Aos 52 anos, Joana Oliveira acorda todos os dias às 4h30 reunindo forças para enfrentar uma jornada de 15 horas de trabalho. Moradora do bairro Jardim João XXIII, no distrito de Raposo Tavares, zona oeste de São Paulo (SP), ela percorre um trajeto de 1h40min até a Barra Funda, na região central, onde monta uma barraquinha para vender café e bolos na parte da manhã. À tarde e à noite, o cardápio muda e sucos e lanches naturais tomam conta do espaço. O retorno para casa só acontece às 23h, quando o movimento nas ruas diminui.
Assim como tantas outras brasileiras, Joana sobrevive por meio do trabalho informal. Sem conseguir um emprego com carteira assinada e garantia de direitos, foi na rua que ela encontrou uma forma de conseguir renda para criar seus dois filhos, após ser demitida da empresa em que trabalhava.
“A gente não tem férias, não tem 13º, nenhuma garantia. Nada. Não temos um futuro garantido, de uma estabilidade boa. Você não pode nem ter expectativa de vida, pensar em comprar alguma coisa, não dá. Hoje tá bom, amanhã não tá. Você não sabe o que pode acontecer. Se vai conseguir trabalhar mais um ano ou dois anos. A rua é muita incerteza”, conta Joana. “É rezar e pedir pra Deus pra gente sobreviver”.
Para driblar o desemprego, assim como para Joana Oliveira, a informalidade se tornou a única saída para milhões de brasileiros. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a informalidade atingiu 41,1% da população brasileira no quarto trimestre de 2019, o maior nível desde 2016. A porcentagem de trabalhadores sem carteira assinada chegou a superar 50% em 11 estados do país.
Mesmo com a criação das vagas informais, o desemprego segue alto, principalmente entre o gênero feminino. A taxa de desocupação total entre as mulheres no quarto trimestre de 2019 foi de 13,1%, enquanto entre os homens o índice era de 9,2%.
A diferença entre os gêneros é ainda mais acentuada quando se trata de mulheres chefes de família. Entre essas, o desemprego chega a 10,2%, o dobro em relação aos homens.
Thais Lapa, docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora na área de gênero e trabalho, explica que existe uma desigualdade estrutural das condições de trabalho e nas formas de contratação, devido à segregação de gênero que leva as mulheres a estarem mais presentes em trabalhos precários e insalubres.
Para ela, a situação está ainda pior após a aprovação da reforma trabalhista e da terceirização irrestrita, que criaram um marco de instabilidade aguda para as mulheres.
“Estamos em um período de fragilização das condições de trabalho e emprego para a classe trabalhadora no geral, mas as mulheres, que já tem uma série de dificuldades, desigualdades e subjugações que vêm de antes da reforma trabalhista, sentem isso de uma forma mais sensível”, analisa Lapa.
Sem direitos
A docente, que participa de um projeto de pesquisa sobre o tema no Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), afirma que, com base em informações que vêm sendo levantadas por órgãos oficiais e entrevistas qualitativas com lideranças sindicais, trabalhadoras domésticas, por exemplo, estão sendo coagidas a adotar o Microempreendedor Individual (MEI) e entrar na informalidade.
“Às vezes, quando a pessoa está entrando no MEI, ela não tem noção de que uma série de problemas vão vir quando ela for demitida. Ela vai perceber que não tem os direitos trabalhistas equivalente aos que teria na contratação regular. É um grande retrocesso, porque tivemos a PEC das Domésticas para pensar na formalização com proteção dos direitos CLT e agora enfrentamos uma regressão”.
Lapa ressalta ainda a necessidade de fazer o recorte de raça em relação à inserção das mulheres no mercado de trabalho, já que a proporção de mulheres negras desempregada é maior e, devido ao racismo estrutural, estão nos empregos mais vulneráveis.
Conforme o estudo Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, do IBGE, homens brancos ganham mais que o dobro na média salarial de mulheres negras, e mulheres brancas ganham 70% a mais.
Além dos retrocessos na área trabalhista, a reforma da Previdência do governo Bolsonaro também dificultou as condições das mulheres. A aposentadoria por idade aumentou de 60 para 62 anos, com o mínimo de 15 anos de contribuição. Para ter direito a 100% dos benefícios, será preciso ter idade mínima e contribuir por 40 anos.
De acordo com relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), com rendimentos inferiores aos recebidos pelos homens, a contribuição para a Previdência em 2019 também foi menor, em média, 17% em ralação a do dos homens, impactando no valor das aposentadorias.
