Os congressistas começam a refletir sobre as próximas eleições e consideram abandonar o náufrago. Há, no entanto, um pagamento do qual Temer e seus asseclas não querem, ou não podem fugir, que é o preço a ser pago pelo impeachment da presidenta Dilma.
Mírian Gonçalves
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 29/06/2017
Como a história relatará esse período? Um presidente ilegítimo, com 92% de rejeição, considerando os dados da pesquisa Datafolha (24/6/17), um Congresso servil e corrupto, ambos atentando contra direitos conquistados por décadas de luta dos trabalhadores. Talvez, quem sabe, como a maior resistência e mobilização da sociedade. Assim quero crer.
A partir de 30 de junho, com a greve geral no país, mais uma vez os trabalhadores dissieram não às reformas trabalhista e previdenciária que vilipendiam os direitos de milhões de brasileiros. É uma resposta à inescrupulosa ação do Senado Federal ao aprovar, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), o relatório do senador Romero Jucá (PMDB- RR) em favor da Reforma Trabalhista por dezesseis votos a favor, nove contrários (mérito dos representantes dos partidos PT, PDT, Rede) e uma abstenção.
Foi também uma manifestação contra Temer, o ilegítimo presidente, denunciado pelo Ministério Público Federal por corrupção passiva, pelo recebimento de vantagem indevida no valor de R$ 500 mil, o que poderia chegar ao montante de R$ 38 milhões conforme denúncia. Somam-se a esses fatos o acordo de leniência com a segunda maior empresa mundial no ramo alimentício; o perdão aos confessos corruptores de mais de 2 mil políticos brasileiros; o escárnio da mala preta à vexatória incursão do presidente aos países visitados na Europa.
Os congressistas começam a refletir sobre as próximas eleições e consideram abandonar o náufrago. Há, no entanto, um pagamento do qual Temer e seus asseclas não querem, ou não podem fugir, que é o preço a ser pago pelo impeachment da presidenta Dilma.
O capital nacional e internacional patrocinou as grandes concentrações havidas em todo o país que trouxeram a classe média (e alta também) às ruas protestando contra a corrupção. Colocou-se à disposição daquele movimento uma grande estrutura munida de todos os meios de comunicação, passagens aéreas, hotéis, valores em espécie e o pior de todos, um discurso fascista de divisão da sociedade entre os bons e o PT. Os mesmos arroubos de justiça ainda não se converteram em mobilização dessas classes até o momento, quando a situação se mostra escabrosa. Faltam-lhes os financiadores. Por isso, à beira do precipício Temer se agarra às reformas trabalhista e previdenciária que lhe permitirão prestar contas.
Tenho argumentado, em todas as oportunidades, que o mais preocupante é a retirada de direitos decorrentes do trabalho porque, mesmo se mantidas todas as condições atuais da Previdência, ninguém mais alcançará tempo de serviço ou a remuneração máxima.
As inovações feitas pela Lei n. 13.429/2017 que liberou irrestritamente a terceirização de todas as funções atentam contra o direito de igualdade e equiparação, a identidade de categoria, a possibilidade de ascensão na carreira profissional e os princípios básicos reconhecidos pelo Direito do Trabalho. As pessoas tornaram-se descartáveis. Nos moldes aprovados pelo Congresso já era bastante prejudicial aos trabalhadores, mas tomou outra dimensão quando o presidente Temer vetou o teor do artigo 12 que mantinha alguma proteção:
“Art. 12 – São assegurados ao trabalhador temporário, durante o período em que estiver à disposição da empresa tomadora de serviços, os seguintes direitos, a serem cumpridos pela empresa de trabalho temporário:
I – Salário equivalente ao percebido pelos empregados que trabalham na mesma função ou cargo da tomadora;
II – Jornada de trabalho equivalente à dos empregados que trabalham na mesma função ou cargo da tomadora”.
