídas e que tinham, no passado recente, carteira assinada. Dentre estes celetistas, uma parte significativa era de motofretistas que foram obrigados pelos estabelecimentos ou convencidos pelos aplicativos a migrarem para as plataformas. Porém, com o tempo, eles viram as suas rendas e condições de trabalho se deteriorarem, dando início à insatisfação generalizada”. Apesar de pesquisas indicarem que os trabalhadores de plataformas cumprem altas jornadas e não recebem um salário adequado, Festi frisa que “não há como estabelecer um padrão entre jornada/renda na categoria, isto é, não se pode encontrar um valor médio comum pago aos trabalhadores deste segmento, nem mesmo uma relação entre quantidade de horas trabalhadas com o valor da renda”.
Enquanto alguns países do mundo discutem a redução da jornada de trabalho e rotinas concentradas em quatro dias da semana, a expectativa em relação à demanda, menciona, é que ocorra exatamente o contrário. “E por qual razão? Porque a tecnologia não determina tudo. Ainda que a automação tenha avançado nas últimas décadas, as jornadas de trabalho voltaram a aumentar em quantidades semelhantes às do século XIX. No capitalismo, pode-se ter máquinas automatizadas e com Inteligência Artificial capazes de substituir o ser humano na maioria das funções, mas o cálculo que prevalecerá será sempre o do lucro e da acumulação de capital. Nesse sentido, o maquinário é incorporado nas atividades econômicas com o objetivo de intensificar a extração de mais valor de cada trabalhador. Não importa se nesse processo haverá precarização do trabalho e um contingente enorme de pessoas que serão marginalizadas socialmente e jogadas à miséria. O que prevalece é a apropriação privada da riqueza produzida socialmente. Portanto, discursos como os de Bezos e Musk são apenas performáticos, servindo para falsear a função da tecnologia”.
Ricardo Festi é graduado, mestre e doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas – Unicamp. É professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília – UnB, onde coordena o Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social. É diretor da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet/2021-23).
Confira a entrevista.
IHU – Quais são os desafios da sociologia do trabalho neste momento em que o mundo do trabalho está em transição ou transformação por conta das mudanças tecnológicas?
Ricardo Festi – A sociologia do trabalho é uma daquelas disciplinas que se renova constantemente. Cada época de nossa história recente trouxe novos desafios para a sociologia. A atual fase de transformação do mundo do trabalho, impulsionada centralmente por novas tecnologias de informação e comunicação aplicadas na administração e no maquinário, como são os casos da automação e da digitalização do trabalho, tem gestado uma nova era de relações sociais. No caso específico do mundo do trabalho, novos léxicos foram recentemente incorporados, como teletrabalho, indústria 4.0, internet 5G, Big Data, gamificação, dataficação, plataformização, uberização, entre outros.
Desvendar a forma de ser das tecnologias
O grande desafio das ciências sociais, independente da época e da área de estudo, é conseguir separar a aparência da essência nesses processos. Isso não é fácil, pois toda transformação no mundo do trabalho – impulsionada por um movimento de renovação do aparato tecnológico – vem acompanhada por um reforço no fetichismo tecnológico. Portanto, o primeiro desafio de todo sociólogo do trabalho é desvendar a própria forma de ser das tecnologias que estão sendo aplicadas no mundo do trabalho.
Para aqueles que se filiam a uma sociologia crítica do trabalho, como é o meu caso, tem-se claro que a tecnologia na sociedade capitalista está, em última instância, a serviço de aumentar a capacidade de exploração do capital sobre o trabalho. Eu sublinho a expressão “em última instância”, pois as tecnologias também são objeto de disputas políticas em cada época. Esta questão é importante para que não reforcemos uma perspectiva que nos leve a um determinismo tecnológico, isto é, de considerar que a tecnologia é que molda a sociedade, enquanto na verdade as tecnologias refletem as correlações das forças políticas de cada época.
