Em tempos de orçamento secreto, de emendas pix, entre outras manobras e práticas fiscais pouco republicanas, resta-nos avaliar o trabalho de reconstrução institucional pela frente.
Rodrigo Medeiros
Fonte: GGN
Data original da publicação: 29/07/2022
Em artigo recentemente publicado no blog do Fundo Monetário Internacional (FMI), no dia 22 de julho, Pierre-Olivier Gourinchas, diretor de Pesquisa da instituição, trouxe informações relevantes sobre a economia mundial. As três economias mais relevantes do mundo estão desacelerando e tal fato possui repercussões mundiais em um contexto no qual a inflação é a grande fonte de preocupação.
Como todos sabemos, a pandemia de Covid-19 não terminou e há consequências econômicas difusas a partir da invasão da Ucrânia pela Rússia. De acordo com Gourinchas, “uma inflação mais alta do que o previsto, sobretudo nos Estados Unidos e nas principais economias europeias, está provocando um aperto das condições financeiras mundiais”. Ademais, a economia chinesa vem desacelerando para além do previsto, em meio a surtos de Covid-19 e lockdowns.
A economia mundial contraiu-se no segundo trimestre deste ano. Segundo Gourinchas, “o crescimento cai de 6,1% no ano passado para 3,2% neste ano e 2,9% no próximo ano”. Tal quadro reflete a estagnação do crescimento nas três maiores economias do mundo – Estados Unidos, China e a área do euro. Há repercussões econômicas e políticas difusas para diversas regiões.
Gourinchas citou que “nos Estados Unidos, a queda do poder de compra das famílias e o aperto da política monetária reduzirão o crescimento para 2,3% neste ano e 1% no ano que vem”. Na China, por sua vez, o crescimento será reduzido para o ritmo de 3,3% neste ano, o mais baixo em quatro décadas, excluído o período da pandemia. Na zona do euro, o crescimento cairá para 1,2% em 2023, refletindo as repercussões da guerra na Ucrânia e uma política monetária mais austera.
A inflação em 2022 deverá atingir 6,6% nas economias avançadas e 9,5% nas economias de mercados emergentes e em desenvolvimento, em parte devido à elevação dos preços dos alimentos e da energia. Pressões de custos decorrentes de rupturas nas cadeias de suprimentos também foram citadas por Gourinchas.
Entre os riscos apontados pelo economista, destaco os seguintes: condições financeiras mundiais ainda mais restritivas podem deflagar uma onda de superendividamento nas economias de mercados emergentes e em desenvolvimento; a alta dos preços dos alimentos e da energia pode causar insegurança alimentar e agitação social generalizadas; e a fragmentação geopolítica pode impedir o comércio e a cooperação em escala mundial. A desglobalização é um assunto que entrou no escopo das discussões das instituições do sistema multilateral, principalmente a partir da invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro deste ano.
Bancos centrais em todo o mundo estão elevando as taxas de juros. Conforme avaliou Gourinchas, “o consequente aperto monetário sincronizado entre os países é sem precedentes e deverá ter forte impacto, com a desaceleração do crescimento mundial no próximo ano e um recuo da inflação”. Haverá custos deflacionários. Nesse sentido, o economista defende que o apoio fiscal direcionado ajude efetivamente a amortecer o impacto sobre os mais vulneráveis.
Gourinchas colocou a relevante questão da transição climática em perspectiva. Para o diretor do FMI, “a mitigação das mudanças climáticas continua a exigir ações multilaterais imediatas para limitar as emissões e aumentar o investimento para acelerar a transição para a economia verde”. A política energética, admitiu o economista, é assunto de segurança nacional por conta de suas mais variadas repercussões na vida de um país. Não parece ser essa a perspectiva brasileira.
O preço do gás na Europa disparou recentemente após a redução dos fluxos da Rússia. O preço elevado do gás chegou a equivaler a uma cotação do barril de petróleo na faixa de US$ 380 no dia 27 de julho. A Rússia reduziu o fornecimento para a região. Informações disponíveis na imprensa apontaram para o fato de que os fluxos no gasoduto Nord Stream 1 foram reduzidos para apenas um quinto da sua capacidade normal. A política, incluindo a condução da gestão econômica, já se mostrou, no passado, a continuação da guerra por outros meios. França e Alemanha decidiram estatizar empresas de energia. A Alemanha decidiu estatizar a Uniper para tentar garantir o fornecimento de gás para o inverno e a França fez um movimento análogo com a EDF, buscando limitar o aumento das contas de energia na sua economia. O Brasil segue na contramão desse tipo de preocupação estrutural.
