A avaliação de desempenho como instrumento de exercício do poder

A possibilidade de uma nova correlação de forças, essa transformação do servidor público em bode expiatório que pode ser demitido a qualquer momento, assinala que foi rompido o pacto entre o servidor público/estado/sociedade.

Jorge Barcellos

Fonte: Estado de Direito
Data original da publicação: 19/10/2017

A expansão da racionalidade diagnóstica

O projeto do senador Lasier Martins aprovado na CCJ do Senado corresponde aquilo que Christian Dunker denomina de expansão da racionalidade diagnóstica no Brasil pós-inflacionário. Para o autor de Políticas do Sofrimento (Editora UBU, 2017), passamos a “entender nossa vida no trabalho, na escola e na comunidade a partir de avaliações. Avaliações que justificam intervenções, que geram novas avaliações” (Dunker, Políticas…, p. 242). Para Dunker, avaliações estabelecem métricas, orientações para resultados e comparações que invadem nossa vida: as avaliações de desempenho com as quais o senador Lasier Martins quer submeter os servidores públicos não são nada mais do que parte do crescimento dos diagnósticos de todo o tipo. Na psicanálise, a cultura de avaliação promoveu a ascensão de uma nova psicopatologia e novos sintomas como pânicos, depressão, drogadicção e anorexia. Quem duvida que, se aprovado pelo Congresso, tais sintomas não serão estendidos agora aos servidores públicos?

No pensamento do senador Lasier Martins, a divisão servidor público concursado/trabalhador é apenas mais uma que vem a se agregar, no entender de Dunker, as divisões campo/ cidade, desenvolvimento/ subdesenvolvimento, nacional/estrangeiro e que organizam a sociedade e criam novas divisões internas para distribuição de recursos ou acesso a bens simbólicos. E o parecer do senador Lasier Martins só tem a repercussão que tem porque alimenta reativamente mais uma divisão social, a divisão que começou com Fernando Collor de Melo com sua política de “Caçador de Marajás” e que hoje atinge o serviço público como um todo: agora, servidor público não é mais um integrante da sociedade, é um pária. E as avaliações e a introdução de uma forma de demissão dos servidores concursados são a forma dita “racional” de eliminar “párias”. Nada mais equivocado.

Essa alteração das regras do jogo produz nos servidores um mal-estar. A possibilidade de uma nova correlação de forças, essa transformação do servidor público em bode expiatório que pode ser demitido a qualquer momento, assinala que foi rompido o pacto entre o servidor público/estado/sociedade. Criou-se um descompasso entre as expectativas dos servidores de seus governantes, e da sociedade de seus servidores “o mal-estar é a experiência desta zona de indeterminação”, afirma Dunker (p. 243). Ora, isso produz uma transformação das maneiras de sofrer do servidor público: antes, o servidor sofria por que não conseguia cumprir seu papel, seja por falta de recursos, ou por excesso de demanda. Agora, o sofrimento do servidor advém pelos três tipos do novo mal-estar contemporâneo.

Os três novos mal-estares

Primeiro mal-estar é que avaliações por desempenho introduzem o sofrimento como transitividade do servidor. Antes, o servidor sofria porque se identificava com seu trabalho e com seu governante. Por exemplo, o servidor da saúde sofria porque morria seu paciente, sofria porque via seu Prefeito tentar o certo e não conseguir. Mas não há mais transitividade entre o servidor e seu governante porque, no caso do governo do Prefeito Nelson Marchezan Jr, seu governante expressa ódio para com seu servidor, ou porque, como no governo estadual, seu governo age com indiferença. Quem duvida que o Prefeito eleito, uma vez estabelecido a avaliação de desempenho como política, não irá implementá-la para reduzir a máquina pública e com isto o gasto da Prefeitura, bem na linha gerencialista atualmente em andamento? E quem duvida que o governador José Ivo Sartori não fará o mesmo pelas mesmas razões?

O segundo mal-estar que as implementações de avaliações de desempenho introduzem é o sofrimento que provocam no servidor pela ausência de reconhecimento. O sofrimento ordinário do servidor (Freud) é aquele que corresponde a angustia normal da existência. Mas o que fazem nossas lideranças, a começar pelo senador Lasier Martins é ampliar o sofrimento do servidor para além dessas fronteiras, naquilo que Dunker chama de “sofrimento neurótico”, porque suas avaliações produzem um sofrimento por um acréscimo, revelando ódio ou de indiferença frente ao servidor por sua história.