Como vivemos na fase de crise estrutural do capital, as tecnologias possuem uma razão instrumental destrutiva do ponto de vista da sua relação com o ser humano. Assim, é um desafio da sociologia do trabalho demonstrar as relações entre as novas tecnologias e a acentuação do processo de erosão do trabalho formal fordista, aquele que se configurou como padrão no século XX com jornadas de trabalho de 8 horas semanais, cinco ou seis dias por semana, regidos por direitos trabalhistas, estabilidade etc. Essas mudanças têm borrado as fronteiras tradicionais que antes delimitavam o trabalho do lazer, o escritório do lar, a indústria do serviço e da agricultura, entre outros.
Sobre quais aspectos específicos a sociologia do trabalho poderia se debruçar para compreender as mudanças em curso e, de outro lado, propor discussões sobre melhores condições de trabalho?
Esta pergunta nos conduz a pensar uma agenda de pesquisa para a sociologia do trabalho. Aqui vale a ressalva de que a complexidade do mundo do trabalho impõe estudá-lo de forma interdisciplinar. Este é um grande desafio para qualquer ciência, pois nas últimas décadas as disciplinas se dividiram em áreas cada vez mais especializadas. Se, por um lado, esse processo permitiu a formação de especialistas sobre diversos assuntos particulares, por outro lado acabou dificultando a compreensão da totalidade social. Assim, acho que a sociologia do trabalho deveria retomar um forte diálogo com o direito, a economia, a ergonomia, a psicodinâmica e a psicologia, a antropologia, a medicina, entre outros campos.
Após esta primeira observação, considero fundamental que as disciplinas que se colocam a estudar o mundo do trabalho se debrucem sobre o fenômeno da plataformização e uberização, o trabalho remoto e/ou o teletrabalho, as novas formas de luta, resistência, alienação e consentimento dos/as trabalhadores/as, a relação entre trabalho e desigualdade social tendo em vista as intersecções entre classe, gênero, sexualidade, raça/etnia e geração, para citar apenas alguns eixos-temáticos latentes de nossa época. Em particular, diante desses novos desafios, acho importante atestar a atualidade da teoria do valor de Marx.
O que as suas pesquisas sobre motoristas e entregadores de aplicativos no Distrito Federal mostram e indicam sobre as novas formas de ser do trabalho e dos trabalhadores das plataformas digitais?
Em Brasília, o nosso grupo de pesquisa impulsionou dois projetos desde o início de 2020. Um deles foi intitulado “O mundo do trabalho na Era Digital: plataformas digitais” e é uma espécie de projeto guarda-chuva. Já o outro projeto, ingressamos em meados de 2020 junto com o professor Roberto Véras, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, numa parceria com o Instituto Observatório Social, a Central Única dos Trabalhadores – CUT e a Organização Internacional do Trabalho – OIT. Este deu origem ao relatório “Condições de trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras e trabalhadores do setor de entrega por aplicativo em Brasília e Recife”. Essas pesquisas foram conduzidas por meio de entrevistas qualitativas com entregadores/as e lideranças políticas, com aplicação de questionários, observação participante nas manifestações de rua, além de um estudo aprofundada da bibliografia nacional e estrangeira. No entanto, pela importância que tiveram os Breques dos APPs, os/as entregadores/as de aplicativos se tornaram a nossa principal prioridade nesta primeira fase de estudos.
Erosão do trabalho regulado
O que pudemos concluir até agora é que estamos diante de um brutal processo acelerado de erosão do trabalho regulado, com acentuada precarização de todas as suas condições. O segundo projeto, por exemplo, tomou como referência as categorias formuladas pela OIT sobre trabalho decente e descobrimos que, em todos os aspectos do trabalho de entregadores/as em que este conceito é aplicado, como saúde, jornada, renda, riscos etc., as empresas não cumprem ou não garantem as condições mínimas para que se possa assegurar um trabalho decente.
Além disso, também pudemos ter uma visão mais precisa desse setor. Os entregadores, por exemplo, são uma categoria majoritariamente masculina e de não brancos (71%, segundo nossa amostra). No Distrito Federal – DF, diferente dos dados nacionais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD Contínua, há uma porcentagem alta de entregadores com ensino superior incompleto e completo (41% da amostra), refletindo a falta de oportunidades de emprego em uma região metropolitana com altíssimo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH e, ao mesmo tempo, com um dos maiores índices de desigualdade social do país.
