Criada nos anos 1930, a cesta básica reflete uma lógica de nutrição do século passado. Nem isso é garantido no contexto de desmonte de políticas públicas no Brasil.
Juliana Afonso e Nina Rocha
Fonte: Marco Zero, com Bocado
Data original da publicação: 27/10/2021
As famílias brasileiras voltaram a lidar com um antigo conhecido: a falta de comida no prato. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), 116,8 milhões de pessoas no país se encontram em situação de insegurança alimentar, ou seja, mais da metade da população. O Brasil não registrava dados como esse há 17 anos. A pandemia e seus impactos econômicos têm um peso grande neste contexto, mas o coronavírus está longe de ser o único motivo da insegurança alimentar no país.
De um lado, temos a precarização dos modos de trabalho, que coloca a maior parte das famílias brasileiras em uma situação de instabilidade econômica e social. Esse cenário já vinha se desenhando há alguns anos e foi agravado com a pandemia da Covid-19: chegamos a 14,7% de taxa de desemprego no primeiro trimestre de 2021, o maior índice desde o início da série histórica, em 2012. A taxa de informalidade no mercado de trabalho também é alta: 39,6% da população ocupada são trabalhadores informais, um total de 34 milhões de pessoas.
Do outro lado, temos um aumento dos preços de diversos itens de consumo, principalmente dos gêneros alimentícios, causado pela alta do dólar e pelo aumento da demanda por produtos agrícolas no cenário internacional. O resultado? Preços nas alturas e uma população com cada vez menos poder de compra. A situação é similar em diversos países da América Latina, que têm visto a insegurança alimentar crescer vertiginosamente.
No Brasil, enquanto a fome se alastra de norte a sul do país, as políticas que levam à população uma nutrição mínima se tornam novamente protagonistas e, por vezes, a principal fonte de alimento para muitas famílias. Nesse contexto, a cesta básica tem ganhado centralidade no combate à fome, seja por ações governamentais, iniciativas privadas ou projetos solidários.
A cesta básica nasce ainda no governo de Getúlio Vargas, na década de 1930, por meio do Decreto-Lei nº 399/1938. A política se baseou nos estudos do médico pernambucano Josué de Castro, que redirecionou os olhares do mundo ao dizer que a fome era uma questão de disponibilidade dos alimentos, e não de quantidade. Seguindo essa filosofia, a cesta busca assegurar o consumo de alimentos em quantidades suficientes para garantir o sustento e o bem-estar de um trabalhador durante um mês. Estabeleceu-se 13 itens fundamentais em uma cesta básica (carne, leite, feijão, arroz, farinha de trigo, batata, tomate, pão, café, banana, açúcar, óleo e manteiga).
Não é por acaso que no mesmo decreto tenha nascido o salário mínimo. “A parte da alimentação está baseada na composição da cesta básica, proposta para o cálculo do salário mínimo que, inclusive, continua a mesma até hoje”, comenta a professora de Economia e Políticas Públicas de Saúde, Alimentação e Nutrição da Universidade de São Paulo, Flávia Mori Sarti. Também não é por acaso que, nos últimos anos, o fim da política de valorização do salário mínimo seja parte do pacote que minou a segurança alimentar da população. Em julho deste ano, o custo da cesta básica na cidade de São Paulo alcançou o preço médio de R$ 1.064,79, quase o mesmo valor do salário mínimo, fixado a R$ 1.100,00.
Os preços dos 13 artigos estabelecidos como padrão são acompanhados pelo Dieese, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que realiza um estudo permanente sobre os itens que compõem a cesta básica. Além deles, algumas instituições e empresas agregam produtos complementares, geralmente não perecíveis, como sardinha em lata, biscoitos doces e salgados, milho em conserva, macarrão, sal, entre outros alimentos e itens de higiene.
O tempo passou e a cesta básica continua a mesma
O país mudou. Os problemas também. Mas a composição da cesta básica não foi atualizada. “Como havia uma desnutrição calórica, foi colocado muita proteína, muito óleo, e uma quantidade bastante grande de carne, que hoje em dia é algo para ser revisto. A gente continua tendo problemas de pessoas com desnutrição, mas, ao mesmo tempo, também temos pessoas com sobrepeso e obesidade, principalmente nas camadas mais pobres”, explica Flávia.
Mesmo com suas defasagens nutricionais e até em termos de custo – a cesta básica poderia, de acordo com Flávia, incluir uma variabilidade sazonal de frutas e verduras e diminuir os itens que são industrializados mantendo um custo igual ou menor que o atual. É impossível deslocar a cesta básica de um protagonismo na discussão da segurança alimentar, embora também seja necessário integrá-la a outras iniciativas, como políticas públicas de subsídio alimentar para estudantes e trabalhadores e outras propostas que visam à redistribuição de renda.
“A composição da cesta básica continua sendo muito central por conta da cultura. É fácil as pessoas entenderem o que ela representa em termos do cotidiano. Essa centralidade vem não só da crise sanitária e econômica, mas da população saber o que isso representa para a sobrevivência diária. As pessoas querem ter um emprego, uma renda e a sobrevivência garantida. O mais básico que a gente consegue quando pensa na soberania cotidiana é a alimentação”, afirma Flávia.
De acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), houve um aumento no preço de todos os alimentos considerados base para a dieta alimentar no Brasil. Os que mais aumentaram em comparação ao ano anterior foram o óleo de cozinha, com um crescimento de 103% no preço médio, e o arroz, com crescimento de 76%. Sem perspectivas de uma mudança no cenário nacional a curto prazo, cresce a pressão para a criação de políticas capazes de garantir a segurança alimentar. A questão é que já existe uma série de isenções para os produtos alimentícios, criadas exatamente para que estes itens cheguem à mesa do consumidor por um preço mais acessível – mas nem sempre é a população que lucra com essa política.