A erosão da democracia em nome do tecnofascismo

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As tendências tecnocrática e etnocrática, aparentemente antitéticas, combinam-se perfeitamente em um inquietante processo. Para indicar essa suspensão técnica da democracia, que se combina com um relançamento da soberania de viés étnico, poderíamos falar em tecnofascismo.

Donatella Di Cesare

Fonte: Instituto Humanitas
Tradução: Luisa Rabolini
Data original da publicação: 20/10/2025

A erosão da democracia não é mais notícia, e nenhuma máscara externa poderia agora esconder, nem mesmo meramente disfarçar, o processo em curso há tempo. Alguns aludem a um último ato, como se a despedida fosse inevitável, e outros, em vez disso, defendem a necessidade de fortalecer a estrutura, a fundação interna (regras e procedimentos) e a armadura externa (equipamentos militares).

Mas a democracia não é um regime; não se baseia em um pilar estável. Justamente sua flexibilidade e abertura são, em vez disso, baluartes contra qualquer violência que, tanto interna quanto externamente, possa esvaziá-la e privá-la de poder. (…)

Como ocorre a erosão da democracia? Há duas tendências distintas, porém complementares, que podem ser observadas com clareza já há algum tempo e hoje estão se manifestando com mais clareza. A primeira é a tendência tecnocrática, que se traduz na completa subordinação à economia de uma política reduzida a uma anônima governança administrativa, que faz o jogo de grandes empresas, da indústria militar, dos bancos e do capital financeiro. A segunda é a tendência etnocrática, que se manifesta no exercício familiar do poder e numa gestão dos povos entendidos como hiperfamílias, comunidades naturais fechadas baseadas no nascimento e na descendência, tornadas firmes e estáveis por laços de sangue e solo, capazes de serem abrigos adequados em um mundo cada vez mais caótico e inóspito. Essas duas tendências aparentemente antitéticas estão se unindo em um híbrido sem precedentes, uma nova forma de totalitarismo que simultaneamente apaga a política e decompõe a democracia. (…)

Narrada como o primeiro estágio do novo choque de civilizações, a guerra russo-ucraniana, que eclodiu em 24 de fevereiro de 2022, representa um ponto de virada de época. As hostilidades no Oriente Médio, que estouraram em 7 de outubro de 2023, e culminaram no conflito entre Israel e Irã, confirmam a entrada em uma época nova e desconhecida. Não podem, portanto, ser consideradas meros episódios da “terceira guerra mundial aos pedaços”, devido ao seu viés políticos: o aparecimento, cem anos após o advento do fascismo, de uma forma de totalitarismo que, diferentemente daquele do século XX, parece mais insidioso e sorrateiro, mais disperso e elusivo. Resultados não de um choque de civilizações, mas de um encontro de utilidades, os conflitos atuais são aquele detonador capaz de lançar luz sobre nexos explosivos.

A aliança entre CEO das grandes empresas bélicas, representantes das hierarquias militares e classe política é apenas o aspecto mais sorrateiro de um capitalismo que envolve, consome e devasta democracias impelidas, para garantir seu próprio bem-estar e lucro extra, a se tornarem as principais acionistas no mercado da guerra. Quase como os soberanos absolutos do passado, mas com uma concentração de meios técnicos e financeiros, bem como armas nucleares devastadoras, as elites ocidentais decidem as guerras sem pedir de nenhuma forma o consenso de seus cidadãos, aliás, na verdade, atropelando suas aspirações de paz.

Nas últimas décadas, a globalização neoliberal e a financeirização do capital deslocalizaram os centros de poder real, removendo-os do alcance dos cidadãos e das comunidades historicamente constituídas. Assim, foram se formando redes transnacionais cada vez mais sofisticadas e fluidas, que comandam sem qualquer necessidade de aparatos estatais e institucionais. Essa, de fato, é a causa do declínio há muito anunciado e agora irreversível do Estado nacional. (…) As tendências tecnocrática e etnocrática, aparentemente antitéticas, combinam-se perfeitamente em um inquietante processo. Para indicar essa suspensão técnica da democracia, que se combina com um relançamento da soberania de viés étnico, poderíamos falar em tecnofascismo.

 

Donatella Di Cesare é filósofa, ensaísta e colunista italiana que leciona Filosofia Teorética na Universidade “La Sapienza”, de Roma


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