Bicos e apps
Neste cenário, o ingresso em plataformas como Uber, 99, Ifood tem crescido, processo que, segundo especialistas, é fruto da flexibilização das leis protetivas ao trabalhador em nome do lucro de grandes empresas, já que os “trabalhadores autônomos” não possuem nenhum vínculo trabalhista.
Mesmo sem a garantia de direitos previstos no registro formal, Geisy Couto faz parte das quase 4 milhões de pessoas que formam a categoria que trabalha para empresas de aplicativos de serviços no Brasil, segundo o IBGE.
Moradora de Valinhos, interior de São Paulo, a jovem de 27 anos foi mandada embora logo após voltar da licença maternidade. Após dois anos desempregada e sobrevivendo com bicos na área de fotografia e estampas de camisetas, decidiu virar motorista da Uber em janeiro.
Ela conta que entrar em aplicativo foi a opção para pagar as contas e a faculdade. Estudante de psicologia e beneficiária do FIES, Geisy só tem mais duas disciplinas para se formar, mas se deparou com o machismo estrutural em oportunidades de emprego desde que foi demitida.
“Desde então, devido ao preconceito pela mulher ser mulher, ser mãe e estudante, tem as desculpas. Perguntam: ‘Nossa, mas você tem filho?’, ‘Você tá fazendo faculdade?’. O que tem a ver?”, questiona, em tom crítico.
Há menos de 3 meses trabalhando como motorista, acredita que a situação seria melhor caso a Uber se preocupasse mais com a segurança das trabalhadoras e construísse um vínculo para garantir, ao menos, uma contribuição previdenciária.
“Devido a tudo isso que eu passei, decidi virar Uber, porque é minha área, lidar com o público, saber como conversar. Mas ainda não consigo me sustentar com o que eu ganho”, diz Geisy, que, por vezes, trabalha mais de 8 horas por dia, dividindo seu tempo entre o trabalho e o cuidado do filho de 2 anos e meio.
Apesar de gostar da “flexibilidade” que os trabalhadores autônomos possuem, a futura psicóloga ainda não consegue tirar mais de um salário mínimo (R$ 1.045) como renda fixa. “É a saída pra fugir do desemprego”, lamenta a jovem.
Ludmila Costhek Abílio, socióloga e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, afirma que a uberização é resultado de décadas de transformação e precarização do trabalho que vão culminar no que denomina como trabalhador “just in time” (‘trabalhador pra já’, em português), aqueles que estão inteiramente disponíveis ao trabalho, mas só são utilizados na exata medida em que a demanda aparece.
Nesse processo, segundo Costhek, há uma total responsabilização e transferência de riscos e custos para o trabalhador, que não tem nenhuma remuneração mínima de trabalho assegurada.
A pesquisadora do Cesit define a uberização como a apropriação de uma forma produtiva, monopolizada e organizada de um modo de vida tipicamente periférico, que estruturalmente faz parte da vida das mulheres em situação de vulnerabilidade e, principalmente, das mulheres negras.
“Se você olhar a trajetória de vida dessa mulher, desde sempre a vida dela se estrutura como uma trabalhadora ‘just in time‘. É uma trabalhadora que não tem nada garantido, que as relações de trabalho dela não passam por mediações que a protejam. Ela convive permanentemente com a falta de regulação que determina o que é tempo de trabalho e o que não é”.
Autonomia em risco
O sucateamento de políticas públicas responsáveis por combater a pobreza e tirar o Brasil do Mapa da Fome, com destaque ao Bolsa Família, também tem se aprofundado após o impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Jair Bolsonaro tem adotado a mesma política do governo Temer, com sucessivos cortes no programa, criado em 2003 e considerado a maior política de transferência de renda do mundo, com atendimento de milhões de pessoas.
Notícias veiculadas pela imprensa mostraram que a fila de espera do programa cresceu no primeiro ano da gestão de Bolsonaro.
Segundo informações do Ministério da Cidadania, em novembro do ano passado, por exemplo, o benefício foi pago a 13,2 milhões de famílias. O índice foi o segundo menor volume registrado nos últimos oito anos, não superando apenas as concessões de julho de 2017, quando 12,7 milhões de famílias receberam o benefício.
Na ocasião, a pasta alegou que a redução ocorreu porque o programa passou por redirecionamentos “devido às frequentes mudanças do cenário econômico”.