Para Gourinchas, “em meio a grandes desafios e conflitos, fortalecer a cooperação continua a ser a melhor forma de melhorar as perspectivas econômicas e mitigar o risco de fragmentação geoeconômica”. Resta saber se a desglobalização, com o provável viés de fortalecimento da regionalização produtiva, não representa um fenômeno irreversível. Nesse sentido, é preocupante a ausência de um debate público mais aprofundado no Brasil. A falta de rumo nacional também é algo muito preocupante.
Matéria assinada por Cássia Almeida e que foi publicada no jornal O Globo, no dia 19 de junho de 2022, “O preço do retrocesso”, trouxe a análise de indicadores sociais, econômicos e ambientais que sofreram retrocessos no Brasil. Conforme afirmou a jornalista, “o Brasil voltou ao passado na economia, no bem-estar da população, na educação e no meio ambiente, exibindo indicadores que remontam há até 30 anos”. A perplexidade revelada em números por essa matéria nos remete ao efetivo questionamento da nossa visão comum de progresso.
Divulgado no dia 8 de junho, o inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) trouxe informações muito preocupantes. A insegurança alimentar atinge quase 60% dos domicílios brasileiros. Segundo a Rede PENSSAN, não devemos esquecer que houve “a continuidade do desmonte de políticas públicas, a piora no cenário econômico, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia da Covid-19”.
Guardadas as devidas proporções e distâncias históricas, esse dramático quadro presente nos remete ao clássico “Geografia da fome” (1946), de Josué de Castro. Com outras características, a fome se espalhou para todas as regiões do Brasil, urbanizando-se. Josué de Castro denunciou, décadas atrás, a tentativa de explicação da fome a partir de fenômenos estritamente naturais e biológicos, ignorando ou tentando esconder a natureza política do problema. A temática da reforma agrária sempre encontrou grandes dificuldades para avançar no Brasil, pois a posse da terra esteve tradicionalmente vinculada ao exercício do poder político local e regional.
Modernizações conservadoras ocorreram ao longo do século XX entre nós, porém as estruturas tradicionais de poder, “neocoloniais”, permaneceram praticamente intactas. Quase quatro séculos de escravidão deixaram marcas profundas na sociabilidade brasileira. Conforme descreveu Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro” (1995), a nossa formação econômica esteve associada aos “moinhos de gastar gente”. A exploração predatória da natureza também integrou esse processo histórico.
Após a abolição da escravidão, um golpe militar instalaria a Primeira República (1889-1930), que se tornaria oligárquica e antissocial. Em síntese, tivemos o darwinismo social como linha liberal na economia e um certo conservadorismo nos costumes tão brilhantemente exposto pelo escritor Machado de Assis. Naqueles tempos, as questões sociais eram tratadas como casos de polícia. O café continuava sendo o principal produto exportado pelo Brasil.
Entre 1930 e 1980, o Brasil fez esforços e diversificou a sua economia, com Getúlio Vargas, contra Vargas e sem Vargas. A industrialização substitutiva de importações ajudou a construir uma classe média e a urbanizar aceleradamente o país. O capital privado nacional se mostrou a perna fraca do tripé desenvolvimentista e o modelo do capitalismo associado-dependente se consolidou como a regra geral no campo industrial. Problemas sociais e ambientais acumulados são bem conhecidos no presente.
Desde meados da década de 1980, o processo de desindustrialização prematura se intensificou, refletindo a perda relativa de dinamismo da economia brasileira. Paralelamente, o crescimento do setor terciário não foi acompanhado por ganhos de produtividade na economia. Do ponto de vista da balança comercial, a tradição primário-exportadora se destacou e o Brasil até aproveitou a onda internacional do boom das commodities nos anos 2000.
Em janeiro de 2019, foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão responsável por coordenar os programas federais ligados à segurança alimentar. Programas de incentivo à agricultura familiar, que é a principal fonte responsável por boa parte da comida que chega à mesa das famílias brasileiras, foram extintos ou esvaziados. Não convém esquecer que em 2014 o Brasil havia deixado o Mapa da Fome formulado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Houve retrocessos nos índices de insegurança alimentar e da fome, sendo o quadro grave em todo o território nacional.
Qual é mesmo a nossa visão comum de progresso? A frente que se ampliou recentemente pela democracia, após o posicionamento oficial do governo norte-americano em favor do sistema eleitoral brasileiro, juntará apenas frações de poder de veto nas ações do próximo governo brasileiro? No caso brasileiro, desde 2016, a correlação entre o reformismo regressivo e a ascensão do extremismo de direita não pode ser esquecida. Em tempos de orçamento secreto, de emendas pix, entre outras manobras e práticas fiscais pouco republicanas, resta-nos avaliar criticamente o trabalho de reconstrução institucional pela frente. As contraditórias alianças eleitorais estaduais, por sua vez, afetarão a agenda nacional, impondo vetos a mudanças necessárias.
Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).