Então, parte do contingente que compõe hoje os/as trabalhadores/as de aplicativos é de pessoas instruídas e que tinham, no passado recente, carteira assinada. Dentre estes celetistas, uma parte significativa era de motofretistas que foram obrigados pelos estabelecimentos ou convencidos pelos aplicativos a migrarem para as plataformas. Porém, com o tempo, eles viram as suas rendas e condições de trabalho se deteriorarem, dando início à insatisfação generalizada.
Renda e jornada de trabalho dos entregadores
No entanto, acho que o mais importante que a pesquisa evidenciou foram os dados relativos à renda e à jornada de trabalho dos entregadores. A conclusão é que não há como estabelecer um padrão entre jornada/renda na categoria, isto é, não se pode encontrar um valor médio comum pago aos trabalhadores deste segmento, nem mesmo uma relação entre quantidade de horas trabalhadas com o valor da renda. Tivemos casos de entrevistados que trabalhavam mais de 14 horas por dia, sete dias por semana, que ganhavam menos do que alguns que trabalhavam 8 horas por dia, seis dias por semana. Qual a lógica disso? Na perspectiva do trabalhador, é irracional. Mas para as empresas é uma lógica calculada e que visa camuflar os padrões da gestão algorítmica. Então, temos uma atividade que se apresenta para os trabalhadores como flexível, mas que para o capital é rígida e capaz de controlar todo o processo como nenhum outro método ou tecnologia conseguiram antes. Assim, essas diferenças de renda se explicam por meio da gamificação do trabalho, isto é, pelo ranqueamento dos entregadores com critérios não muito claros, o que faz com que alguns recebam mais entregas que outros e, consequentemente, um rendimento maior. A chave do sistema está na sua capacidade de instrumentalizar as subjetividades dos/as entregadores/as e seus tempos de trabalho, fazendo-os/as se engajarem nas atividades e ficando disponíveis por horas aos aplicativos sem que necessariamente recebam por isso.
Além dos aspectos negativos que os pesquisadores costumam acentuar sobre os impactos da reforma tecnológica no mundo trabalho, é possível perceber aspectos positivos para o próprio trabalhador?
Podemos até encontrar alguns aspectos positivos nesse processo de transformação tecnológica. Por exemplo, em geral, a automação tende a livrar o ser humano dos trabalhos mais penosos e desgastantes. A própria plataformização de algumas atividades abre muitas oportunidades de reconfigurar a atual cultura do trabalho e de até mesmo suprimir a necessidade de um local fixo de trabalho, o que teria impactos positivos sobre a mobilidade urbana e permitiria que as pessoas economizassem tempo no deslocamento de suas casas às empresas. No entanto, é sempre importante lembrar que esse processo ocorre num contexto de capitalismo neoliberal e, por conta disso, a maioria das inovações tecnológicas carregam uma lógica destrutiva ao trabalho e ao ser humano. A tendência é que todas as atividades, mesmo o lazer ou o descanso com a família, sejam mercantilizadas e sejam instrumentalizadas para alguma forma de produção de valor para o capital.
As plataformas digitais mais conhecidas são aquelas relativas à entrega. Que outras plataformas digitais estão em expansão no país?
Uma questão importante sobre as plataformas digitais é que elas hoje estão concentradas em alguns ramos da economia, pois é neles que as empresas encontraram, por diversos motivos, oportunidades para se desenvolver e testar suas tecnologias. Elas iniciaram as suas atuações pelas margens, subordinando categorias menos protegidas e com menor capacidade de resistência. Atuam no limiar das regras jurídicas e infringindo leis locais. Seguindo a lógica neoliberal, elas pressionam negativamente os sistemas de proteção social até que eles entrem em colapso e novas leis sejam aprovadas, legitimando e legalizando as práticas precárias de trabalho. Ao fazer isso, abrem-se brechas para que novos setores da economia, mais estáveis e com melhor poder de organização sindical, sejam atacados pelas plataformas digitais.