O terceiro sofrimento que as implementações de avaliações de desempenho introduzem dá-se pela imposição de uma narrativa: o projeto do senador Lasier Martins impõe ao servidor público o discurso da produtividade extrema, que transforma avaliadores em carrascos e o servidor em vítima e que não explora as razões e os motivos do comportamento dos servidores porque é um instrumento de exercício de poder.

Introdução de uma nova forma de sofrer

O projeto do senador Lasier Martins, se aprovado, mudará a forma de sofrer dos servidores públicos. Não bastavam os baixos salários, o parcelamento, a falta de condições de trabalho e de repente, novas estratégias de pressão irão se impor sobre os servidores com a invasão de privacidade ou estabelecimento de destinos erráticos senão cederem a pressão dos avaliadores, o que significa, da mesma forma que assinala Dunker, outra forma de imposição de violência, só que agora, contra o servidor. A violência sobre o servidor condensa muita coisa: ele deverá participar de campanhas eleitorais contra sua vontade, deverá assumir escalas de trabalho além de sua condição física, deverá ceder a corrupção no uso dos recursos, exatamente tudo contra o que a estabilidade servia de garantia para o servidor, que é rompida. O engodo está em pensar que tudo isso vem em nome de tornar transparente o serviço público, quando é seu exato inverso, só é violência contra o servidor para garantir vantagens particulares: estejam certos, o projeto só conquistará mais precariedade no serviço público.

Mas há mais. Nos termos de Dunker, inspirado nas conclusões do antropólogo Forrest Clements, a avaliação desejada pelo senador Lasier Martins viola um pacto: o sofrimento sempre se dá pelo não cumprimento de um pacto, da usurpação de seu sentido. Qual pacto fez o servidor com seu estado? De que, em troca da estabilidade, o servidor abandonou outros interesses, fez uma trajetória de correção e fez sua contribuição financeira para aposentadoria. Agora, com o artificio das avaliações, rompe-se o pacto da estabilidade do emprego pela possibilidade de abertura à má fé na avaliação feita pelo avaliador. Para o servidor, alguém não está cumprindo com sua obrigação que é garantir a estabilidade. Diz Dunker: ”isso cria um sentimento social que domina uma de nossas narrativas de sofrimento, a saber, o ressentimento. O ressentido não é aquele que perdeu, mas aquele que acha que no fundo o jogo é injusto” (p.246). Porque o jogo se tornou injusto? Porque o servidor cumpriu o que foi combinado por toda uma vida, e no último segundo do segundo tempo, o governo muda as regras. O servidor, que pensava ter conquistado a estabilidade, pode ser demitido. Ele contribuiu, mas agora, demitido, não tem direito a aposentadoria.

A perda da alma do servidor

O estabelecimento da avaliação por desempenho estabelece uma nova linguagem para o sofrimento do servidor, denominada por Dunker de narrativa da perda da alma, agora, no serviço público. O servidor sofre porque não consegue se reconhecer no que faz, na avaliação de desempenho tudo o que faz gira em função de estatísticas, rendimentos e produtividade. Para o servidor, a qualidade do atendimento e a atenção é substituída pela imposição de um ritmo incessante de produtividade, de tantos atendimentos, etc. O servidor passa a atender rápido, a não conversar com seu paciente, com o público do guichê, e com isso sente uma vergonha do que faz. Ele sente que é uma máquina. Lembram-se que reclamava-se que os médicos do INSS sequer olhavam seus pacientes, tamanha sua preocupação com a produtividade? Sorria, agora todo o serviço público será assim!

Porquê? Porque o projeto impõe aquilo que Dunker chama de objeto intrusivo. Ou seja, passo a interpretar que o mundo ideal do serviço público foi desequilibrado por alguém, que “está desequilibrando a suposta pureza e harmonia na qual vivíamos antes”. Agora, para o servidor, a chefia deixa de ser um aliado de trabalho e passa a ser vista como perigosa por seus interesses, que podem ser contrários a administração pública, pois trata-se de um CC indicado, ligado a partidos, a interesses, o que provoca medo.

Diferente da perda da alma, que é a perda do reconhecimento do que faz um servidor, assinala Dunker que também há outra forma de sofrimento produto de uma avaliação feita mediada por interesses, a perda da unidade de espírito “Entenda-se por espírito tudo aquilo que concorre para a produção de uma unidade simbólica; uma família, um povo, uma nação, uma época, uma determinada conformação social”. É o surgimento da apatia, a perda da alma se vê naquele servidor que se acostumou a sua rotina, faz o mínimo exigido para a função. Ele perdeu sua unidade de espírito, sua origem, o sentimento de ser servidor público porque ele vive justamente o contrário, a sua dissolução. Sua história como servidor é um fracasso, e por isso, o servidor tornou-se um refugiado na terra do serviço público, ele sente-se à deriva.