Somados à crise econômica, os impactos dos cortes e do aumento da fila dos beneficiários são concretos. Monitoramento do FGV Social, centro de pesquisas sociais da Fundação Getúlio Vargas, constatou que a renda dos 5% mais pobres no Brasil caiu 39% entre 2014 e 2018.
O cenário deve piorar este ano, já que foram previstos R$ 29 bilhões para o programa, valor menor que os R$ 32 bilhões de 2019.
O Bolsa Família também é reconhecido mundialmente por dar autonomia às mulheres beneficiárias, ao dar preferência para que elas sejam as titulares do benefício. Em 2016, as mulheres correspondiam a 93% do total dos beneficiados. Novamente, em meio à crise, são elas as mais prejudicadas.
A sombra da fome
Maria Raimunda Reis Pereira, 38 anos, é mãe de quatro filhos e sofre com os sucessivos cortes no benefício. Desde abril do ano passado, tem passado por oscilações no recebimento do Bolsa Família e chegou a passar meses sem receber.
Seu último depósito foi em janeiro deste ano e, até agora, tem encontrado sua conta vazia. Moradora de uma ocupação no Jardim das Gaivotas, no Grajaú, extremo sul de São Paulo (SP), Maria conta que após ir diversas vezes ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da região para saber o porquê da ausência do benefício, recebeu a justificativa que o valor foi cortado devido à falta de um dos seus filhos na escola, um dos critérios para o recebimento da renda.
No entanto, segundo ela, a resposta não procede e as faltas alegadas foram justificadas devido a questões de saúde.
Mãe solo e com quatro filhos de 17, 14, 11 e 7 anos, morando em uma das zonas mais pobres de São Paulo, Maria Raimunda tenta trabalhos como diarista há anos. Mas, em 2019, só conseguiu uma faxina quinzenal fixa, na qual recebe R$ 120 – renda insuficiente para atender às necessidades da família.
Ela relembra que sem o Bolsa Família, por inúmeras vezes já ficou sem conseguir comprar o gás de cozinha, comprometendo a alimentação de seus filhos. “O gás, o arroz, o feijão, o ovo ou a salsicha, é daí que vem. É só do Bolsa Família. É o que mantém eles. É a única renda que eu tenho”, relata Maria Raimunda.
“Aí tem que pegar emprestado e esperar pra ver se consegue pagar. Não tem da onde tirar, tem que passar por isso e ficar calada. Não tem a quem recorrer. Quando você tem filho, tem que fazer alguma coisa por eles. Quando não tem [gás], tem que pedir pra vizinha, incomodar alguém pra conseguir pelo menos fazer um arroz”, continua Maria.
Para sobreviver, teve que pedir ajuda ao seu pai, de 80 anos. “Não é fácil não… É como se você tivesse pedindo esmola. É humilhante. Se pelo menos eles fossem à casa das pessoas e vissem as condições das pessoas, eles iam entender que não é brincadeira. Tá ali porque precisa”.
Também é por meio do Bolsa Família que a manicure Magda Amorim, de 31 anos, complementa sua renda. Até 2016, ela era trabalhadora registrada em um salão de beleza, mas passou a fazer parte do índice de pessoas na informalidade ao ser demitida em razão do aprofundamento da crise.
Mãe de três filhos, recebe pensão do pai de um deles, o que a ajuda a pagar outra mulher para tomar conta deles para que consiga trabalhar. Apesar de ter uma jornada das 9h às 19h, de terça à sábado, ganha apenas 50% de comissão a cada cliente atendida.
“Tem dia que recebe, tem dia que não tira nada. Depende. De fixo só o Bolsa Família. Ajuda a comprar as coisas das crianças, o leite. O grosso deixo para comprar com ele [o benefício]”, afirma Magda.
A manicure segue enfrentando as dificuldades inerentes à informalidade. “É ruim, porque ficamos sem nenhuma garantia de trabalhar por comissão de novo. Eu to me mantendo como manicure, poque é difícil de arrumar trabalho. Se eu for pra rua não consigo trabalhar, é melhor fazer o bico para ter o certo do que ir pra rua tentar e não achar”.
Sociedade misógina
O gênero feminino também está entre os principais alvos da violência no Brasil. Levantamento do Monitor da Violência divulgado nesta semana, feito com base em dados oficiais de 26 estados e do Distrito Federal, constatou que houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019, em comparação com 2018. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.