Assim, estamos assistindo a uma primeira fase da plataformização do trabalho, em que um conjunto de empresas estão se enriquecendo e monopolizando determinados setores para, logo em seguida, passar a expandir suas atividades para outros. Portanto, é fundamental compreender que as plataformas digitais têm uma grande capacidade de se ampliar para o conjunto das atividades econômicas. Podemos já apontar como setores em expansão aqueles vinculados ao microtrabalho ou as microtarefas, as fazendas de cliques, e os de care e limpeza. Também já existem plataformas buscando ingressar em categorias mais estáveis como médicos, advogados e professores. Se não houver uma limitação por meio da regulação trabalhista, teremos uma rápida expansão da plataformização do trabalho nos próximos anos e, consequentemente, de piora das condições de emprego da população brasileira.
Em artigo recente, o senhor comentou que, a partir da quarta revolução industrial, “ora se apresenta um mundo distópico — com máquinas inteligentes tomando o lugar do ser humano e subjugando-o —, ora um mundo da utopia da emancipação do trabalho”. Há como fugir dessa dualidade?
Com esta frase, quis problematizar o fato de que historicamente, na sociedade moderna, a nossa relação com as tecnologias cria essas duas percepções, ora da utopia emancipatória, ora da subjugação total do ser humano. De fato, nesse dualismo há um determinismo tecnológico. Se prestarmos atenção aos discursos de CEOs de megaempresas ligadas às tecnologias, como são os casos de Jeff Bezos, da Amazon, ou Elon Musk, da Tesla/SpaceX, eles nos prometem um mundo de maravilhas hipermodernas. Em meados do século passado, a esquerda e os progressistas também se encantavam com as inovações tecnologias e viam no desenvolvimento das forças produtivas o caminhar para uma sociedade em que o trabalho não seria mais central em nossas vidas. Esta visão fez parte da base política da social-democracia do mundo rico ocidental. E existia uma lógica em pensar assim, pois se olharmos, por exemplo, a Europa e os EUA dos anos 1950, a automação industrial estava acelerando a produtividade do trabalho e a jornada tinha caído de 16h para 8h diárias em menos de um século. Então, era natural pensar que em poucos anos a jornada de trabalho poderia chegar a 4h diárias, por apenas quatro dias por semana.
Hoje sabemos que ocorreu exatamente o contrário! E por qual razão? Porque a tecnologia não determina tudo. Ainda que a automação tenha avançado nas últimas décadas, as jornadas de trabalho voltaram a aumentar em quantidades semelhantes às do século XIX. No capitalismo, pode-se ter máquinas automatizadas e com Inteligência Artificial capazes de substituir o ser humano na maioria das funções, mas o cálculo que prevalecerá será sempre o do lucro e da acumulação de capital. Nesse sentido, o maquinário é incorporado nas atividades econômicas com o objetivo de intensificar a extração de mais valor de cada trabalhador. Não importa se nesse processo haverá precarização do trabalho e um contingente enorme de pessoas que serão marginalizadas socialmente e jogadas à miséria. O que prevalece é a apropriação privada da riqueza produzida socialmente. Portanto, discursos como os de Bezos e Musk são apenas performáticos, servindo para falsear a função da tecnologia.
No entanto, ainda que seja difícil encontrar, no atual estágio das tecnologias, aspectos positivos – e eu acho que a tecnologia assumiu, desde os anos 1970, um caráter destrutivo do ponto de vista do trabalho, do ser humano e da natureza -, devemos pensar que o trabalho social e coletivo acumulado, que possibilita construir os atuais aparatos tecnológicos, podem dar origem a outras formas que atendam às necessidades da humanidade e não as do capital. Por isso, repito, a questão é social e política e não tecnológica.
Alguns teóricos mencionam a necessidade de pensarmos alternativas e imaginarmos “novos mundos possíveis”, mundos diferentes dos que vivemos hoje. Em relação ao trabalho por plataforma, que outros mundos são possíveis?