A terceirização foi apenas o primeiro petardo. Na continuidade da reforma trabalhista (e para ela), foi recuperada a mensagem do Executivo enviada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso com sete propostas de modificações da CLT. Após a tramitação na Câmara dos Deputados, chegou ao Senado com duzentas alterações da legislação, todas, sem exceção, precarizando as condições de trabalho.
Não se trata de nenhum exagero que possa ser atribuído à parcialidade, bastando uma inserção cuidadosa no texto para se obter a mesma conclusão. Algumas situações tornaram-se simbólicas, como a possibilidade de grávidas ou lactantes trabalharem em locais insalubres; a legalização do ajuste das condições de trabalho pelas partes sem a participação dos sindicatos, inclusive com renúncia de direitos e vedando a intervenção da Justiça do Trabalho; a prevalência do negociado sobre o legislado ainda que em prejuízo ao trabalhador; o trabalho intermitente e oneroso; a substituição da “responsabilidade solidária” para “responsabilidade sucessiva” do tomador. Houve ainda a emblemática e inescrupulosa tentativa de integrantes da base governista de incluir a “pejotização” (contratação de empresa individual por outra empresa em regime de exclusividade, tornando cada empregado um empresário) embutida na reforma tributária, mas não passou desapercebida e por se tratar de matéria alheia ao objeto do PL foi excluída.
Os trabalhadores não estão esclarecidos dos impactos que essas transformações ocasionarão em suas vidas, pior que isso, há um bombardeio de informações incorretas que atinge diretamente uma população de temerosos ante a um nível de desemprego que passa de 14% entre aqueles economicamente ativos. Tais informações repetidas um milhão de vezes, sem direito ao contraditório (expressão que está em voga), parecem verdadeiras. As justificativas alardeadas são insólitas, levianas. A suposta inadequação da CLT aos dias de hoje é uma falácia, para não dizer mentira. A começar, a legislação trabalhista é a mais atualizada. É o conjunto de leis que têm as mais frequentes alterações e adaptações, não apenas feitas pelo Poder Legislativo, mas também pelo Judiciário, ao interpretá-las e editar súmulas. A insegurança jurídica arguida mira diretamente a Justiça do Trabalho e a proteção social que lhe cabe, mas que nunca colocou em risco as negociações tratadas entre as partes, mantidos o grau de civilidade e os direitos básicos garantidos em lei. Desnecessário dizer que não gerará empregos ou melhorará a economia. Os mesmos postos de trabalho poderão ser ocupados por empregados terceirizados em condições de salário e proteção inferiores. A economia tão pouco será beneficiada pois, quando é reduzido o poder de consumo, diminui a circulação de recursos atingindo toda a cadeia produtiva. Exceção seja feita aos lucros das empresas que dependem da mão-de-obra, como prestadoras de serviços, montadoras de automóveis, construtoras, bancos, indústrias em geral, que verão a margem de lucro aumentar ao adotarem o “modelo chinês” – semiescravidão, quando a desigualdade se torna barbárie. Inúmeras críticas surgiram em pareceres de entidades e expertos em Direito do Trabalho apontando, entre outros, ferimento à Constituição Federal, o que deveria bastar para não ter sido aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
O governo arma-se para atuar em três frentes: a reforma trabalhista, a reforma da Previdência e a manutenção de Temer no poder. Uma dependerá da outra. De toda forma, a aceitação do texto como base para a discussão já se configura num retrocesso inigualável na história do país por incluir no debate impensáveis condições de exploração dos trabalhadores. Deixamos de ser exemplo de referência mundial ao paraíso dos retrocessos sociais.
Mírian Gonçalves é advogada de trabalhadores há 35 anos, mestra em Direito das Relações Sociais pela UFPR, sócia-fundadora dos institutos DECLATRA e Instituto Direito e Democracia (IDD) e vice-prefeita de Curitiba pelo PT, gestão 2013-2016.