Um novo imaginário social

De onde emergiu as condições para a imposição deste novo imaginário social? O servidor público tornou-se o bode expiatório de uma classe social nascida no Brasil pós-inflacionário. Meios de comunicação, mas também posturas de direita por todo o lado construíram não apenas a definição de uma nova classe social que Jessé Souza denominou de os “batalhadores brasileiros, esses donos de oficinas de quintal, aqueles que vivem do microcrédito, operadores de marketing, donos de pequenos negócios familiares (…) novo tipo de trabalhador que se adaptou as exigências de desenraizamento, ausência de identidade de classe e vínculos de pertencimento trabalhista (…) aceitando a superexploração da jornada de trabalho” (p. 249). Essa nova categoria social também, na minha interpretação, foi construída com a definição de seu suposto opositor, de seu inimigo: o servidor público. Se trata de uma categoria que não tem privilégios algum a quem é apresentada outra categoria que aparentemente tem todos os privilégios – não são privilégios, são direitos, mas quem se importa? Num mundo em que é proposto a cada cidadão ser empresário e patrão de si mesmo, a condição de servidor público é vista com ambiguidade: os batalhadores brasileiros exigem direitos da prestação de serviços, mas não reconhecem que o valor e o trabalho de um servidor é garantido por planos de cargos e salários dignos, que a natureza do serviço público é diferente do serviço privado. Tudo funciona pela lógica especular, do espelho: eles querem o serviço público como sua imagem e semelhança… de precarização!

Para os batalhadores brasileiros, os servidores públicos são vistos como detentores de uma dívida simbólica: se para o batalhador, o “futuro é uma indeterminação e incerteza”, o serviço público é o oásis da estabilidade garantida. O ideal do trabalhador público para um batalhador é que seja masoquista, que deseje a precarização, mas o que fazem nada mais é do que manipular a imagem do servidor a sua própria imagem, dramatizar em função de uma relação de iguais quando são no fundo, espaços e instituições diferentes. É como se os batalhadores só imaginassem a existência de um teatro único para o trabalho, quando há vários. Isso nada mais é do que outra expressão do narcisismo de classe, que produz isolamento dos servidores públicos e docilidade sobre a violência.

Tudo faz parte de uma racionalidade judicialista, gerencialista, que tipifica o irracional, o subjetivo, o tempo que passa, a cordialidade dos servidores e não a produtividade como um crime. A voz coletiva julga os servidores públicos, segrega e antecipa castigos, diz Dunker. A avaliação vem para tornar individual o que no início é geral. O imaginário equivocado que dizia “todos os servidores públicos são vagabundos”, mito construído para torna-lo inferior, é substituído por procedimentos de localização e determinação. Dunker afirma que a construção social de avaliações, juízos e impressões derrogatórias é uma arte ascendente no mundo corporativo. “Uma cultura da denúncia é uma cultura onde quase todas as profissões tornaram-se delirantes”.

Esse procedimento, segundo Dunker, integram o que o autor chama de “crimes da palavra”. Avaliações promovem opiniões dos outros baseadas em critérios que se dizem objetivos, mas que podem não ser e cujo efeito é uma incerteza. Conversei com o organizador da LC 133, Estatuto dos Funcionários Púbicos de Porto Alegre, Lei Complementar que rege a vida dos servidores municipais, Valter Lemos. Para ele, que teve a experiência democrática de organizar um dispositivo legal para milhares de servidores públicos de Porto Alegre, a estabilidade é um estatuto conquistado. Você a conquista por que trabalhou um tempo “Você até estabelecer uma avaliação de desempenho após um período longo como dez, quinze anos. Mas assim, anual não. Com que critérios? Com que metodologias? Isso teria um custo enorme, além de colocar a mercê dos autoritários de plantão a máquina pública”, afirma Lemos. Diz Dunker: “o casamento entre os crimes da palavra e a cultura da denúncia parece estar na origem dos pós-verdade” (p. 256).

Um mapa dos efeitos da avaliação de desempenho

A avaliação de desempenho poderia ser considerada uma forma da pós-verdade? Para Dunker, na pós-verdade, “ a verdade é apenas mais uma participante do jogo, sem privilégios ou prerrogativas”. Dunker faz um exercício didático para definir o que espírito do significado da suspensão da verdade, no caso para um professor. Vejamos o que seria equivalente para um servidor público frente a avaliação de desempenho:

– Se a avaliação de desempenho não tolera barreiras, tudo se resume a vontade do avaliador. O servidor público avaliado, antes de cumprir sua função, deve garantir satisfação imediata a quem lhe avalia, mesmo que isso seja ilegal. Porque seu avaliador de desempenho está ali para decidir o seu destino.