Acho importante diferenciar dois aspectos deste processo de plataformização do trabalho. O primeiro é o quanto as plataformas digitais representam hoje o que se convencionou chamar de uberização do trabalho, isto é, as formas mais acentuadas de precarização do trabalho com a destruição da relação de emprego, a ausência de leis protetivas, a extensão da jornada de trabalho, a redução dos salários e a intermitência do trabalho. Esses aspectos estão relacionados com a fase atual do capitalismo. Mas as plataformas digitais são tecnologias que possibilitam mediar relações sociais e relações de trabalho. E estas mediações poderiam ocorrer de uma forma construtiva e não precária. Vejamos o exemplo do teletrabalho, isto é, do trabalho realizado remotamente por meio de tecnologias da informação, dentre elas as plataformas digitais. A pandemia acelerou um processo que ocorria lentamente e com muitas resistências, que é o trabalho remoto (em domicílio ou em outros lugares, como um café), e o impacto disso sobre o mundo do trabalho ainda não foi totalmente assimilado. Mas já é possível saber que terá consequências sobre as políticas públicas, a mobilidade urbana, a arquitetura das casas, os escritórios e os prédios comerciais etc.
No entanto, ainda durante a pandemia, a visão idílica de trabalhar em sua própria casa deu lugar a uma perspectiva cética e até pessimista. Vale a leitura do relatório recentemente publicado por Maria Aparecida Bridi e Bárbara Vallejos, “Estudo sobre a regulação do teletrabalho no Brasil”. Aqueles que puderam realizar o isolamento social e o home office tiveram que arcar com as despesas que antes eram da empresa (energia, internet, computador); as mulheres foram muito mais demandadas por serviços doméstico, misturando-se a esfera doméstica com a esfera do trabalho; a falta de sociabilidade entre as pessoas de uma mesma empresa (em reuniões presenciais ou naquele cafezinho no meio do expediente) se mostrou prejudicial ao rendimento e a saúde mental das pessoas. Então, além da necessidade de melhor regulação trabalhista das atividades remotas, é necessária uma reflexão dos seus benefícios a curto e longo prazo.
Esta forma de trabalho pode ser muito interessante quando a sociedade está no rumo de diminuição das jornadas médias de trabalho semanais. No entanto, como estamos numa tendência ao contrário, de aumento das jornadas, o trabalho remoto acaba ofuscando os limites entre o tempo do trabalho e do não trabalho. Eu acho que as plataformas digitais vieram para ficar. A questão é se elas servirão para aumentar o controle de algumas empresas sobre a população e o trabalho ou se estarão a serviço de atender as necessidades de bem-estar dessa população.
Que tipo de reforma trabalhista poderia ser implementada tendo em vista as mudanças geradas no mundo do trabalho e na vida dos trabalhadores por conta das mudanças tecnológicas, a fim de melhorar a situação destes?
Esta é uma questão fundamental! Em primeiro lugar, precisamos de uma reforma trabalhista que retome os direitos sociais que foram destruídos com a contrarreforma trabalhista neoliberal de Temer, em 2017, e as anteriores ocorridas neste início de século XXI. Precisamos reverter esta lógica de erosão do trabalho formal. Acho que o Brasil, após derrotar o governo protofascista de Jair Bolsonaro, deveria caminhar para uma proposta no sentido da Espanha. Isso poderia ocorrer junto com um amplo debate nacional sobre os sentidos do trabalho e do desenvolvimento nacional. Que tipo de país queremos?
Passamos as últimas décadas ouvindo os discursos falaciosos neoliberais de que a retirada de direitos trabalhistas seria fundamental para retomar o crescimento econômico, diminuir o desemprego e criar postos de trabalho qualificados. No entanto, o que vimos depois dessas medidas serem aprovadas foi um crescimento econômico pífio, senão negativo, sem cair as taxas de desemprego e com o aumento de empregos precários. Não devemos nos esquecer que a maioria da população brasileira sobrevive na informalidade do trabalho. O resultado disso é o aumento da desigualdade social e de renda, sobretudo o aumento da pobreza e da miséria. Então, em resumo, acho que precisamos reverter as contrarreformas trabalhistas e sindicais das últimas décadas e abrir um grande debate no Brasil sobre a constituição de um novo código do trabalho que dê mais direitos, mais segurança, mais estabilidade, trabalho digno e renda justa à população.