A lei que tipifica o crime de feminicídio entrou em vigor apenas em 2015. Conforme estabelece a lei, são considerados feminicídio crimes contra mulheres “por razões da condição do sexo feminino”, onde há “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
O brutal assassinato da bailarina Maria Glória Borges, em Maringá (PR), no fim de janeiro, repercutiu nacionalmente e reflete o grau de intensa violência a qual as mulheres estão sujeitas. Em homenagem à professora de dança e produtora cultural, diversos atos aconteceram nas principais cidades do país.
Magó, como era carinhosamente chamada, foi vítima de estrangulamento e violência sexual no dia 26 de janeiro. Seu corpo foi encontrado na trilha de uma cachoeira, a 800 metros do local onde estava hospedada. Pouco mais de um mês depois, um homem de 41 anos foi preso em Apucarana, no Paraná, após o material genético encontrado no corpo de Magó ser confrontado com o dele e apresentar resultado positivo.
Em ato realizado em São Paulo, Mariana Poltronieri Barreto, prima da bailarina, clamou pelo fim do feminicídio. “Todos nós que temos um coração que pulsa queremos um basta na violência. Para que as mulheres possam andar livremente, independentemente da onde elas queiram ir e fazer. Nenhuma a menos”, defendeu.
Mariana acredita que, a partir da repercussão nacional do assassinato de sua prima, é possível dar visibilidade para outras vítimas. “A Maria Glória está trazendo a voz de muitas mulheres que já sofreram essa violência. A única coisa que pode nos dar força nesse momento pra continuar é o amor. E a Maria Glória era puro amor”.
Na avaliação de Isabela Guimarães Del Monde, advogada e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), o aumento do feminicídio no país revela uma sociedade essencialmente e estruturalmente machista, pautada por uma lógica de opressão de homens contra mulheres e de coisificação dos corpos.
Segundo Del Monde, o maior registro de casos de feminicídio se dá pela maior investigação sob a perspectiva apresentada pela lei. As mortes anteriormente eram tratadas apenas como homicídios, ignorando as dimensões de gênero. Em paralelo a esse movimento, está a escalada de violência estimulada pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.
“Nós temos uma leitura que esse aumento de violência contra mulher, especialmente do feminicídio, tem muito a ver com o momento institucional que o Brasil está vivendo, especialmente no que tange à presidência e nossos ministérios, e as mensagens que são cotidianamente passadas para o povo brasileiro com relação aos direitos humanos. Temos um endosso, uma legitimação dada pelo presidente com relação ao cometimento da violência”, critica a jurista.
Ela destaca que o aumento ao acesso às armas de fogo, uma das principais bandeiras do governo e de grupos de direita, é uma forte ameaça às mulheres, principalmente para as vítimas de violência doméstica. Levantamento encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que, em 2018, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil. Os números e as vítimas fatais podem crescer ainda mais com o acesso facilitado às armas de fogo pelos homens.
“É extremamente perigoso o que está acontecendo nesse momento, considerando o cenário de abandono de políticas públicas, de corte de orçamentos para essas políticas. Essa glorificação e esse endeusamento da arma de fogo, sem dúvida alguma, é uma receita exclusiva de aumento de número de morte de mulheres. Isso só revela, mais uma vez, que a sociedade brasileira não vê suas mulheres como pessoas”, comenta a co-fundadora da DeFEMde.
Sexismo estrutural
A exploração socioeconômica que atinge as mulheres ultrapassa as fronteiras brasileiras. Informações disponibilizadas pelo documentoTempo de Cuidar — O trabalho de cuidado mal remunerado, da Oxfam, mostrou que as economias mundiais são sexistas. Isso porque, conforme a pesquisa, enquanto os donos das grandes fortunas acumulam cada vez mais riqueza, as mulheres são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo.
Segundo o relatório, mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado. Se fossem remuneradas, isso significaria uma contribuição de, pelo menos, US$ 10,8 trilhões por ano para a economia global, o triplo do valor gerado pela indústria tecnológica, por exemplo.
Frente à realidade brasileira, é impossível negar que a crise tem rosto de mulher. E é contra ela que, neste 8 de março, milhares de mulheres ocupam as ruas de todo o país, e também do mundo.
Na opinião de Thais Lapa, docente da UFSC, a movimentação popular é o caminho. “Não temos nada de promissor para apresentar como perspectiva para as mulheres brasileiras dentro desse nosso contexto atual, a não ser a possibilidade de lutar. Lutar para melhorar as condições todas”.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Lu Sudré
Data original da publicação: 08/03/2020