– Confunda atendimento da vontade do avaliador com atitude de servidor. O emprego do servidor é incerto, a estabilidade depende menos de um ideal do que da satisfação do avaliador, seu espírito público tem menos importância do que a avaliação que posso fazer de você e a adoção de minhas opiniões por você é sua passagem para a estabilidade no serviço público. O desejo do avaliador compra qualquer coisa, inclusive dobra a ética do servidor público que visa garantir a lei.

– Frente a avaliação de desempenho, um servidor público se torna indiferente: não importam leis, não importam a ética pública. O servidor deve evitar o lacônico ´”é contra a lei” quando questionado por seu avaliador, pois assuntos como privilegiar um amigo numa licitação púbica se sobrepõem a necessidades da sociedade.
“Seja infinitamente tolerante com a expressão de valores”, diz Dunker, numa definição que resume que para o servidor público, deve se submeter a quaisquer procedimentos de transparência burocrático.

– O servidor público deve mostrar que é mais importante para ele reconhecer quem está no comando do que reconhecer leis, pois, afinal, não interessam argumentos ou provas quando está em jogo seu trabalho. O avaliador tem sempre a última palavra.

– Regra de ouro a partir de agora: com a avaliação que demite, o servidor público sempre deve privilegiar a vontade do avaliador ao conteúdo da lei, a moralidade ou a transparência. Entenda: sua função é apenas fazer a gestão dos interesses do avaliador, que responde aos interesses de seus superiores, que normalmente são políticos ou CCs que tem interesses a atender. Ser servidor público é coisa ultrapassada (adaptado de Dunker, páginas 257-259).

A corrosão do serviço público pelo ódio

A emergência do novo discurso conservador no espaço do serviço público é desorganizador, capaz de corroer as suas bases porque cria instrumentos de exercício do poder que destroem bases da autonomia técnica. Minha hipótese, na linha de Dunker, é que isso acontece porque, após a emergência da polarização onde emergiram atores para quem o interesse de governar não importa, mas de não deixar governar, emergiram também atores cujo interesse não é a existência da função pública, mas que ela deixe de existir. O ódio contra o servidor público é outro integrante do ódio contra o PT, contra a esquerda em geral e compartilha a mesma interpretação de que servidores públicos, como a esquerda, são inimigos que se devem combater, são atores dissimulados, de que a função pública tornou-se uma doença da sociedade, da mesma forma que se fala em esquerdismo doente.

Ora, o argumento de Dunker para a defesa da política pode ser usado também para defesa das instituições: dizer que a burocracia se tornou uma doença da sociedade é apenas uma alegoria, um exagero retórico, mas que sinaliza que no fundo, que as pessoas pensam que o serviço público tem problemas porque tem adoece o corpo da sociedade. Ele é possível porque se tornou viável, desde a criação da ideia de “esquerdopata”, a suposta associação entre qualquer coisa, qualquer ator social e doença, daí a ideia de que a burocracia é um transtorno para a sociedade que é preciso repudiar, recusar. Personalidades autoritárias podem integrar a instituição pública, mas o erro é pensar que a instituição pública adoece a sociedade, o erro é pensar que uma instituição pública possa somatizar, se tornar doente. Descrevendo os chamados carrascos de Hitler, Dunker lembra que “eles não sofriam de patologias diferentes de todos nós, mas foram ‘mobilizados’ por um discurso. Um discurso que, como o do bom burocrata, os fazia adivinhar a vontade do mestre produzindo uma escala de violência institucionalizada”. É exatamente isso que fará o estabelecimento da avaliação por desempenho, produzirá, sob a ameaça de demissão do serviço público, a repetição da violência institucionalizada típica do nazifacismo.

Dunker lembra que o exercício que faz passar de categorias clínicas e disciplinas psicológicas para análise de instituições não é um acidente. O discurso da direita, diz o autor, é sempre um discurso incitador, ele não é liberal, ele tira seu poder do uso de categorias indevidas em contextos de desqualificação do adversário: é assim que faz com o servidor público, usando a avaliação supostamente técnica, quando não é, como forma de desqualificar o servidor no exercício de sua função. Mas ao ser dito, torna-se um crime verbal, desencadeando formas de sofrimento nos servidores públicos, criando mal-estar: os burocratas devem ser extintos pois são a doença da sociedade “podemos não acreditar nessa bobagem, mas mesmos assim somos expostos e absorvemos essa lógica discursiva” diz Dunker (p. 283).

Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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