Quais são os desafios da esquerda frente à nova revolução tecnológica em curso? Como a esquerda tem se inserido nesse debate no país e no mundo?
A esquerda não é homogênea, então aqui dependerá de qual tipo de projeto esta ou aquela esquerda defende. Por muito tempo, por exemplo, a esquerda comunista vinculada aos Partidos Comunistas – PCs e à social-democracia tinham uma perspectiva produtivista e isso se refletia em sua percepção sobre a tecnologia. Apesar das diferenças entre esses dois movimentos, eles se aproximavam na ideia de que a industrialização levaria a uma gradual melhora do capitalismo e, combinada a uma política redistributiva, de melhora das condições de vida da população e de consolidação da democracia. Essa foi uma visão que predominou o século XX.
No entanto, a partir dos anos 1970, a tecnologia foi se mostrando cada vez mais permeada por uma razão instrumental destrutiva. Os ecologistas, principalmente aqueles vinculados aos movimentos anticapitalistas, criticaram duramente a visão produtivista daquelas esquerdas. E este é um desafio que permanece para todos: como desenvolver economicamente um país, melhorar as condições de vida e de renda, sem entrar na lógica de uma industrialização desenfreada que produz destruição da natureza?
No caso do Brasil, vejo um debate sério em organizações políticas que compõem o PSOL, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e em outros pequenos grupos. Mas o maior partido reformista e de espectro de esquerda no país, o PT, apesar de agregar importantes setores que estão debatendo a nova revolução tecnológica em curso, infelizmente assume uma posição conservadora e muito alinhada ao capital industrial, financeiro e do agronegócio. Isso ocorre não por uma incompreensão da direção do partido frente ao caráter destrutivo do atual estágio da tecnologia, mas sobretudo por conta de sua política de alianças com setores conservadores e reacionários para governar. Aqui está faltando, como tem apontado o professor Ricardo Antunes, que a esquerda mostre um projeto alternativo de sociedade, um novo modo de vida, e não apenas uma saída eleitoral.
No Brasil, que assuntos são urgentes de serem debatidos quando se trata das transformações geradas no mundo do trabalho pelas tecnologias? Que questões sobre esse tema deveriam estar presentes no debate eleitoral?
Nas eleições de 2022, o grande desafio é derrotar Bolsonaro e apresentar um projeto alternativo de sociedade. Se este governo se reeleger, as condições de vida e de trabalho do conjunto da população irão piorar ainda mais e veremos ser enterrado o pacto da Nova República de 1988. No entanto, não basta ganhar a qualquer custo, sob qualquer aliança. O cenário é difícil, pois estamos lidando com forças reacionárias com alta capacidade de manipulação e dispostas a romper o sistema democrático liberal para se manter no poder. Porém, não estamos no cenário de 2018, em que foi muito difícil apresentar publicamente um projeto político de esquerda. Assim, acho fundamental que as candidaturas debatam e demonstrem a catástrofe que têm sido as políticas neoliberais no Brasil, não apenas no âmbito do trabalho, mas também na saúde, educação, moradia etc.
É necessário defender pacientemente a construção de um mundo não capitalista, em que o ser humano seja colocado em primeiro lugar. Ou seja, é importante uma esquerda que não tenha medo de falar novamente em revolução social. No que tange ao debate sobre o trabalho, precisaremos questionar o projeto de uberização, as consequências das contrarreformas trabalhistas, assim como as consequências da pandemia da Covid-19 sobre o trabalho. E é importante que esses debates sejam atravessados pela luta contra o machismo, a homofobia, o racismo e todas as formas de discriminação e opressão no trabalho e fora dele. A pauta é muito longa, mas acho que este é um bom ponto de partida para uma plataforma de esquerda nas eleições.
Fonte: IHU
Texto: Patrícia Fachin
Data original da publicação: 03/02/2022